Por Maria Eduarda Ledo de Abreu
Publicado na EurekAlert!
Estudos anteriores relacionados à ação do zika no cérebro já haviam apontado a predileção do vírus por uma determinada célula neural: o astrócito. Porém, poucas pesquisas se propuseram a identificar os efeitos causados pela infecção no funcionamento dessas células, assim como sua relação com as alterações de desenvolvimento, entre elas malformações cerebrais e microcefalia. Recém-publicado na revista Scientific Reports, um novo artigo buscou destrinchar as reações do vírus sobre astrócitos criados em laboratório, comparando-os a essas mesmas células presentes no tecido cerebral de animais e fetos infectados com o zika.
Marcados por sua estrutura de pontas ramificadas e vasta abundância no tecido cerebral humano, os astrócitos recebem esse nome por remeterem a estrelas enredando nosso órgão soberano. Essa constelação neural possui um papel fundamental nas funções cognitivas, já que fornece suporte metabólico para os nossos neurônios, participa na formação de sinapses e compõe a barreira hematoencefálica, estrutura que seleciona a entrada de substâncias no cérebro, protegendo-o de toxinas prejudiciais ao seu funcionamento. O estudo realizado pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e outras instituições brasileiras, descobriu que parte das complicações neurais causadas pelo zika pode estar relacionada ao seu dano sobre os astrócitos, o que também contribuiria para o surgimento de malformações cerebrais.
O autor correspondente do artigo foi o neurocientista Stevens Rehen, pesquisador da UFRJ e IDOR envolvido em diversos outros estudos relacionados ao zika, incluindo a primeira publicação a analisar os efeitos do vírus em minicérebros humanos. No artigo mais recente, Rehen e sua equipe destrincharam as alterações que a infecção viral causa em células neurais específicas, assim como suas consequências para o desenvolvimento cerebral. “A literatura científica já havia identificado o ataque do zika aos astrócitos, mas até então nenhum estudo havia se debruçado para entender como ele afeta seu funcionamento” afirma Karina Karmirian, integrante da equipe de Rehen e uma das primeiras autoras do estudo. Entre os prejuízos que o vírus causa a essas células, estão a sobrecarga de suas mitocôndrias, quebras no DNA e estresse oxidativo, sendo este último um aspecto comum ao envelhecimento precoce, câncer e doenças neurodegenerativas.
Múltiplas análises
Para alcançar o escopo da pesquisa, os cientistas criaram separadamente em laboratório 3 tipos celulares presentes no cérebro fetal humano: astrócitos, neurônios e células-tronco neurais. Ao serem infectados com o vírus zika, os danos mais severos foram comprovados nos astrócitos, cujas organelas responsáveis pela respiração celular – as mitocôndrias – passaram a produzir radicais livres em excesso, gerando estresse oxidativo e alterações em sua morfologia. Além da alta porcentagem de morte celular, muitos astrócitos sobreviventes passaram a apresentar núcleos celulares reduzidos e irregulares.
Helena Borges, professora da UFRJ e uma das pesquisadoras do estudo, detalha porque alguns danos do vírus zika podem ser permanentes em astrócitos. “Para se reparar quebras de dupla fita de DNA, há dois principais tipos de reparo de DNA: o que utiliza uma cópia íntegra de DNA como molde – recombinação homóloga – e um mecanismo mais rápido de reparo, mas potencialmente sujeito a gerar mutações, que dispensa a presença de uma cópia íntegra de DNA: a recombinação não-homóloga. As células proliferantes, como as células-tronco neurais, podem usar os dois mecanismos de reparo. Entretanto, células diferenciadas como astrócitos, que já não mais proliferam tanto como células-tronco neurais e progenitoras neurais, possuem uma possibilidade de recombinação homóloga reduzida, aumentando a chance de aparecerem mutações permanentes nos astrócitos”, explica.
A pesquisa também se baseou na análise de tecidos cerebrais de fetos que vieram a óbito devido à infecção. Os cientistas identificaram maiores indícios de inflamação nos astrócitos dos fetos, confirmando a relevância dessas células no padrão de ataque do vírus. O mesmo perfil inflamatório foi identificado nos estudos com animais: camundongos infectados com o vírus zika também revelaram maior vulnerabilidade dos astrócitos, em comparação com os neurônios. As células microgliais – que, como os astrócitos, são responsáveis pelo suporte aos neurônios – também foram notavelmente infectadas durante o processo. “Estas células possuem função imunológica no cérebro e alcançaram um nível de inflamação próximo ao dos astrócitos durante os experimentos. Os neurônios em si possuem baixa infecção, mas eles dependem da comunicação com os astrócitos e microglia para um desempenho saudável. Isso nos leva a supor a maneira pela qual os neurônios também podem ser afetados a longo prazo, devido à ação do zika nessas células essenciais ao funcionamento neuronal”, informa Karmirian.
As descobertas da pesquisa brasileira levam os cientistas a concluir que, devido ao papel crucial dos astrócitos na formação e funcionamento do cérebro, seu desequilíbrio durante o desenvolvimento neural deve colaborar com graves implicações à saúde ao longo de toda a vida. Não apenas em problemas relacionados a malformações cerebrais, como a microcefalia, mas possivelmente em distúrbios neurológicos manifestados na idade adulta daqueles infectados ainda no útero, independente de terem sido acometidos por microcefalia ou outras malformações aparentes. Os pesquisadores afirmam que, devido à incipiência de estudos de longo prazo relacionados ao zika, novas investigações serão necessárias para determinar as consequências da infecção em crianças e adultos, à medida que problemas neurológicos podem surgir mais tardiamente devido à ação do vírus sobre astrócitos ainda jovens.