Publicado na Revista VEJA
O autor da série de televisão Cosmos prefere os excitantes mistérios do Universo às certezas que jazem em livros empoeirados.
Quando tinha 8 anos de idade, Carl Sagan brincava nos terrenos baldios do bairro do Brooklin, em Nova York, onde nasceu, e se imaginava um herói. Olhos voltados para o céu, sonhava repetir as façanhas do aventureiro John Carter, o personagem de Edgar Rice Burroughs que pousava em Marte e lá descobria lindas princesas, guerreiros impiedosos e animais de 3 metros de altura. Aos 10 anos, fascinado pelas luzes que via brilhar no firmamento, Sagan foi à livraria da esquina e pediu um livro sobre estrelas. Deram-lhe um, com fotos de famosas atrizes de Hollywood. Hoje, com 46 anos, tornou-se ele próprio um astro de televisão com sua série “Cosmos”, uma fascinante e didática viagem pelos mistérios do Universo.
Astrofísico, professor de Astronomia e Ciências Espaciais na Cornell University, no Estado de Nova York, autor de doze livros, entre eles “Cosmos”, produzido paralelamente à série de TV, o cientista Sagan revelou-se uma espécie de mago da ciência, um envolvente e acessível expositor de temas intrincados, nessa série que lhe custou três anos de trabalho exaustivo, devorou um orçamento de 8,5 milhões de dólares bancados por três emissoras de TV e foi filmada em doze países diferentes. Mais importante que isso, traça um painel da saga humana num universo interpretado à luz da ciência e da emoção. Em Cornell, Sagan deu esta entrevista a VEJA:
VEJA – As civilizações antigas eram mais fascinadas pelo Universo que o homem moderno. Não é um paradoxo?
SAGAN – Os antigos viviam a maior parte do tempo ao ar livre. Nós vivemos confinados entre concreto, vidros e metais – e não olhamos com frequência para o céu. Tornamo-nos alienados da natureza, e isso é extremamente perigoso.
VEJA – Então, qual a razão do sucesso do livro e da série “Cosmos” para a televisão?
SAGAN – Especular sobre o Universo é um traço humano fundamental, sempre foi. Vivemos um período em que as interrogações surgidas da especulação têm respostas com rigor científico. Isso é fascinante do ponto de vista intelectual e também o é do ponto de vista emocional, porque se relaciona com o que somos, de onde viemos e para onde vamos. Considero-me um privilegiado por espalhar essa mensagem.
VEJA – É sempre possível tornar a informação científica acessível e atraente, mesmo quando se refere a questões sabidamente complicadas?
SAGAN – É do interesse do cientista popularizar a ciência, mas deveria ser também um prazer. A maioria dos cientistas escolheu essa profissão porque ama a ciência. Um poeta geralmente gosta de recitar seus poemas – e creio que o mesmo deve ocorrer com um cientista. Mas, desde os tempos de Pitágoras, há cientistas que consideram a ciência algo destinado às elites. Essa é uma noção perigosa, em grande parte responsável pelo desinteresse popular. Ciência é um prazer, uma alegria. Além do mais, sabemos que a maior parte da pesquisa científica é financiada por verbas públicas. Por isso, ela tem o dever de voltar ao público não apenas em forma de benefício mas também em forma de conhecimentos.
VEJA – No entanto, o senhor se opôs ao programa Apollo, que levou o homem à Lua. Por quê?
SAGAN – O programa Apollo não era um programa científico, mas político. Foi a resposta americana ao voo orbital do soviético Iuri Gagarin, em 12 de abril de 1961, e ao fiasco da tentativa de invasão da baía dos Porcos, em Cuba, ocorrida cinco dias depois. Kennedy disse que queria pôr um homem na Lua e fazê-lo retornar com segurança, até o fim da década. Ele não disse que queria entender a origem da Lua até o fim da década. Tanto isso é verdade que o primeiro cientista a pisar na Lua foi também o último. E mais: o programa foi cancelado exatamente quando começou a fazer progressos científicos. Por isso – e pode parecer paradoxal – fui contra o início do programa e contra o seu fim. No início, porque era contra os vôos tripulados, muitíssimo mais dispendiosos. Sai incrivelmente mais barato enviar uma nave não tripulada para se obter os mesmos resultados científicos.
