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Evolução: da origem da vida à mente humana

Texto recuperado do extinto blog da Sociedade da Terra Redonda (STR) e mantido de acordo com o antigo acordo ortográfico.

Por Renato Zamora Flores

O tempo passa e o Universo já tem cerca de 13 bilhões de anos, mas o nosso planeta deve ter se formado apenas a cerca de 4,5 bilhões. Porém, as rochas, nas quais foram encontrados os primeiros microfósseis, criaturas semelhantes a bactérias, foram formadas entre 3,2 a 3,4 bilhões de anos. Segundo Salzano (1993), formas muito mais primitivas e mais simples de vida devem ter existido antes destas estruturas já sofisticadas de vida terem sido preservadas. Tudo sugere que a vida evoluiu muito rapidamente na história do planeta, como se espera de uma reação química que ocorra em condições adequadas.

A vida, assim, não parece ser um evento muito raro, dada as condições adequadas de temperatura, pressão e características químicas de um planeta. Logo, ela deve existir, também, em outros planetas e as mais recentes descobertas da exobiologia sugerem a possibilidade de vida, em nosso sistema solar, não apenas em Marte mas, ainda, em Europa, lua de Júpiter, ou Titã, lua de Saturno.

O objetivo do presente texto é o de esclarecer conceitos básicos de evolução da vida, do Homo sapiens, e da mente, facilitando o entendimento dos avanços da genética e da biologia molecular, bem como suas conseqüências sociais.

Segundo Emmeche e El-Hani (1999), a definição de vida não parece, para muitos biólogos, ser um conceito possível ou mesmo importante. O processo da vida, contudo, pode ser definido. A vida é uma propriedade de populações de indivíduos que:

  1. se autoreproduzem;
  2. herdam características de seus predecessores por um processo de informação genética;
  3. apresentam variações em virtudes de mutações aleatórias, e
  4. têm a propensão de deixar descendentes com diferentes graus de viabilidade.

Para estes autores, “uma definição de vida deve ser não-vitalista, não fazendo qualquer referência a energias ou poderes vitais ocultos, forças sobrenaturais, etc.” Ou seja, o pensamento corrente da biologia não necessita que o conceito da divindade seja acrescentado a seus modelos, prescindindo de Deus para explicar a vida, a evolução dos seres vivos e a mente humana.

Este é um modelo tradicional, apoiado na bioquímica e na biologia molecular. Um modelo alternativo bastante divulgado por outras ciências, da psicanálise ao direito, mas pouco valorizado pelos biólogos moleculares e geneticistas, é o da “autopoiese” (Maturana & Varela, 1980). As principais características deste modelo, que também prescinde de ação divina, são estas:

  1. a vida é um sistema autopoiético, ou seja, que se autoproduz e se autocria;
  2. um sistema vivo consiste de uma rede de metabólicos componentes que produzem sua própria rede e seus próprios componentes e, mais ainda, os limites da rede;
  3. a autopoiese é um sistema de tudo ou nada e
  4. é um sistema emergente em relação a seus componentes físicos.

O que teria nascido primeiro, o ovo ou a galinha? Esta questão aplicada aos dois modelos descritos, espelha o conflito: “as informações que organizam o ser vivo têm prioridade sobre o metabolismo que o mantém ou vice-versa”?

O modelo tradicional é baseado na informação codificada presente, na maior parte dos organismos atuais, na forma de DNA, como ponto de partida, conforme a figura 1.

Além da autopoiese, outros modelos dão maior ênfase a questões metabólicas, como a auto-organização no limiar do caos (Kauffman, 1993) que propõe, com excesso de otimismo, que peptídeos, formados ao acaso, pudessem se autocatalizar. Um variação desta idéia é oferecida por Dyson (1989) que utiliza-se da metáfora de um computador: o metabolismo seria o hardware e a informação (DNA ou RNA) seria o software. O que vale mais: o computador ou o programa?

Quanto ao binômio ovo/galinha, a resposta é fácil. Os ovos são muito mais antigos do que as galinhas, pois os dinossauros já os utilizavam muito antes da existência das aves. Quanto aos conflitos sobre os modelos de vida, vamos levar mais tempo para responder.

Apenas o modelo tradicional conta com evidências empíricas sobre a origem da vida a partir de moléculas não vivas como o esquema abaixo (Lifson, 1997). Onde teriam ocorrido estes processos é assunto polêmico: em uma sopa primordial, nas margens de um oceano, em fontes hidrotermais, em microambientes, etc.? Quem seriam os autocatalizadores elementares? Polímeros autoreplicadores, pirita, tioésteres, argila, polipeptídeos, etc.?

