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Crônica de um encontro científico-filosófico

Por Andrés Pereyra Rabanal

Do dia 23 (quarta-feira) ao 26 (sábado) de setembro de 2015 ocorreu o Primer Encuentro Latinoamericano de Filosofía Científica em homenagem ao físico e filósofo Mario Bunge no Centro Cultural Paco Urondo de la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA (Buenos Aires, Argentina). O Encontro foi dirigido para cientistas com vocação filosófica, filósofos com instrução científica, jornalistas científicos e o público em geral. Entre os seus lineamentos, procurou-se apresentar investigações, exposições e comentários a partir de uma filosofia em dia com a ciência, que emprega o uso de ferramentas formais (lógica e matemáticas). Frente as tradições escolásticas, a “filosofia científica” inclui a tradicional problemática da filosofia acadêmica (ontologia, semântica, gnoseologia, epistemologia e ética) bem como os problemas de primeira mão provenientes da matemática, da física, da biologia, das neurociências, da psicologia, da sociologia, das humanidades e das tecnologias físicas e sociais.

Ao contrário da suposta previsão da “morte da filosofia” anunciada por cientistas e divulgadores como Hawking, Krauss, Crick, Wilson ou Tyson (presságio que pode ser observado desde os positivistas lógicos incluindo Comte, ou Wittgenstein), o Encontro buscava demonstrar que a filosofia ainda pode propor problemas originais inspirados na ciência atual, em vez de limitar-se por comentários de autores da tradição ou da análise lógica da linguagem ordinária, ajudando a esclarecer conceitos essenciais e proporcionando soluções teóricas para perguntas mal formuladas provenientes de diversas disciplinas. Talvez o caráter distintivo do evento foi a presença de cientistas e acadêmicos que apresentavam suas próprias controvérsias filosóficas sem apelar à autoridade ou as diversas modas como o “pensamento débil”, a hermenêutica filosófica, o construtivismo radical, o pós-modernismo ou as tendências irracionalistas da atualidade que pouco ou nada contribuíram para o aumento do conhecimento sobre o mundo. Eram homens de ciência que, sem abandonar o método e nem o enfoque da ciência, compreendiam o valor da filosofia além das aulas ou das notas de rodapé. Eles buscavam a filosofia na ciência em si mesma, em vez dos textos clássicos ou das “vacas sagradas” do passado (p. ex., Hegel, Heidegger, Derrida, Lyotard, Vattimo, etc.).

Organizado por G. E. Romero (astrofísico relativista), F. López Armengol (físico), G. Primero (psicólogo e investigador da UBACyT), J. López de Casenave (biólogo), M. Castro (sociólogo), F. Aisenberg (comunicador), P. Jacovkis (matemático), R. Kreimer (filósofa com estudos doutorais em ciências sociais), e G. Garay (músico), Buenos Aires recebeu cerca de 50 papers sobre problemas filosóficos orientados pela ciência ou por questões sociais.

A exposição magistral esteve a cargo de Mario Bunge que expôs sobre a necessidade de axiomatizar as teorias científicas. Os filósofos poderiam encarregar-se assim dos postulados centrais e das ideias em si, em vez da teoria completa de uma ciência específica (para o qual necessita-se de uma formação de especialista) mas sem substituir o trabalho intuitivo, empírico, experimental e teórico do cientista para que o slogan acabe sendo um postulado didático para o tratamento de algumas questões presentes no limite entre a ciência e a filosofia. Um exemplo mencionado foi a psicologia. Os primeiros a oferecer um tratamento axiomático da ciência do comportamento foram os analistas experimentais do comportamento que confundiram a medida com a teoria da medição (Krantz, Luce, Suppes e Tversky). Do mesmo modo, não é suficiente com a estatística e nem com a psicometria pois tais ferramentas lidam apenas com dados e indicadores sem abordar teorias abstratas, grupo e semigrupos, teorias não quantitativas, lógica matemática, etc., para a construção de modelos sobre funções psicológicas.

Os papeis restantes foram diversos desde a filosofia da física quântica até alguns problemas epistemológicos da arqueologia passando por novos modelos familiares na sociedade moderna. A multiplicidade de interesse revelou que a filosofia tal como a concebem Peirce, Russell ou Bunge não é um luxo desnecessário, mas uma fonte de interrogações que demandam ser atendidas para orientar uma investigação científica ou a abordagem de um problema conceitual. Por exemplo, de maneira rigorosa e sistemática, a filosofia discute a interpretação semântica da teoria quântica (Born, Heisenberg), a independência teórica da biologia (Mayr), o alcance da indução na análise experimental do comportamento (Skinner), a racionalidade nas ciências sociais (Albert), ou a demarcação entre ciência e pseudociência (Piggliuci), em vez de limitar-se ao comentário dos idealistas alemães ou estruturalistas franceses.

