Traduzido por Julio Batista
Original de Agustín Fuentes para o Scientific American
Existem aqueles, políticos, especialistas e até mesmo alguns cientistas, que sustentam que se nossos corpos produzem óvulos ou espermatozoides é tudo o que precisamos saber sobre sexo. Eles afirmam que homens e mulheres são definidos pela produção dessas células de gametas, tornando-os um par binário biológico distinto, e que nossos direitos legais e possibilidades sociais devem fluir dessa divisão. Homens são homens. Mulheres são mulheres. Simples.
As audiências da Suprema Corte dos Estados Unidos do ano passado abrigaram essa disputa quando representantes republicanos do Congresso, chateados com a recusa do candidato em definir o que é “mulher”, assumiram a responsabilidade de definir o termo; eles denifiram como “o sexo frágil”, “uma mãe” e “sem pênis”. O fato do sexo humano se basear em um binário biológico de produção de espermatozoides ou óvulos é a base de todas essas afirmações.
Isso é o que chamamos de “ciência lixo”. A produção de gametas não descreve suficientemente a biologia sexual em animais, nem é a definição de mulher ou homem.
O reino animal não se limita a apenas ao binarismo sexual biológico sobre como uma espécie produz gametas. Cientificamente falando, os animais com capacidade de produzir óvulos são geralmente chamados de “fêmeas” e os produtores de esperma de “machos”. Embora a maioria das espécies animais caia no modelo dos “dois tipos de gametas produzidos por duas versões do trato reprodutivo”, muitas não seguem essa lógica. Alguns vermes produzem ambos. Alguns peixes começam a produzir um tipo e depois mudam para o outro, e alguns mudam constantemente ao longo de suas vidas. Existem até lagartos que acabaram com um tipo misturado. Entre nossos companheiros mamíferos, que são menos flexíveis por causa das restrições da lactação e a gestação para o nascimento vivo, existem conexões variadas entre gametas e gordura corporal, tamanho do corpo, músculos, metabolismo, função cerebral e muito mais.
Embora o esperma e os óvulos sejam importantes, eles não são a totalidade da biologia e não nos dizem tudo o que precisamos saber sobre sexo, especialmente sobre o sexo humano.
Deixe-me ser claro: não estou argumentando que as diferenças na biologia sexual não importam. Elas importam sim. Também não estou afirmando que a fisiologia reprodutiva não é um aspecto importante da vida de todos os animais. Por exemplo, os humanos são mamíferos, e as especificidades da gestação e lactação requerem diferenças corporais que moldam as fisiologias, sociedades e experiências humanas. Mas, mesmo assim, a maioria dos sistemas corporais se sobrepõe extensivamente entre grandes (óvulos) e pequenos (espermatozoides) produtores de gametas, e os padrões de fisiologia e comportamento em relação ao nascimento e cuidados com a prole não são universais entre as espécies. Por exemplo, em muitas espécies de mamíferos, os produtores de óvulos se encarregam a maior parte dos cuidados infantis. Mas em algumas espécies, os produtores de esperma que assumem esse papel, e em muito poucas espécies eles até lactam. Em outros, há investimentos substanciais de ambos os sexos nesses papéis.
O ponto principal é que, embora os gametas animais possam ser descritos como binários (de dois tipos distintos), os sistemas fisiológicos, os comportamentos e os indivíduos que os produzem não podem. Essa realidade da biologia sexual é bem resumida por um grupo de biólogos que escreveu recentemente: “a confiança em categorias binárias estritas de sexo falha em capturar com precisão a natureza diversa e matizada do sexo”.
Sabemos que os humanos exibem uma gama de padrões biológicos e comportamentais relacionados à biologia sexual que se sobrepõem e divergem. Produzir óvulos ou esperma não nos diz tudo (ou mesmo a maioria das coisas) biológica ou socialmente, sobre a capacidade individual de cuidar de crianças, tendências domésticas, atrações sexuais, interesse em literatura, capacidades de engenharia e matemática ou tendências para fofocar, violência, compaixão, senso de identidade, ou amor e competência para esportes. Os gametas e a fisiologia da produção de gametas, por si só, são apenas uma parte da totalidade da vida humana. Dados e análises abundantes sustentam as afirmações de que o sexo é muito complexo nos humanos e que as explicações binárias e simplistas para a biologia do sexo humano são totalmente incorretas ou são substancialmente incompletas.
Para os humanos, o sexo é dinâmico, biológico, cultural e emaranhado em ciclos de retroalimentação com nossos ambientes, ecologias e múltiplos processos fisiológicos e sociais.
Então, quando alguém afirma que “o sexo de um organismo é definido pelo tipo de gameta (esperma ou óvulo) que tem a função de produzir” e argumenta que a política legal e social deve estar “enraizada nas propriedades dos corpos”, não está realmente falando sobre gametas e biologia sexual. Eles estão defendendo uma definição política específica e discriminatória do que é “natural” e “certo” para os humanos com base em uma falsa representação da biologia. Ao longo dos últimos séculos, esse processo de deturpação da biologia foi, e ainda é, usado para negar os direitos das mulheres e justificar a misoginia e a desigualdade legal e social, para justificar a escravidão, a racialização, o racismo e impor múltiplas formas de discriminação e preconceito. Hoje, atribuições desonestas do que é a biologia estão sendo usadas para restringir a autonomia corporal das mulheres, atingir amplamente os indivíduos LGBTQIA+ e, mais recentemente, atacar os direitos das pessoas transexuais e transgêneros.
Dado o que sabemos sobre biologia em animais e em humanos, os esforços para representar o sexo humano como binário com base apenas nos gametas produzidos não são sobre biologia, mas sobre tentar restringir quem seria um humano completo na sociedade.