Autocatalizadores Elementares ==> Variação Química Aleatória ==>

Diversidade ==> Competição ==> Seleção Natural Química ==>
Diminuição de Substratos e Aumento de Produtos ==>
Aumento da Complexidade dos Sistemas Catalíticos ==>
Metabolismo Primitivo

Figura 1 – Etapas iniciais da origem da vida (Adaptado de Lifson, 1997)

Identificada uma origem para a vida, a pergunta seguinte seria sobre o seu sentido. Esta inquirição tradicional dos adolescentes fica mais fácil à luz de um comentário da astrônoma Margarete Geller (Lightman & Brawer, 1992):

“Qual o propósito do Universo? Que propósito? O Universo é só um sistema físico.
Apenas organismos vivos têm propósitos. Este propósito é existir e a existência
tem sentido apenas se for uma jornada sem fim.”

Hartung (1998) argumenta: “Existimos como uma combinação de matéria e energia que, para ter conseqüências, deve continuar… E, para que continuar, se não for para sempre?”

Uma das conseqüências desta proposta, de que o sentido da vida está na sua continuidade, é a de que, talvez, nós carregamos uma obrigação moral de orientar a evolução, caso tenhamos desenvolvido capacidade para isso.

A biologia molecular, então, tem avançado as fronteiras do conhecimento humano nesta direção. Em um futuro ainda distante, a vida pode ser confrontada e ameaçada por desafios à sobrevivência que apenas a engenharia genética poderá vencer, como a adequação dos seres vivos a outros planetas e outros sóis.

Evolução Darwiniana

O modelo informacional da interpretação de vida, o primeiro discutido anteriormente, mais tradicional e conhecido, é fortemente vinculado ao conceito de evolução darwiniana.

Até o surgimento da teoria evolutiva desenvolvida por Charles Darwin, na segunda metade do século XIX, a melhor explicação sobre a origem da natureza era fornecida pelo Reverendo inglês William Paley, criador do conceito de Deus-relojoeiro, ao comparar a complexidade do mundo natural com a de um relógio e concluir, com certeza divina, pela existência de um criador:

“Todos os indícios de projeto, todas as manifestações de “design” que existem no relógio, existem na obra da Natureza, com a diferença, em favor da Natureza, de serem maiores e, mais ainda, em um grau que excede todas as estimativas.”
(Teologia Natural, 1802)

Assim, se a única alternativa à proposta do Reverendo for o acaso e o aleatório, qualquer pessoa de bom senso optaria pela existência de um Deus-relojoeiro. Entretanto, a teoria darwiniana não é equivalente ao acaso, ela é um algoritmo.

O termo algoritmo, de origem árabe, identifica um tipo de processo lógico-formal no qual se pode confiar e que produz um determinado resultado sempre que “posto a funcionar” ou evidenciado. As características de um algoritmo são: indiferença em relação ao substrato(sua força vem do processo, não do material usado), simplicidade interna e resultados garantidos (Dennett, 1998). Softwares são exemplos de algoritmos. Receitas de bolo também são.

O algoritmo darwiniano é o seguinte: se existe variabilidade genética e esta causa um diferencial reprodutivo, decorre evolução. Assim, o sentido técnico do termo equivale a mudanças nas freqüências dos genes em uma população. – Isto é evolução.

O sistema de cópias do material genético, localizado no núcleo das células, por maior que seja sua eficiência, acaba por produzir erros, as mutações. Elas são a fonte da variabilidade genética. Já o diferencial reprodutivo é uma realidade muito freqüente na maioria dos seres vivos: uns deixam mais filhos (cópias de seus genes) do que outros.

Por esta simplicidade técnica, o darwinismo tem conseguido suportar muito melhor as críticas, quando comparado a outras teorias, de mesma idade, que também tentam entender a natureza humana, como a psicanálise e o marxismo [1].

A teoria evolutiva se relaciona com o resto da biologia de maneira similar ao modo como a história se relaciona com as demais ciências sociais. (Sober, 1993)

Recentemente, porém, a tese do Deus-relojoeiro ressuscitou na literatura científica, batizada, agora, de “planejamento inteligente”. Ele estaria presente em alguns sistemas bioquímicos, como o sistema de coagulação sangüínea ou na fixação de complemento [2] no sistema imune, mas não em outros sistemas bioquímicos mais simples, os quais poderiam ser explicados pela seleção natural (Behe, 1997):

“A mais poderosa razão da relutância da ciência em aceitar a teoria do planejamento inteligente baseia-se em considerações filosóficas.
Muitas pessoas, inclusive importantes e renomados cientistas, simplesmente não querem que exista qualquer outra coisa além da natureza.
Não querem que um ser sobrenatural afete a natureza, por mais curta e construtiva que essa intervenção tenha sido.”