Embora os céticos tenham insistido que essas tais contribuições sejam valiosas para a formação científica de seus expositores, tais problemas não deixam de ser filosóficos apesar de serem levantados por especialistas de suas áreas. Em particular, uma interpretação materialista (ou idealista) da mecânica quântica não é tanto científica como filosófica (Bohn 1952; Bunge 1972). Tampouco o conceito de “conflito” (ou dialética), tão comum nos estudos sociais, seja elucidado mediante casos confirmados da suposta competência entre os agentes sociais sem uma semântica exata (Bunge 2009; 2013); nem a “mudança social” na cultura (Wan 2011) se entende sem um adequado significado de “causalidade”. Finalmente, a discussão sobre as normas morais e jurídicas pode enriquecer-se prestando atenção na psicologia social, na economia comportamental e na antropologia cultural (Wagensberg 2014), em vez da tradição ou da teologia.

Assim, eles também enfatizaram as diferenças de formação dos expositores que davam conta da necessidade de filosofar cientificamente de acordo com o desenvolvimento de cada disciplina contando com exposições altamente formalizadas para apresentações de divulgação em distintas áreas. Incapaz de fazer justiça a todas as apresentações, sobressaíram as seguintes:

  • A física é uma das principais fontes de problemas filosóficos. Martha Burgos (física) discutiu o fundo positivista da mecânica quântica ortodoxa que é incompatível com as leis da conservação que implicam na medição dos processos espontâneos cuja evolução depende da equação de Schrödinger, não do observador. Embora a interpretação ortodoxa (ou de Copenhague) seja incoerente, ela é bem sucedida. Mas a mesma não constitui uma teoria. Luciano Combi (físico) rechaçou a existência independente das evoluções dinâmicas de um sistema físico de acordo com a interpretação de Everett por ser inconsistente com o formalismo da mecânica quântica. Embora a dita interpretação seja realista, também o são suas consequências: a alegada existência de mundos paralelos quando o estado quântico deve ser o único objeto básico da teoria sem admitir a existência do resto de possíveis estados dinâmicos (ou universos) do sistema, válido para a ficção científica, mas não para a ciência teórica. De sua parte, Fernando Lomoc (físico) e López Armengol (físico) concluíram que a relação entre física e filosofia é atualmente disfuncional em detrimento das interpretações heterodoxas de algumas teorias físicas.
  • A biologia também foi discutida por Rodrigo Mendel (ecólogo). Voltado para o desenvolvimento da epigenética e biologia evolutiva do desenvolvimento (evo-devo), foi proposto que a história da biologia não supõe uma crise de “paradigma darwiniano”, mas uma especiação que não substitui o conhecimento anterior, mas permite o surgimento de um novo campo de conhecimento especializado. Guillermo Denegri (zoólogo) buscou implementar postulados sistêmicos na parasitologia, especialmente a noção de “associação (biológica)” para esclarecer o conceito de parasitismo e a noção de “desequilíbrio de sistema” para entender melhor o conceito de parasitores. Pablo Lorenzano (filósofo) tomou partido pela metateoria estruturalista para a reconstrução axiomática das teorias biológicas.
  • A psicologia obteve a sua atenção. Gerardo Primero (psicólogo) questionou a filosofia subjacente das ciências do comportamento, enfatizando a possibilidade de compreensão da aprendizagem através das leis de reforço, propostas pela análise do comportamento com os suportes do conhecimento dos mecanismos neurais. Diego Sarasola (médico psiquiatra) criticou a persistência do dualismo à luz da evidência clínica, citando casos de atrofias e demências frontotemporais como variáveis independentes para uma mudança (patológica) de comportamento com a crença em uma mente ou alma desencarnada, que é cientificamente injustificável. Agostina Vorano (psicóloga) destacou a lamentável situação escolástica na formação psicológica diferenciada de tentar qualquer unificação (Ardila, Staats) ou defesa de pluralismo (Vilanova, Sternberg). Sem a unidade do método científico não se pode falar de uma ciência madura porque a coexistência de sistemas se ampara na renúncia do diálogo, na deslegitimação da evidência e na endogamia institucional.
  • As ciências sociais também foram discutidas à luz da filosofia científica. Andone Gurruchaga (arqueólogo) acrescentou os problemas epistemológicos da arqueologia sobre os problemas inversos e indicadores empíricos. Sendo a única ciência social que trabalha sem contato direto com o seu objeto de estudo, a arqueologia enfatiza a retrodição mais do que a predição, assim como a discussão sobre o que conta propriamente como evidência do passado. Sugerindo que a psicologia, a primatologia e a economia podem apoiar as nossas noções de justiça distributiva, Martin Daguerre (economista) sugeriu que devemos ter em conta os aspectos científicos, em vez de ideologias. Do outro lado, Jorge Enrique Senior Martínez (filósofo) discutiu a possível biologização das ciências sociais.
  • Para as ciências formais, Pablo Jacovkis (matemático) abordou o problema da existência matemática e a existência fática, indicando que os teoremas são descobertos, enquanto que a tarefa própria do matemático é a invenção de sua demonstração. Aldana D’Andrea (filósofa) discutiu o Entscheidungsproblem de Hilbert e a relevância das teses de Turing para a filosofia. Enquanto isso, Gustavo Romero (astrofísico relativista) deu uma contribuição importante para o nosso conceito de verdade. Partindo da noção bungeana de “verdade parcial”, a questão da relevância estava sempre aberta. Um enunciado relevante (pertinente a um domínio ou contexto), mas falso em conjunção com n enunciados irrelevantes (quando n → ∞) é 1. Por isso mesmo, podemos construir um enunciado verdadeiro, mas irrelevante. É necessário construir, portanto, uma função matemática de relevância para avaliar o valor de verdade das proposições científicas.
  • Finalmente, as tecnologias foram abordadas por Marcelo Bosch (engenheiro agrônomo), de acordo com suas reflexões sobre o potencial da Ciência e Tecnologia. Não é possível e nem desejável instaurar uma adequada política tecnológica sem uma dose apropriada de filosofia que incorpore alguns elementos para o debate, especialmente sobre os erros e acertos de sua previsão, incoerências metodológicas e critérios de utilidade técnica. Paul Eduardo Femenia (engenheiro elétrico) destacou a diferença metodológica entre a ciência aplicada, que prioriza a verificação e a eficiência, frente à metodologia falsificacionista e/ou contrastável  da ciência básica.

