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De que cor é terça-feira?

Por Mariana Breidenbach*

Sentimos, cheiramos, vemos. A experiência de mundo, o sentir, é única para cada pessoa. Cada indivíduo percebe a realidade que o cerca de maneira própria e, assim, constrói percepções sensoriais singulares. Cada sentido tem suas particularidades, capacidades, limitações e não é simultâneo, o que torna cada experiência de vida excepcional.

Em 2009, Richard Cytowic e David Eagleman lançaram um livro documentando uma forma singular de perceber o mundo. O livro, Wednesday Is Indigo Blue: Discovering the Brain of Synesthesia (Quartas-feiras em Azul Indigo: Descobrindo o Cérebro da Sinestesia, em tradução livre), registrava e tentava procurar as razões para um fenômeno que permitia a mistura simultânea de sensações. Ou seja, o livro era um relato sobre sinestesia.

Letras e sons com cores, palavras com sons. A palavra sinestesia deriva do grego antigo syn, junto, e aisthēsis, sensação. Logo, sinestesia é a combinação simultânea de sensações. Durante um estímulo cognitivo, uma região cerebral é normalmente estimulada e, em pessoas sinestésicas, uma segunda região é incitada concomitantemente. A sinestesia é uma condição involuntária: não se pode controlar quando a mistura de sentidos irá ocorrer e é uma particularidade muito estável. A associação de cores e letras, por exemplo, se forma muito cedo e não muda conforme o envelhecimento.

Embora bastante estudada, a causa da sinestesia ainda não foi elucidada. Uma das maiores dificuldades ao estudar o assunto é falta de aceitação e autoconhecimento. Muitas pessoas sinestésicas acreditam que todos sentem o mundo com percepções misturadas e só notam que possuem uma singularidade ao conversarem com pessoas não sinestésicas. Outros não falam por medo de serem considerados loucos. Os primeiros relatos sobre sinestesia não eram considerados casos reais por parte da comunidade científica. Existem diversas teorias sobre a sinestesia. As duas mais conflitantes e mais importantes serão debatidas a seguir.

A Hipótese Neurobiológica é baseada na teoria de que a sinestesia é causada por uma alteração entre as conexões neuronais do cérebro. Ela permite uma hiperconectividade entre as áreas cerebrais. No cérebro não sinestésico, sensações distintas são assimiladas em regiões diferentes e separadas, com pouca comunicação. Já nos sinestésicos, existe uma maior conexão entre neurônios, aumentando a probabilidade das áreas sensoriais se comunicarem. A experiência de ver cores ao olhar para letras, por exemplo, pode vir da conexão entre a área de reconhecimento de letras e a área de reconhecimento de cores. A maioria dos modelos virtuais de cérebros sinestésicos propõe que a sinestesia deriva de um padrão atípico de conexões entre o processamento de formas e o processamento de cores, sendo que a diferença pode ser estrutural ou funcional. Em ambos os casos, a experiência sinestésica induz atividades neuronais em regiões normalmente envolvidas com experiências simultâneas. Além disso, pesquisadores acreditam que possa resultar de uma condição genética, possivelmente passada pela mãe, uma vez que mulheres são mais afetadas do que homens e os sinestésicos geralmente possuem familiares sinestésicos. Daphne Maurer, uma psicóloga da Universidade de McMaster, acredita que todos nascem com sinestesia, porém, a maioria a perde conforme cresce.

Existem evidências da Hipótese Neurobiológica: estudos mostraram a ativação da área V2/V4 (área do cérebro responsável pela assimilação de cores) durante estímulos de sons que sinestésicos consideravam coloridos. Porém, os resultados são poucos e muito criticados. Pesquisas dessa área são reprovadas devido a erros estatísticos, métodos questionáveis ou dados com pouca significância estatística.

A contraposta à Hipótese Neurobiológica é a Hipótese do Aprendizado. Segundo essa hipótese, a sinestesia é adquirida. A associação sinestésica realizada pelo adulto é baseada em um processo gradual de aprendizado, já que crianças utilizam a associação de sentidos como forma de facilitar a internalização de conceitos abstratos. A sinestesia entre cores e letras, em alguns casos, deriva de brinquedos da infância dos sinestésicos ou de cartazes coloridos nas salas de aula do jardim de infância.

A hipótese do aprendizado acredita que possam existir influências genéticas ou neurobiológicas, mas, o aprendizado é fundamental para a formação do sinestésico. As associações feitas quando criança serão as relações sinestésicas no adulto. Os pesquisadores dividem as associações em dois grupos: de primeira ordem e de segunda ordem. Associações de primeira ordem são as que correlacionam elementos únicos de diferentes domínios, como um elemento de letras e um de cores. Exemplificando: Em sinestésicos que tem inglês como primeira língua, a letra P é muitas vezes associada com a cor roxa (purple em inglês). Já as associações de segunda ordem podem ser pensadas como uma ‘’relação entre relações’’. Nesse caso, padrões são associados em vez de elementos únicos. Por exemplo, letras que têm grafia parecida, como E e F, tendem a ter a mesma cor.

Embora pouco elucidada, a sinestesia é um processo real, único e fascinante. A história da sinestesia teve diversas contradições e debates, sendo considerada imaginação até ser reconhecida como algo real e biológico. As associações sinestésicas são arbitrárias, involuntárias e não podem ser suprimida, portanto, são inevitáveis. Quer seja uma condição genética ou adquirida, ela permite o entendimento de visões de mundo singulares, de percepções de realidades individuais. A sinestesia é formada por conexões e associações que os próprios sinestésicos não conseguem compreender. É uma forma excepcional de perceber a realidade, de sentir a vida.  É uma singularidade que transforma a percepção de quem a tem.

Referências:

  • Deroy O, Spence C. Lessons of synaesthesia for consciousness: Learning from the exception, rather than the general. Neuropsychologia. 2016; 88:49-57.
  • Hupé J-M, Dojat M. A critical review of the neuroimaging literature on synesthesia. Frontiers in Human Neuroscience. 2015;9:103. doi:10.3389/fnhum.2015.00103.
  • Safran AB, Sanda N. Color synesthesia. Insight into perception, emotion, and consciousness. Current Opinion in Neurology. 2015;28(1):36-44. doi:10.1097/WCO.0000000000000169.
  • Watson MR, Akins KA, Spiker C, Crawford L, Enns JT. Synesthesia and learning: a critical review and novel theory. Frontiers in Human Neuroscience. 2014; 8:98. doi:10.3389/fnhum.2014.00098.

 

*Este texto foi produzido por Mariana Breidenbach, graduanda em Biomedicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como proposta de trabalho da disciplina Introdução à Psicologia para Biomedicina. Simulando o processo editorial de publicações científicas (double-blind peer review), após a produção do texto original, dois outros alunos revisaram anonimamente o manuscrito da colega e deram sugestões para o aperfeiçoamento do mesmo. Assim, Mariana produziu e aprimorou o texto acima, o qual revisei e selecionei para ser publicado aqui, no Universo Racionalista.
Destaco e agradeço a importante iniciativa do Universo Racionalista neste projeto. Ao incentivar a divulgação científica produzida por alunos de graduação, ele não apenas amplia o acesso ao conhecimento gerado na academia, como também ajuda a expandir as perspectivas destes profissionais em formação.
João Centurion Cabral

João Centurion Cabral

Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento (LPNeC). Além de ser pesquisador/doutorando em tempo integral e divulgador de ciência nas (poucas) horas vagas, sou um curioso nato buscando entender a natureza do comportamento humano.