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Discos voadores da Terra oca: a bossa-nova da pseudociência

Traduzido por Julio Batista
Original de Carlos Orsi para o The Skeptic

Na segunda metade da década de 1950, o Brasil fez o que podemos chamar de três grandes contribuições para a cultura mundial: futebol-arte (o belo e poético estilo de jogo da seleção nacional que venceu a Copa do Mundo de 1958); bossa-nova, a mistura de samba e jazz que seduziu nomes como Frank Sinatra e Stan Getz; e, mais especificamente, neste artigo: discos voadores da Terra Oca.

“Teoria da Terra Oca” é o nome dado a uma família de mitos e alegações pseudocientíficas que postulam que o planeta Terra é literalmente oco (com oceanos e continentes na superfície interna da crosta e o núcleo metálico incandescente, flutuando no centro, servindo como um sol em miniatura) ou que possui vastas cavidades em seu interior, grandes o suficiente para conter biomas e civilizações inteiras.

Muitas evidências, da sismologia à astronomia, mostram que essas teorias estão todas erradas. Mas a ideia da Terra Oca era bastante popular nos Estados Unidos no século 19 (segundo alguns historiadores, porque prometia novas terras para conquistar e a colonização pelo sempre insatisfeito homem branco). Inspirou escritores de fantasia e ficção científica de Júlio Verne a Edgard Rice Burroughs e muito mais. Os fãs de quadrinhos podem se lembrar da série de espadas e feitiçarias dos anos 1980, “The Warlord”, da DC Comics, que se passava na superfície interna infestada de dinossauros da Terra oca.

O alvorecer do movimento da Nova Era na década de 1960 reavivou o interesse pelo assunto e o livro preferido dos curiosos se chamava, previsivelmente, “The Hollow Earth” (A Terra Oca), do Dr. Raymond Bernard, publicado em 1963. Entre outras reflexões, Bernard (pseudônimo de Walter Siegmeister, um escritor de assuntos relacionados a alimentação saudável com profundo interesse em esoterismo, continentes perdidos e eugenia, que havia obtido um PhD em Pedagogia Waldorf) debateu a possibilidade de que os OVNIs pudessem vir de dentro da Terra. Ele escreveu que:

“a teoria de que os discos voadores vieram do interior da Terra e não de outros planetas surgiu no Brasil e só mais tarde foi adotada pelos especialistas estadunidenses em discos voadores.”

Bernard/Siegmeister menciona ter encontrado o livro “From the Subterranean World to the Sky: Flying Saucers” (Do Mundo Subterrâneo para os Céus: Discos Voadores), de OC Huguenin, em uma livraria em São Paulo. Huguenin, por sua vez, recebeu suas informações sobre discos voadores e o interior da Terra de membros da Sociedade Teosófica Brasileira.

O autor Walter Kafton-Minkel, cujo livro “Subterranean Worlds” (Mundos Subterrâneos; uma espécie de visão geral da “história das ideias” acerca do tema da Terra Oca) é a principal fonte de informações biográficas sobre Siegmeister, escrevendo em uma nota de rodapé:

“Procurei por anos uma cópia deste livro [de Huguenin], mas a referência de Bernard é a única evidência que consegui descobrir de que ele realmente existiu.”

Eu havia chegado ao livro de Kafton-Minkel durante minha pesquisa sobre “Ratanabá”, um suposto reino subterrâneo fundado por OVNIs sob a floresta amazônica que algumas figuras infames da política de extrema-direita brasileira apregoavam como a “verdadeira” razão para a presença do jornalista britânico Dom Phillips na região. Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira foram assassinados em julho na floresta tropical, supostamente por terem encontrado uma pesca ilegal em uma área de proteção ambiental.

Logo descobri que, tirando o clichê de civilização perdida na selva, “Ratanabá” não tem raízes legítimas em lendas, folclore ou mito. A literatura, porém, se mostrava sugestiva: não só o nome se aproxima bastante de um anagrama de “Atvatabar” , o mundo subterrâneo que aparece em um romance estadunidense de ficção científica de 1892, como também havia aquela referência ao evasivo livro supostamente encontrado em São Paulo.

A ideia de um misterioso livro brasileiro sobre OVNIs e a Terra Oca me intrigou. Sendo brasileiro, e tendo à minha disposição as ferramentas de busca na internet (o livro de Kafton-Minkel é da década de 1980, bem na era pré-Google), consegui obter um exemplar do livro de Huguenin (primeiro – e possivelmente única) edição, datada de 1956) e algumas informações sobre o seu autor. Seu nome completo era Orlando Carlomagno Huguenin, nascido em 1917, era jornalista carioca, ávido enxadrista e por algum tempo aspirante a político – em 1954 concorreu à cadeira de vereador do Rio, parte de uma ala vinculada ao Integralismo, a versão brasileira do fascismo.

Também descobri outra coisa: a Sociedade Teosófica Brasileira (que mais tarde mudou seu nome para Sociedade Brasileira de Eubiose, e existe até hoje) vinha, na época, promovendo sua teoria dos “discos voadores da Terra Oca” para as elites brasileiras, ganhando acesso à grande mídia para fazê-lo.

Na década de 1950, a revista “O Cruzeiro” era o periódico mais lido no país, equiparando-se ao “Life” nos Estados Unidos. E em 1955, por três números consecutivos, a revista dedicou amplo espaço – com enormes ilustrações de página inteira – a uma série de palestras e entrevistas com teosofistas que expunham suas ideias sobre a Terra Oca, as pessoas que vivem lá, o propósito da discos voadores, sobre como o estado brasileiro de Minas Gerais estava bem no topo de uma das mais importantes cidades subterrâneas, e assim por diante. Conseguiram incluir no mesmo pacote o Continente Perdido da Atlântida e a visita de antigos navegadores fenícios ao Rio de Janeiro.

Não que esse tipo de bobagem fosse estranho para “O Cruzeiro”. Em seu livro “A Invenção dos Discos Voadores”, o historiador brasileiro Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos conta como o jornalista João Martins e o fotógrafo Ed Keffel instigaram o nascimento da ufologia brasileira entre si, forjando uma imagem de um disco voador que foi publicada pela revista, em 1952. Martins, aliás, foi o autor das entrevistas aos Teosofistas em 1955, e em seu livro, Huguenin, ele próprio jornalista (trabalhava em jornal diário), refere-se a ele como um “colega”.

A essência da doutrina era que a hora do Juízo Final estava próxima e que a futura raça superior encarregada de redimir a humanidade viria do Brasil, com uma pequena ajuda de semideuses subterrâneos em discos voadores. O prazo para esses eventos, aliás, era 2005.

Segundo Kafton-Minkel, Bernard desapareceu e, provavelmente, morreu no Brasil – parou de responder cartas enviadas dos EUA em 1965, e o correio brasileiro passou a devolver correspondências aos remetentes com carimbo de “FALECIDO”. Pelo que sabemos, ele foi para o túmulo ainda acreditando que a entrada para uma utopia subterrânea poderia ser encontrada em algum lugar da América do Sul. E graças ao seu livro de 1963, uma ideia pseudocientífica maluca inventada por um grupo esotérico brasileiro e promovida por jornalistas duvidosos no Rio de Janeiro ganhou popularidade em todo o mundo (que definitivamente não é oco).

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.