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Entomologia Forense

História da Entomologia Forense

Um corpo de um homem foi encontrado em uma estrada da China. A hipótese inicial do investigador era de um caso de latrocínio, roubo seguindo de morte. Entretanto, ao avaliar com maior clareza a cena, notou que todos os pertences de valores permaneciam no local e que a vítima sofreu dez ferimentos, suspeitando que a arma utilizada foi uma foice.  Então o investigador decidiu ir em busca da viúva e perguntar se o seu recém falecido marido possuía algum inimigo, elaborando assim uma nova linha investigativa.  Ela respondeu com a seguinte frase “Meu marido não costuma ter inimigos, somente um homem que pediu dinheiro emprestado, porém meu marido se recusou. Então o homem disse alguma coisa para ele, mas nada muito sério”.

O investigador, examinou a casa da vítima e pediu que seu ajudante coletasse todas as foices das famílias próximas a residência. Nessa época da China, era muito comum que as famílias possuíssem suas próprias ferramentas.  A procura foi minuciosa e mantendo a suspeita caso alguém tentasse esconder a foice, poderia ser considerado suspeito.

Foram coletadas entre 70 a 80 foices, todas colocadas no chão. Não durou muito tempo quando as primeiras moscas começaram a pousar em uma das foices. A arma pertencia ao homem que a viúva havia mencionado anteriormente. O suspeito foi interrogado e não confessou o crime, porém quando foi confrontado com os rastros de sangue na foice, confessou ajoelhado.

Este caso aconteceu no século XIII, sendo o primeiro registro da história, onde os insetos foram utilizados para resolver uma investigação. Publicado por Sung Tzú em The Washing Aways of Wrongs (A lavagem dos erros, tradução livre). Apesar disso, a relação de insetos e cadáveres já era bem descrita por outras civilizações bem antigas, como a Babilônia e Egito, onde as moscas eram utilizados em amuletos e relatados em papiros nas múmias.

Trecho do livro “The Washing Aways of Wrongs” publicado por Sung Tzú no séc. XIII na China.

Somente em 1894, Bergeret d’Arbois utilizou os insetos para estimar o intervalo post-mortem (IPM) em um corpo de um bebê recém-nascido. Apesar de ter assumido equivocadamente boa parte das informações sobre o desenvolvimento dos insetos, seu trabalho foi extremamente inovador. As fundamentações teóricas foram publicadas no livro “La faune des cadavres: application de l’entomologie a la medecine legale” em 1894 por Jean Pierre Mégnin, que se tornou um dos livros mais importantes sobre o tema até hoje. Mesmo com o trabalho de Mégnin, a entomologia forense ficou esquecida por alguns anos, com poucos trabalhos sendo publicados até o século XX, com o surgimento de manuais e grupos de pesquisas especializados, a utilização dos insetos se tornou rotina nas investigações.

As aplicações da entomologia forense

A entomologia forense está dividida em três subáreas investigativas: Médico-Legal, Produtos Armazenados e Urbana.

  • Em homicídios, tortura, acidentes em massa, genocídios e entre outros tipos que envolvem algum tipo de violência contra a pessoa, são assuntos tratados pelo subárea médico-legal. Costuma ser mais utilizada para determinar o IPM, entretanto os insetos podem denunciar outras informações como presença de drogas ou veneno, perturbações no cadáver, causa da morte e a associação do suspeito com a cena de crime.
  • A aplicação em produtos armazenados é em alimentos ou outros produtos que precisam estar estocados por um determinado tempo, independentemente de sua extensão, indicando contaminação e infestações, tentando determinar quando ocorreu ou simplesmente para controle de qualidade.
  • A entomologia forense Urbana é relacionada a estruturas, bens e imóveis. Os casos mais comuns são a infestações de cupins, as quais podem determinar o período de infestação e indicar de quem era a responsabilidade do imóvel durante aquele momento.

 Dentre essa gama de aplicações da entomologia forense, a estimativa do IPM é a de maior importância para as pesquisas e investigações.