Os outros temas tratados foram os debates em torno do Big Bang, a ontologia dos campos quantizados, a filosofia da química, a administração, o conceito estrutural de pobreza, a medicina, o livre arbítrio, o cientificismo, as pseudociências e até a música. Como se percebe, quase nenhuma discussão foi sobre Bunge, mas sobre os problemas originais que são considerados relevante à luz da ciência, da técnica e da sociedade. Em síntese, se tratou de um evento sui generis. Como indicava Lomoc, não existe neutralidade filosófica sem suposições implícitas ou tácitas e o Primer Encuentro Latinoamericano de Filosofía Científica buscou estabelecer a semente de uma filosofia científica para que se distinga dos simpósios filosóficos de orientações tradicionais.

Durante quatro dias – e com um clima chuvoso pouco favorável -, Buenos Aires tentou distanciar-se das discussões escolásticas comuns nos Congressos de Filosofia acostumados a discutir autores do passado, em vez de encontrar a filosofia na ciência, no laboratório, na indústria ou na sociedade. Evitando reflexões vazias em torno do ser-para-si, o Nada, o Lebenswelt, a alteridade, ou os mundos possíveis, não se pretende negar a função da filosofia como procuram fazer alguns comunicadores da ciência. A negação da filosofia não elimina os sérios problemas filosóficos, ainda que sejam formulados pelos próprios cientistas, ou seja, de maneira exata e rigorosa.

Como afirmou recentemente Bunge (2015), não basta a convivência ou falsa tolerância (baluarte do relativismo), não é suficiente para as escolas irracionalistas, subjetivistas ou anticientíficas. Tampouco é admissível o apreço pelos pensadores obscuros que pouco contribuem para conhecer melhor o nosso meio natural e social. A filosofia deve estar encaminhada pela busca da verdade e boa filosofia científica, que é fértil para os investigadores em atividade, ao contrário das filosofia de escola (desde o positivismo até a fenomenologia) que são convenientes apenas para professores e historiadores. Se trata de pensar cientificamente os problemas filosóficos, as questões éticas e até mesmo o futuro da humanidade e enfrentar a pseudociência sem apelar as mitologias do presente. Fomentar maiores contribuições substantivas ao invés de apresentações programáticas será o desafio do próximo Encontro de Filosofia Científica em qualquer outro país latino-americano, cujo os processos estão próximos para a publicação para o público em geral.

Link do evento:

http://filosofia-cientifica.iar-conicet.gov.ar/

Referências

  1. Bohm, D: (1952). A Suggested Interpretation of the Quantum Theory in Terms of “Hidden Variables”. Physical Review. 85: 166–179
  2. Bunge, M. (2009). Epistemología. Curso de actualización. México: Siglo XXI
  3. Bunge, M. (2015). Evaluando filosofías. Una protesta, una propuesta y respuestas a cuestiones filosóficas descuidadas. Barcelona: Gedisa
  4. Bunge, M. (2013). Materialismo y ciencia. Madrid: Laetoli
  5. Bunge, M. (1972). Philosophy of Physics. Dordrecht, Holland & Boston. Massachusets: D. Reidel Publishing Company
  6. Fernández, M., y Manucci, L. (2015). Filosofía & ciencia: charlas y chispazos en el ágora porteño. Factor 302.4. Disponible en: [http://factorelblog.com/2015/10/05/filosofia-ciencia/]
  7. Wagensberg, J. (2014). Si la naturaleza es la respuesta ¿cuál era la pregunta?: y otros quinientos pensamientos sobre la incertidumbre. Madrid: Tusquets Editores
  8. Wan, P.Y. (2011). Reframing the Social: Emergentist Systemism and Social Theory. Aldershot: Ashgate Publishing
Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.