Argumentos com este ou como o clássico processo teleológico desenvolvido no início deste século pelo padre jesuíta Teilhard de Chardin, descrito abaixo por Freire-Maia (1986) são difíceis de aceitar e parecem serem mantidos mais pela fé do que pela lógica científica:

“Poder-se-ia chamar a síntese teilhardiana de “finalista”; mas o finalismo de Teilhard não é, certamente, o finalismo dirigido, predeterminado em seus detalhes, teleológico…
Para ele, a evolução é criativa, faz-se por “tateios” e é livre – se bem que hajam tendências gerais…
A vida é uma energia sui generis…
É preciso que haja pessoas que participem igualmente dos dois pólos que nem sempre se afinam:
o do intelectual livre e o do religioso engajado numa Igreja.
Esta não deve ser agredida com a exposição brutal e maciça de “certas verdades”.”

Para os biólogos, por falta de indícios, ainda não existe e parece que não virá a existir no século XXI, uma teoria evolutiva não-darwiniana, que rejeite os princípios básicos do darwinismo clássico e da teoria sintética [3]. As disputas existentes são conflitos de graus e ênfases… (Stebbins e Ayala, 1985)

Entretanto, quando estamos nos referindo à contribuição dos genes para características psicossociais, tratamos de dois assuntos ao mesmo tempo. Como os geneticistas passam de um para o outro com facilidade, muitas vezes fica difícil, se não impossível para um não-especialista, manter o fio da meada.

Um destes assuntos é a genética do comportamento, que trata de variabilidade genética entre os membros de uma população. Genes relacionados a características físicas ou psicológicas não são absolutamente iguais em todas as pessoas. Quando, em uma população, há mais de um alelo com freqüência acima de 1%, o locus é considerado polimórfico, como no grupo sangüíneo ABO. Um grande número de locis [4] humanos são polimórficos.

A genética do comportamento tem duas características importantes: 1 – quando encontramos, na espécie humana, polimorfismos comportamentais muito grandes devem ter pouca importância adaptativa [5] (por exemplo: variações em dimensões da personalidade, como a extroversão ou o conservadorismo). 2 – variações importantes da normalidade tendem a ser patologias. (Por exemplo: alterações na estrutura de pensamento usualmente são sinônimos de doença mental, como na esquizofrenia.)

O segundo assunto é composto por um conjunto de ciências comportamentais adaptacionistas, com orientação darwiniana: etologia, sociobiologia, ecologia comportamental, psicologia evolucionária, etc. O que todas têm em comum é o tipo de inquirição frente à natureza: Por que os atributos de um ser vivo tomam determinada forma e não outra? As respostas incluem funções adaptativas, forjadas por pressões seletivas, que podem ser descritas bio-historicamente. Por exemplo: a interpretação evolucionista da depressão como um comportamento útil em momentos de dúvida ou confusão, e o estudo do relacionamento afetivo entre homens e cães, que compartilham mecanismos de formação de bando muito semelhantes e, por isso, se gostam tanto. (Daly, 1996)

Uma das áreas mais polêmicas da teoria darwiniana é a da sociobiologia humana, que nada mais é do que a aplicação de paradigmas darwinianos à estrutura da mente e às relações sociais entre indivíduos ou grupos de indivíduos.

A principal crítica a esta abordagem é a de reducionismo (processo de explicar um fenômeno complexo por meio de uma ciência ou de modelos mais simples), mas não se trata disso e, sim, de superveniência.

Superveniência refere-se à necessidade lógica de que as propriedades investigadas por uma ciência da mente e dos fenômenos sociais levem em conta, neste caso, as propriedades físicas, químicas e biológicas dos objetos em estudo, os seres humanos (Sober, 1993). A figura 2 exemplifica a relação entre genes e o aparecimento da linguagem humana:

GENÓTIPO AMBIENTE
Exposição à linguagem humana Sem exposição à linguagem humana
Genes humanos
SIM
NÃO
Genes de galinha
NÃO
NÃO

Figura 2 – Desenvolvimento da linguagem em indivíduos com diferentes tipos de genes (Adaptado de Sober, 1993)

Há uma relação simétrica entre genes e ambiente no fenótipo “linguagem humana”. Ter os genes certos é essencial, mas também é preciso estar no ambiente certo no momento adequado.