O cadáver e os insetos

 A decomposição inicia através do processo de autólise e as bactérias do sistema gastrointestinal passam a destruir o tecido mole. Com o crescimento da atividade bacteriana são liberadas diversos gases e líquido de moléculas voláteis as quais atraem os insetos até o cadáver. Esses gases e líquidos são chamados de apeneumones e geralmente são dióxido de carbono, metano, amônia, dióxido de enxofre, hidrogênio e sulfeto de hidrogênio.

Apesar da grande diversidade de animais encontrados no cadáver, nem todos são atraídos devidos os apeneumones, mas sim pela riqueza de nutrientes no local.  Logo, os animais são classificados em quatro grupos: Espécies necrófagas, que se alimentam da carcaça; Predadores e parasitas, que se alimentam do grupo anterior; Onívoros são os que se alimentam da carcaça e de outros artrópodes; e Adventícias ou acidentais  que se aproveitam da carcaça como uma parte de seu ambiente, seja ela para abrigo ou buscar alimentos. Dentro dessa grande riqueza de animais, duas ordens possuem interesse forense, os Dípteras (moscas) e os Coleópteras (besouros).

Mosca da família Calliphoridae, um dos grupos mais comuns entre os insetos necrofagos. Fonte: Karol Ox.

 Os dípteros são o primeiro grupo a chegar, especificamente da família Calliphoridae, em até uma hora após a morte. O principal interesse das moscas é a alimentação e reprodução, onde toda esse microambiente afetado pelo cadáver é chamado de ilha de decomposição (IDE), com uma elevada disponibilidade de matéria orgânica.  Os grupos mais abundantes das moscas são da família Calliphoridae, seguida pela Sarcophagidae e pelas Muscidae.

No aspecto geral, as moscas possuem três estágios da larva, pupa e adultos. O tamanho e o tempo de desenvolvimento são influenciados pela temperatura, o que pode variar ao longo do ano e em diferentes regiões. Por isso é importante que exista replicações nas mais diferentes situações, existindo um banco de dados como referencial. O primeiro estágio ou primeiro ínstar é uma larva muito sensível de que se alimenta da proteína líquida e devido ao fato de serem incapazes de penetrar na pele, é muito comum que exista uma grande concentração de larvas em orifícios ou feridas. O segundo ínstar inicia após a primeira muda, onde as larvas são mais largas do que a primeira e capazes de produzir protease, que facilita a penetração da pele. O último ínstar são extremamente robustas e tem um comportamento voraz, se alimentando de uma grande quantidade de tecido mais rápido do que os estágios anteriores. Após os estágios da larva, vem a pupa, o inseto para de se alimentar e passa por modificações fisiológicas, se preparando para a fase adulta. Esta última fase as moscas já possuem maturidade sexual e grande capacidade de dispersão devido a presença de asas.

Colonização de Besouros Desmertidae em uma carcaça de serpente. Fonte: Mail Online.

Quando a colonização de moscas sobre o cadáver começa a diminui, surge a oportunidade para os besouros, facilmente encontrados em decomposição avançada. A aparição tardia é devido a competição com as moscas nos momentos mais úmidos da decomposição. Dentro da riqueza existente entre os coleópteras, as famílias Dermestidae e Silphidae são as de maior importância forense. No Brasil, existe a ocorrência das duas famílias, contudo Silphidae são predominantes em ambientes úmidos, o que se torna um registro raro em ambientes secos como a Caatinga.

Como é estimado o IPM com insetos?

Existem duas formas de calcular o IPM através da entomologia. A primeira é baseada no desenvolvimento das larvas de moscas, onde é preciso identificar o taxón, determinar o instar ou no estágio de pupa e comparar com os dados existentes da localidade (e temperatura). Está técnica é utilizada para calcular IPM curto, onde a morte foi recente ao encontro do cadáver e o corpo ainda está nos primeiros estágios da decomposição. A segunda forma de determinar o IPM é para em decomposição mais avançada, onde o perito precisa analisar a dinâmica sucessional da colonização, onde o corpo passa a ter a visitação de diversos tipos insetos. Nesse último método, a entomologia passa a ser mais imprecisa.

Grande concentração de larvas em uma carcaça. Fonte: Autor.

