Por Andrew O’Hehir
Publicado em Salon
Após o fim da nova série Cosmos, disponível agora em Blu-ray e DVD, se tiver perdido o show, o seu apresentador, Neil deGrasse Tyson, tornou-se o mais proeminente astrofísico nos Estados Unidos e o rosto da ciência para o público no seu esforço de recapturar a imaginação das pessoas. Mas apesar de Tyson ser um autor com seu próprio mérito, ele não concebeu, escreveu ou produziu a série. Na verdade, ele foi como um ator ou um âncora de telejornal, uma figura carismática e credível lendo as palavras de outra pessoa no teleprompter. Essas palavras, e quase tudo na série, foram escritas por Ann Druyan, escritora e produtora executiva que também foi cocriadora da série original com seu marido Carl Sagan, há mais de 30 anos.
Druyan não busca pessoalmente os holofotes e não é uma celebridade, mas do seu jeito ela é uma figura cultural chave na luta contra o popular antagonismo à ciência e a disseminação de besteiras anticientíficas sobre as mudanças climáticas e a teoria da Evolução. Os criacionistas e antievolucionistas que entenderam os argumentos de Cosmos como um ataque direto a suas crenças pessoais estavam inteiramente corretos. Mas a crítica de Ann Druyan vai muito além das interpretações literais e das idiotices da turma do Answers em Genesis. Ela se descreve como agnóstica em vez de ateia, baseada na premissa de que a ciência não deve se pronunciar sobre questões que não pode responder, mas ela descreve a fé religiosa como “contrária aos valores da ciência” e a religião em geral como “uma declaração de desprezo pela natureza e pela realidade.”
Druyan também está ciente de que muitos religiosos rejeitariam suas opiniões, e um fragmento de suas ideias pode fazer sua abordagem filosófica soar menos generosa e “mente aberta” do que ela é de fato. Enquanto ela está profundamente desconfortável com o muro artificial entre os domínios da ciência e religião erguidos por Stephen Jay Gould que diz que eles “são magistérios que não se sobrepõem”, ela está aberta a discussões de conceitos aparentemente indefiníveis e não científicos, como o sagrado e o espiritual. Esses devem ser buscados em um nível mais profundo e mais evoluído, argumenta, deixando para trás “nosso senso infantil de centralidade no universo”, em que somos a prole preciosa de um protetor benevolente, em vez de nos focarmos nos mistérios imensos e profundos de “13 bilhões de anos de evolução cósmica e 4,5 bilhões de anos da história da vida neste planeta.”
Durante minhas conversas breves pelo telefone com Druyan, nós também discutimos sobre a sua brilhante releitura da história do Jardim do Éden, que ela entende como uma história de fuga humana de “uma prisão de segurança máxima com vigilância 24 horas por dia.” O pecado capital de Adão e Eva é que eles buscaram conhecimento e fizeram perguntas, exatamente as qualidades que definem a espécie humana. Ao menos nessa história, Deus aparece e exige uma falta de curiosidade subserviente e doutrinária, e muitos de seus seguidores continuam a insistir nesse caminho para os dias de hoje. Certamente há correntes dentro das principais tradições religiosas que resistem em uma simplória negação da ciência – Budismo, Judaísmo e a Igreja Católica estão agora bem, falando de modo genérico, com a Evolução e a cosmologia – mas a crítica provocativa de Druyan da religião como força social que distorce as coisas vale a pena considerar, ainda que você ache seus argumentos muito radicais.
Um erro que Druyan nunca comete, mesmo em Cosmos ou em qualquer lugar, é o historicismo arrogante às vezes demonstrado por Richard Dawkins e outros proeminentes ateus científicos. Com isso quero dizer uma concepção quase religiosa de que nós estamos em uma posição unicamente privilegiada e próxima de um conhecimento científico perfeito, com apenas algumas lacunas para preencher antes de entendermos tudo sobre o universo. “Estou certa de que a maior parte do que temos de mais valioso, daquilo que acreditamos neste exato momento, será revelada em algum tempo futuro como algo que é meramente um produto da nossa época, da nossa história e da nossa compreensão da realidade”, diz Ann Druyan. É a ciência como entendida como um processo, como “uma busca incessante pela verdade”, é algo sagrado. O que nós sabemos agora, ou o que achamos que sabemos, é sempre passível de humildade e dúvida.
Ann, eu sei que eu não sou a primeira pessoa a trazer essa questão à tona, mas você fez duas versões dessa série onde, entende, um cientista proeminente apresentava e você ficava lá nos bastidores. A primeira vez, claro, foi com seu esposo e agora o mesmo ocorre com Neil Tyson, pois ele está de pé em frente à câmera e todos pensam que ele é o criador da série. O que está acontecendo?