VEJA – O governo americano tem reduzido sistematicamente as verbas para programas espaciais. O senhor vê nisso um acerto, tendo em vista que há problemas dramáticos a resolver aqui mesmo na superfície do planeta?
SAGAN – Os governos devem ter metas de curto e de longo prazo. Se nos preocuparmos apenas com as de curto prazo, estaremos sendo tolos. Essa redução de verbas é um erro e nos criará dificuldades para resolver os problemas que surgirão no começo do século XXI. Isso é particularmente importante para países como o Brasil, que terá um papel cada vez mais importante na cena internacional.
VEJA – O senhor tem uma visão otimista da capacidade da ciência para resolver os problemas da vida. Ao mesmo tempo, costuma alertar para a tendência à autodestruição das civilizações que atingem certo grau de evolução. Quem vencerá?
SAGAN – Estamos numa fase crítica porque, pela primeira vez, dispomos de meios para a destruição da espécie humana. Veja bem, “ciência” é apenas uma palavra latina que quer dizer “conhecimento”. A vida no planeta vai depender muito mais, nas próximas décadas, da política que da ciência. São pouquíssimos os países que podem tomar decisões sem afetar os demais. Veja, por exemplo, a questão do desflorestamento da bacia amazônica. Não se trata de um problema apenas brasileiro, mas tem implicações globais – e não necessariamente negativas. Ha indícios de que o desflorestamento pode ter aspectos positivos, como um maior resfriamento do planeta, o que eventualmente compensaria o aquecimento provocado pela queima de combustíveis fósseis.
VEJA – O senhor considera a ameaça nuclear mais séria para a sobrevivência do planeta que o lento processo de alteração do meio ambiente?
SAGAN – O que mais preocupa, sem dúvida, é a ameaça de uma guerra nuclear. Neste momento, 15.000 ogivas nucleares estão direcionadas para atacar cidades da Europa Ocidental, da União Soviética e dos Estados Unidos. Uma única dessas armas tem o potencial de destruição de todas as bombas detonadas durante a II Guerra Mundial. Estamos literalmente sentados sobre um barril de pólvora.
VEJA – O senhor é criticado por outros cientistas quando defende a possibilidade de vida em outros planetas. A descoberta da inexistência de micróbios em Marte alterou suas convicções?
SAGAN – Essa questão é extremamente importante. Estamos sozinhos no Universo ou há outros seres? Existem micróbios em outros mundos? E vida inteligente? Não há respostas fáceis, não basta pousar uma vez em Marte para se saber se existem por lá uns seres esverdeados ou não. Como poderíamos, hoje, concluir que não há vida no resto do Universo, se existem 400 bilhões de sóis apenas na Via Láctea, a galáxia em que está a Terra, e se há pelo menos mais 100 bilhões de galáxias além da nossa? A química que produz a vida é reproduzida facilmente por todo o cosmos. Por que então seríamos tão privilegiados? O Universo é três vezes mais velho que a Terra; deve haver, portanto, lugares em que houve mais tempo para a evolução biológica que em nosso planeta. Parece improvável que sejamos os únicos seres inteligentes. É possível, mas é improvável.
VEJA – Por que nem todos concordam que a exobiologia – que pesquisa a vida extraterrestre – seja uma ciência?
SAGAN – É uma ciência e não uma especulação porque podemos fazer algo concreto para obter respostas. Podemos enviar espaçonaves a outros mundos e mesmo em Marte creio que não está totalmente excluída a possibilidade de existir vida microbiológica. Também podemos usar imensos radiotelescópios para captar sons e, eventualmente, mensagens de outros mundos. Mesmo que essa busca, por muito tempo, e por vários mundos, leve à conclusão de que não há vida, não teremos perdido nosso tempo. Teremos, pelo contrário, descoberto algo muito importante: que a vida, como a conhecemos, é raríssima, talvez única. Isto, em si, é uma resposta preciosa. E, afinal, se não encontrarmos sinais de vida no Universo é ainda possível supor que civilizações inteligentes se tenham destruído antes de chegar à capacidade tecnológica de comunicação interplanetária – algo como o que nos preocupa no momento em relação à Terra.