Perturbação ou movimentação do corpo

Em alguns casos é possível que os insetos ofereçam indícios de que o corpo foi perturbado ou movido para um lugar secundário. O corpo de um adulto é pesado, por isso o suspeito terá alguma dificuldade em carregar ou mover e com frequência acaba espalhando material biológico como sangue, pele, urina e até fezes, que irão atrair insetos.

Também não é raro acontecer de o suspeito ir embora deixando o corpo e voltando tardiamente. Esta visita pode ter diversas razões, entre elas o fato de o assassino estivesse sob influência de drogas durante o crime, para conseguir assistência ou utilitários que irão facilitar a remoção do corpo e até mesmo para fantasiar com o assassinato. Durante esse momento pode iniciar uma colonização de moscas e dificilmente os insetos e os ovos são vistos como evidências, auxiliando o trabalho do perito.

Com a perturbação do corpo ou uma movimentação curta, os insetos irão criar rastros devido a sua dispersão e criando pequenos focos de concentração que não seja no corpo, as larvas ou os adultos podem ser utilizados para calcular um “IPM” daquele ponto e ser comparado com o do corpo. Em casos em que o corpo é movido para um lugar remoto, os insetos podem ser comparados, devido que a colonização, abundância ou até mesmo as espécies, em que podem existir preferências de áreas urbanas, rurais ou até litorâneas. Outras situações podem ocorrer pela decomposição diferenciada ao longo do corpo (por uma parte estar enterrada e a outra não), sendo assim criando diferentes sucessões de larvas e adultos em diferentes pontos do cadáver.

Feridas

As moscas são atraídas para colocar seus ovos inicialmente nas feridas, pois as larvas no primeiro instar não são capazes de penetrar a pele. Um antigo caso de uma mulher, classificado como indeterminado ou suicídio, teve as fotos analisadas por um antropologista forense, que identificou uma concentração de larvas no pescoço e nas mãos da vítima. Essas partes do corpo não são comuns na colonização das larvas, sendo um indicio de feridas de defesa, assim o caso passou a ser classificado com homicídio e a corte decidiu exumar o corpo. Os padrões de colonização também podem auxiliar em casos de decomposição avançada, a qual é difícil localizar as feridas e a causa da morte. Em casos de abuso ou abandono, os insetos também podem ser atraídos e se alimentar dos tecidos mortos nessas feridas, assim a presença ou até mesmo o desenvolvimento larval são evidências a serem utilizadas nesse tipo de investigação.

Presença de drogas ou veneno

As larvas se alimentam do tecido do corpo, sendo assim a presença de certas substâncias irão impactar de alguma forma o desenvolvimento e a colonização do corpo. Em casos de decomposição avançada, os testes toxicológicos dificilmente conseguem fornecer alguma informação válida, porém a analise pode ser feita nos insetos, revelando a identidade da toxina. Em outro caso, foi possível identificar a região da vítima pelos níveis de mercúrio presente no corpo e que tinham sido coletados nas larvas, pois a região onde ela vivia existia poluição desse composto. As drogas também podem afetar a velocidade do desenvolvimento dos insetos, sendo ela mais rápida (Cocaína e heroína) ou mais lenta (Malation), fornecendo pistas para a análise toxicológica e para a investigação. Contudo, devemos lembrar que o álcool é uma substancia presente no processo de decomposição, assim dificilmente esse composto irá afetar a colonização dos insetos.

Conclusão

Portanto, a entomologia possui uma aplicação fundamental nas investigações, sendo ela em casos de homicídios ou até em questões imobiliárias. Aqui, abordamos os exemplos mais comuns durante a atuação de um perito, entretanto, é importante que o profissional tenha uma boa percepção e criatividade para conseguir relacionar os insetos com o caso a ser analisado, já que cada situação é única.

Referências

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Daniel Moura

Daniel Moura

Bioinformata no VarStation/ Hospital Israelita Albert Einstein. Mestre pelo Programa International Master of Science in Agro- and Environmental Nematology na Universidade de Ghent, Bélgica. Graduado em Bacharelado de Ciências Biológicas / Ciências Ambientais da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil e pela Universidade Eötvös Loránd, Húngria. Atua na área de Zoologia, Ecologia, Fisiologia Comparada, Biologia Forense e Biologia computacional. Contato: dmouraslv@gmail.com