Essa é uma coisa engraçada, não? Eu fico um pouquinho surpresa quando os críticos, que são os mais prováveis de ler os créditos com atenção, falarem sobre a série como se Neil tivesse algo a ver com o começo ou com a sua escrita. No caso do Carl era diferente. Obviamente ele era o principal parceiro na concepção do projeto junto comigo e o astrônomo Steven Soter.Com isso quero dizer que estou meio surpresa. Mas então eu vejo a performance magnífica do Neil e como ele inesperadamente pegou o que eu escrevi e foi dando o seu melhor na expressividade da série. Eu amo esse cara. Eu acho que é a condição do roteirista, ele fala com a boca de outra pessoa, por isso as pessoas pensam que deve ser ele falando. É uma reação natural.
Mesmo assim é uma coisa engraçada. Quero dizer, sou um crítico de cinema e eu não acho que as pessoas ficam confusas quando elas vão ver um filme e Johnny Depp está lá em interpretando um personagem. Eles praticamente entendem que alguém escreveu essas falas para ele, mas não parecem entender isso nesse caso.
Não entendem, sabe, porque Neil é um cientista e também um escritor. Então é natural se pensar que é o seu material. E, claro, isso é verdade para o Carl em um grau maior. Tudo isso faz sentido. Estou feliz. Quer dizer, veja só, não consigo acreditar que essa série foi exibida em mais ou menos 181 países e na maioria deles tivemos um sucesso maior do que o esperado. Para alguém que começou nessa estrada há 7 anos, essa é a maior proeza que eu poderia ter imaginado.
Como você se sentiu sobre a resistência de grupos religiosos? Você foi muito clara sobre abraçar o consenso científico de que as mudanças climáticas são o resultado da atividade humana, que a evolução por seleção natural é um fato e que a idade do universo não está em disputa. Tenho certeza de que você estava esperando alguma resistência a tudo isso.
Na verdade, a brandura relativa da reação que realmente me surpreendeu. Eu pensei, sabe, que abordar a origem humana do aquecimento global ou até mesmo a evolução através da seleção natural e dizê-lo de modo tão aberto resultaria em uma enorme rejeição. Mas não chegou a isso. Eu acho que eu já esperava, por nunca ter trabalhado com a Fox e a National Geographic, quando enviei meu script que o vice-presidente da Standards & Practices ou quem quer que fosse retornaria com algumas questões. E, no entanto, foi exatamente o oposto. Foram, sabe, cartas dizendo: “Eu não posso esperar para ver esse show na televisão. Obrigado! “Assim, creio que a vida é raramente o que esperamos que ela seja.
As coisas para as quais eu já estava me preparando não aconteceram. Quero dizer, entende, a reações negativas às ideias científicas que estão no coração das séries foram realmente diferentes e muito amenas. Tenho que ser honesta. Eu li um monte de coisas daquelas fontes de onde poderia antecipar qual seria a reação. E foi o eu fiz. Parecia que era mais tristeza do que de raiva. [Risos.] Eu não vi nada, pessoalmente, que fosse perturbador. Na maior parte, eram apenas pessoas que não concordavam.
Você foi muito sincera ao longo dos anos sobre suas visões sobre mitos religiosos e suas relações com a ciência. Você falou em tempos do desejo de recuperar um pouco da sensação de mistério e ousadia ou até mesmo de espiritualidade que poderiam hipoteticamente ser relacionados com a ciência. Esta série deve ser considerada como parte dessa luta, como uma tentativa de recapturar o mistério e o poder da ciência na imaginação do público?
Isso está maravilhosamente colocado. Eu poderia falar sobre nisso. Sim, quero dizer, o que sempre foi uma surpresa para mim, pessoalmente, é que as revelações da natureza e o universo que a ciência nos apresentou não são apenas, entende, mais prováveis de serem melhores aproximações da realidade do que as obtidas de qualquer outra fonte, mas elas também são muito mais espiritualmente satisfatórias do que qualquer coisa que já fomos capazes de inventar. As nossas interpretações da natureza que não estão enraizadas em nós são uma espécie de visões idealizadas infantis de nós como o centro do universo. Como filhos de um pai muito decepcionado. [Risos.]
Essas coisas só me deixam fria. Sinto muito; Não fazem realmente nada em mim. Mas a ideia que nós somos, a meu ver, uma espécie em uma busca de uma satisfação é algo muito real. E nós usamos isso para chegar à teoria de somos literalmente especiais, que fomos criados separados de toda a natureza. Não podemos pensar mais assim depois de entender uma montanha de evidências do DNA e muitas outras causalidades independentes, que parecem criar a nossa unidade com toda a vida. Acho que estamos sendo corajosos. Nós estamos olhando para a realidade como ela realmente é, estamos a sendo corajosos o bastante e adultos o suficiente para saber o quão pequenos nós realmente somos. “Cosmos”, no original e nesta nova série, pretende ensinar e familiarizar o maior público possível com algumas das ideias e métodos da ciência e com alguns de seus heróis, mas também para que você sinta o que a ciência está nos dizendo. Pessoalmente, acho que isso é importante. Estamos abraçando estes desafios que só podem ser resolvidos pela ciência. Nós estamos olhando para o universo e tentando compreender como ele funciona e você não pode fazer isso sem a ciência. Há apenas uma maneira para ver isso.