VEJA – As pessoas comuns desconfiam dos cientistas?
SAGAN – A ciência gerou quase todas as facilidades da vida moderna e melhorou consideravelmente a condição da existência humana, mas criou também os instrumentos para a destruição em massa. Desde criança, vemos na figura do cientista aquele estereótipo do maluco e é fácil culpá-lo pelo desenvolvimento de armas atômicas. Mas o emprego dessas armas está nas mãos dos políticos e dos militares, e a eles devemos dirigir nossas preocupações. Além disso, a ciência lida com o mundo como ele é e não como gostaríamos que fosse. Um exemplo desse conflito é o debate entre o evolucionismo darwiniano e a teoria bíblica da criação. É cômoda a ideia de que o mundo foi criado há 6 000 anos por um deus benigno e que tudo se passou exatamente como descreve o livro do Gênesis. Ocorre que os fatos não correspondem a essa versão e as pessoas muito apegadas à Bíblia têm uma razão adicional para desconfiar da ciência. Temos que lidar com o mundo real e não com uma história velha que era ciência para os babilônios, não para nós.
VEJA – Esse conflito entre religião e ciência é incontornável?
SAGAN – Algumas religiões são mais resistentes que outras às descobertas científicas. Nada exclui a possibilidade de o Universo ter sido criado há 15 bilhões de anos por alguma divindade que se aposentou desde então, já que não há evidência de intervenção divina na história mais recente. A ideia de um Deus remoto, passivo, é certamente possível, não deve ser excluída. Mas o papel da religião não é fazer ciência, é esclarecer as relações entre os seres humanos, ajudar-nos a entender nossas obrigações morais. Muitos dos escritos religiosos são literatura do mais alto nível e merecem ser estudados sob esse prisma. Não há conflito entre religião e ciência, se cada um fica em sua área.
VEJA – O senhor adota um tom quase religioso quando fala dos mistérios do Universo. Como encara esses mistérios que a ciência não explica?
SAGAN – O Universo é algo que gera reverência, respeito. Em termos de tempo e espaço, sua escala torna a existência humana microscópica. É fascinante que as leis da natureza sejam as mesmas em todo o cosmos. A lei da gravidade, por exemplo, funciona aqui como a 1 bilhão de anos-luz de distância. Olhemos para cada detalhe, mínimo que seja, como para uma folha, e veremos que sua perfeição e harmonia são deslumbrantes. Creio que a folha resulta do processo de seleção natural, indicado por Darwin, ao longo de quase bilhões de anos de evolução da vida na Terra. Se olhamos essa mesma folha através de um microscópio, ficamos ainda mais maravilhados. Se alguém quer chamar esse sentimento de religioso, isso não me incomoda.
VEJA – O senhor acredita que o homem um dia poderá viver fora da Terra?
SAGAN – Sim, se não provocarmos a destruição do planeta nos próximos cinquenta ou 100 anos. No futuro poderemos construir um novo mundo para viver, feito de material coletado no próprio espaço – um novo planeta que orbitasse em torno do Sol, por exemplo. Os espíritos irrequietos sempre tiveram, ao longo da história, a necessidade de abrir novas fronteiras. Dentro de cinquenta anos, as migrações interplanetárias poderão ser tecnologicamente realizáveis. Também seria tecnologicamente possível alterar o ambiente de planetas existentes para que pudessem acomodar a vida humana.
VEJA – Com a série “Cosmos”, o senhor se tornou uma celebridade. Como um cientista convive com isso?
SAGAN – É muito difícil lidar com a fama e só agora entendo por que jovens de 20 anos entram em colapso com ela. Já que aconteceu comigo, tanto melhor que seja agora, e não quando eu era mais jovem.
