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Como deve ser tratado o crime?

Por Bertrand Russell
Publicado na obra Caminhos para a Liberdade

Como deve ser tratado o crime? Qual é o maior grau de humanidade e respeito pela liberdade que seja compatível com o reconhecimento de algo como o crime? A primeira coisa a reconhecer é que toda a concepção de culpa e pecado deve ser inteiramente banida. Atualmente, o criminoso recebe a desaprovação da comunidade: o único método aplicado para evitar a ocorrência de crime é a imposição de pena ao criminoso. Tudo o que é possível é feito para quebrantar seu espírito e destruir seu auto-respeito. Mesmo aqueles prazeres que mais provavelmente exerceriam um efeito civilizador são proibidos para ele, simplesmente com base em que são prazeres, ao passo que muito do sofrimento imposto é de uma espécie que só pode brutalizá-lo e degradá-lo ainda mais. Não falo, é claro, daquelas poucas instituições  penais que têm feito sério estudo no sentido de reformar o criminoso. Tais instituições, sobretudo na América, mostraram-se capazes de conseguir os mais notáveis resultados, mas continuam em toda parte excepcionais. A norma geral é ainda que o criminoso deve sentir a repulsa da sociedade. Ele deve surgir desse tratamento desafiante e hostil, ou submisso e bajulador, com um espírito quebrantado e uma perda de respeito próprio. Esses resultados só podem ser um mal. Nem se pode obter qualquer bom resultado por um método de tratamento que encarne reprovação.

Quando um homem está sofrendo de uma doença infecciosa, é um perigo para a comunidade, e é necessário restringir sua liberdade de movimento. Mas ninguém associa qualquer ideia de culpa a tal situação. Pelo contrário, ele passa a ser objeto de comiseração por parte de seus amigos. Medidas como as que a ciência recomenda são tomadas para curá-lo de sua doença, e ele se submete a uma norma sem relutância de cerceamento da liberdade enquanto isso. O mesmo método, em espírito, deve ser mostrado no tratamento do que é chamado ‘’crime’’. Supõe-se, naturalmente, que o criminoso aja por cálculo de interesse próprio, e que o medo do castigo, ao dar um motivo contrário do interesse próprio, ofereça a melhor dissuasão.

“O cão, para atingir seu fim, ficou maluco e foi mordendo assim.”

Essa é a concepção popular de crime: mas o cão não fica louco porque quer, e talvez seja assim com a grande maioria dos criminosos, certamente no caso de crimes passionais. Mesmo nos casos em que o interesse próprio é o motivo,o importante é evitar o crime, e não fazer o criminoso sofrer. Qualquer sofrimento que possa ser ensejado pelo processo de prevenção deve ser considerado lastimável, como a dor numa operação cirúrgica. O homem que cometa um crime por um impulso à violência deve ser submetido a tratamento psicológico científico, destinado a revelar impulsos mais benéficos. O homem que cometa deliberadamente um crime por interesse próprio em si mesmo, quando plenamente compreendido, pode ser mais bem atendido por uma vida que seja útil à comunidade do que por uma existência nociva. Para esse fim, é necessário, principalmente, ampliar o seu modo de ver e aumentar o âmbito de dos seus desejos. Atualmente, quando um homem sofre em virtude de insuficiente amor de seus iguais, o método de curá-lo normalmente adotado parece escassamente destinado a ter êxito, sendo, de fato, no essencial, o mesmo que sua atitude para com eles. O objetivo do aprisionamento é poupar problema, e não estudar o caso individual. Ele é mantido em cativeiro numa cela da qual toda a vida da terra é subtraída: ele é submetido a severidades pelo carcereiro, que não raro ficou brutalizado pela prática do ofício. Ele é solenemente denunciado como um inimigo da sociedade. É obrigado a executar tarefas mecânicas, escolhidas pela sua monotonia. Não se lhe dá qualquer educação ou incentivo para o auto-aprimoramento. Seria de admirar que, ao fim de tal período de tratamento, seus sentimentos para com a comunidade não sejam mais amistosos que no princípio?

A severidade do castigo surgiu através da vingança e medo, numa época em que muitos criminosos escapavam todos da justiça, e se esperava que sentenças selvagens ultrapassassem a possibilidade de escape ao ver do criminoso. Atualmente, grande parte do direito criminal ocupa-se em salvaguardar os direitos de propriedade, isto é – como as coisas são agora – os privilégios iníquos dos ricos. Aqueles cujos princípios os levaram a conflito com o governo, como os anarquistas, fazem o mais formidável libelo contra a lei e as autoridades pela maneira iníqua pela qual sustentam o status quo. Muitas das atividades pelas quais os homens ficaram ricos são muito mais nocivas à comunidade do que crimes obscuros de homens infelizes, e no entanto não sofrem punição porque não interferem com a ordem existente. Se o poder da comunidade deve ser exercido para evitar certo tipo de ações por meio do código criminal, é tão necessário que essas ações sejam realmente as nocivas à comunidade, como o é que o tratamento de “criminosos” seja isento da concepção de culpa e inspirado pelo mesmo espírito mostrado no tratamento das doenças.

Gabriel Jardim

Gabriel Jardim

Cético, Humanista secular, grande apreciador da arte, da ciência e da filosofia.