Talvez, esse é um assunto muito amplo para uma conversa por telefone, mas você pessoalmente parece não sentir qualquer necessidade por uma espécie de, não sei, consolação ou necessidade mística que os mitos e a religião tradicionalmente fornecem. Você não entende essa necessidade ou é por que você considera que a ciência pode prover o mesmo sentido de amplitude e mistério, o mesmo espaço para se perguntar sobre assuntos que podem não ter resposta.
Isso mesmo. E veja que eu não tenho problema em fazer perguntas irrespondíveis ou fazer perguntas ainda sem respostas. Não tenho problema com elas e certamente com passar noites escuras da alma para respondê-las. Nunca presumiria dizer a ninguém como respondê-las para eles mesmos, nem mesmo para minhas próprias crianças. Nem mesmo pensaria nisso. Posso falar só por mim mesma quando digo “Sim, faça perguntas, quanto mais, melhor.” se você chegar com respostas que não fazem ajustes à escala de tempo e espaço que nos encontramos, isso é a mais pura falta de imaginação. Mas, sabe, em termos de fazer essas perguntas, sim, eu acho que é a origem de muito do que nós como seres humanos somos capazes de fazer.
Hum, acho que as pessoas ainda olham a religião como uma zona de certas questões que a ciência não tem como abordar. Sabe, o universo tem algum padrão ou sentido, mesmo que não possamos discerni-lo? Por que há algo em vez de nada?
Oh, sim. Sim, isso é Leibniz. Essa é a sua pergunta favorita. Em “Variedades da Experiência Científica” [um livro de memórias coescrito por Druyan e Sagan], na introdução escrevi sobre isso no contexto de uma nota que eu achei e que tinha a letra do Carl. Ele pegou aquele parágrafo [de Leibniz], resumiu-o e, em seguida, escreveu algo nas margens. Leibniz continua a dizer, e estou parafraseando, “O que aconteceria se não parássemos de fazer perguntas? Onde iríamos parar? Teríamos que dizer Deus, porque esse é o único lugar que poderíamos parar de fazer perguntas. “
Então Carl escreveu, em sua bela caligrafia de escola pública do Brooklyn: “Então, não pare.” Achei isso depois de sua morte e foi como ouvir a voz dele. E eu não poderia concordar mais. Por que Deus está me dizendo para parar de fazer perguntas? Quando desafiamos Deus ao provar do fruto da Árvore do Conhecimento é assim que nos tornamos nós mesmos. Você sabe, Deus pode não gostar desse nosso lado, mas eu sim.
Você escreveu muito sobre a desconfiança pública da ciência ou da alienação científica. Mas, certamente, você deve entender muito bem. Eu li sua exegese brilhante sobre o Jardim do Éden como uma prisão totalitária com vigilância 24 horas por dia, que é na verdade um paralelo com os filósofos alemães Max Horkheimer e Theodor Adorno. Seus temas são a relação entre mito e esclarecimento, e eles veem a história como uma parábola irônica que expõe os perigos de ambos. Mas eles estavam escrevendo no final de 1940, no despertar do Holocausto e do bombardeio de Hiroshima. Então, o lado negativo da tradição iluminista, que produziu a ciência moderna, era bastante óbvio.
Claro. Olha, em cada episódio de Cosmos nós fomos muito insistentes sobre a colocação de cada aspecto da ciência fora de seu escrutínio, é claro. Você vê a explosão da bomba Tsar [em 1961], que foi a maior explosão termonuclear na superfície da Terra. A ciência conhece o pecado? Com toda certeza. Temos usado para o mal tudo que temos ao nosso dispor.
Como tudo que temos, a ciência conheceu o pecado. Com isso quero dizer que há um empreendimento humano sequer que não esteja cheio de erros e crimes. Nós carregaremos essa bagagem evolutiva conosco onde quer que formos. Carl sempre usou isso para dizer que a questão é quais dessas tendências que temos – a tendência para educar, colaborar, compartilhar ou a tendência de dominar – é mais provável de vencer. Nós realmente queremos usar a tecnologia para a crueldade? Tudo depende de qual tipo de sociedade nós vivemos: uma que realmente tenta efetivar a cooperação ou uma que quer dar a maior recompensa? Essa parte depende de nós; temos a capacidade de otimizar isso ou aquilo. E, me entende, essa é a verdadeira questão de tudo isso: qual parte de nós vencerá?