VEJA – Até que ponto a série de televisão criou interesse popular pela ciência e pelos mistérios do Universo?
SAGAN – Até o final de 1983, a série terá sido vista por 150 milhões de pessoas em países tão diversos como Zâmbia, Hungria, Arábia Saudita, Romênia e Brasil. O livro “Cosmos” está na lista dos dez mais vendidos em dezenas de países e, só nos Estados Unidos, vendeu 250 000 exemplares. Já fornecemos material de projeção para 450 planetários em todo o mundo. Mas o que mais me impressiona são as cartas: já recebi mais de 10 000.
VEJA – O senhor sentiu falta do trabalho de pesquisa científica enquanto estava ocupado com o projeto Cosmos?
SAGAN – Tirei dois anos e meio de licença da Cornell University para trabalhar no projeto Cosmos e também no projeto Voyager, da NASA, para o qual fiz análises de imagens enviadas de Júpiter e Saturno, razão pela qual não fiquei totalmente afastado da pesquisa. Embora goste muito de popularizar a ciência, gosto mais ainda de fazer ciência e estou satisfeito por voltar a Cornell, aos laboratórios e às salas de aula. Sinto que tenho de novo os pés no chão, depois de tanto tempo flutuando em Hollywood.
VEJA – De volta à pesquisa, o senhor sente alguma frustração pelo fato de que, na Astronomia, quanto mais se descobre mais resta a descobrir?
SAGAN – De modo algum. Isso é muito mais excitante que aprender tudo sobre um assunto e colocar o conhecimento de lado, num livro empoeirado. O mistério me excita, a certeza me aborrece. Em ciência, cada avanço importante levanta mais questões que as que resolve. As duas últimas décadas foram extremamente ricas: examinamos vários novos mundos de perto. Voamos próximo de alguns e pousamos em três – a Lua, Marte e Vênus. Isso é um salto inimaginável na história humana. Nossos antepassados olhavam para os planetas como para pontos de luz. Nós os conhecemos como mundos, lugares para os quais podemos viajar.
VEJA – O senhor entende que a exploração do espaço, nas duas últimas décadas, já deu frutos importantes, ou eles só aparecerão no futuro?
SAGAN – Já fizemos muitas conquistas. Os satélites meteorológicos representam uma enorme economia ao anunciar tempestades e furacões. Os satélites de comunicações, que permitem a ligação telefônica e a transmissão de imagens de televisão entre os continentes, são um avanço extraordinário. Os satélites de reconhecimento militar têm um efeito altamente estabilizador na política internacional, pois com eles é praticamente impossível uma potência surpreender a outra – o que diminui a possibilidade de guerra.
VEJA – Que projetos ocuparão o tempo do senhor daqui para a frente?
SAGAN – Sempre faço muitas coisas ao mesmo tempo porque uma atividade relaxa a tensão da outra. Continuo a analisar o material das missões Voyager a Júpiter e Saturno. Estou também envolvido com programas de captação de sinais de outras civilizações através de radiotelescópios. E começo a escrever um novo livro, “Contact”, e um roteiro com o mesmo nome para um filme que será rodado pela Columbia Pictures. Trata-se de um trabalho de ficção, que só pretendo concluir daqui a dois anos.
VEJA – Como será essa história?
SAGAN – É um romance de ideias, no qual pretendo mostrar que o cientista é uma pessoa comum. A história começa com o recebimento de uma mensagem complexa, enviada por outra civilização no espaço, e narra os esforços para decodificá-la. Surgem reações de áreas políticas e religiosas. Não posso dar mais detalhes. O resto é mistério.
VEJA – Que áreas da ciência o senhor acha que evoluirão mais sensivelmente nos próximos anos?
SAGAN – Parece claro que há um potencial enorme nas áreas da Biologia Molecular, da Engenharia Genética, da Astronomia e da Astrofísica. É importante que a ciência avance em muitos campos ao mesmo tempo porque ela, como a natureza, é um todo. Dividimos o estudo em disciplinas por conveniência, mas o entendimento do Universo pressupõe avanços em todas as direções do conhecimento humano.