Este arsenal teórico-metodológico possibilitou o desenvolvimento de modelos ainda mais ousados, como o darwinismo neural (DN), desenvolvido na década de 80 por Gerald Edelman (que já havia recebido o prêmio Nobel de Medicina em 1972, pela descoberta da estrutura química e genética dos anticorpos).

O DN, também conhecido como teoria da seleção de grupos neuroniais, afirma que as funções do cérebro são construídas a partir de um processo seletivo, bastante similar, no nível ontológico, ao que ocorre no nível da espécie, pelo algoritmo da seleção natural. Variáveis fisiológicas (com grande componente genético) organizam um repertório primário, que inclui reflexos básicos e uma distribuição das regiões do cérebro que é bastante similar em todos os indivíduos.

Um processo de seleção “pela experiência” organiza os grupos de neurônios ou mapas (que são as unidades de seleção) criando uma especialização do repertório primário, que varia conforme as experiências de cada um, o repertório secundário: quanto mais se estimula, mais os mapas se desenvolvem (sinapses mais fortes e em maior número entre neurônios) (Edelman, 1995).

Enfim, a biologia conseguiu produzir teorias essencialmente materialistas sobre a mente e a consciência, que pudessem se apoiar sozinhas em evidências científicas suficientes.

Para estas teorias, a consciência surgiu como uma forma primária entre alguns répteis e entre as aves e os mamíferos. Esta forma de consciência inclui não só perceber o mundo mas construir representações mentais dele que, mesmo sem a percepção explícita de um “self”, permitem interpretar o cenário a sua volta. Animais não apenas fazem escolhas, mas são capazes de atribuir diferentes valores a diferentes opções.

Posteriormente, em alguns psitacídeos e alguns primatas, o Homo sapiens incluído, surgiu uma segunda forma de consciência, a consciência expandida, com dois novos tipos de memória, uma memória conceitual e uma memória de planos para o futuro, que acrescenta um modelo pessoal de passado e futuro permitindo, assim, interpretações generalizadas e simbólicas. No final do milênio, construiu-se a ponte entre o DNA e a mente, aparentemente livres do dualismo cartesiano.

Resta, ainda, nos perguntarmos se os bons sentimentos que, eventualmente, percebemos nos seres humanos podem ser explicados pela biologia. Quando uma pessoa salva outra de afogamento, por exemplo, o que interessa para a biologia é que alguém se arriscou por alguém. Se a motivação subjacente era um desejo egoista de obter o reino dos céus ou de preservar cópias dos seus genes, que estavam depositadas na vítima em risco, é um assunto irrelevante. O fato natural é que, especialmente entre as aves e os mamíferos, exemplos de bons sentimentos nos animais contam-se as centenas. Assim, tratá-los apenas como máquinas reprodutivas é, no mínimo, perverso. (Masson e McCarthy, 1995).

Charles Darwin teve duas reflexões interessantes sobre o tema. Em uma delas concluiu que os bons sentimentos que as pessoas apresentavam, às vezes, eram mais devidos ao seu parentesco com os símios do que ao número de horas dedicada à leitura da Bíblia.

A segunda reflexão dizia respeito a uma família de vespas (Ichneumonidae) que colocam seus ovos em lagartas, após paralisá-las com uma espetada do ferrão em um gânglio nervoso. A pobre lagarta é devorada viva pelas larvas da vespa, que se nutrem de sua gordura e fluídos corporais: -“Não posso convencer-me de que um Deus benéfico e onipotente tenha criado as Ichneumonidae, com a intenção expressa de que estas buscassem o seu alimento no corpo vivo das lagartas.”

O desafio para os biólogos evolucionistas foi mostrar que comportamentos que envolvam auto-sacrifício podem evoluir segundo o algoritmo darwiniano, comportamentos estes, que podem ser independentes do que o indivíduo sente ou pensa sobre sua ação, o que acabaram demonstrando por vários métodos diferentes. (Sober e Wilson, 1998).

A inclusão em um grupo social é uma questão central para pensarmos a moralidade humana. Uma existência moralmente neutra é tão impossível para um Homo sapiens, e outras espécies gregárias, como uma existência completamente solitária. (de Waal, 1995). Assim , exceto quanto exposto a um ambiente muito anormal para os nossos padrões culturais (como em situações de maus-tratos ou negligência de crianças ou em situações de estresse ecológico, em populações primitivas), a tendência natural dos seres humanos talvez seja a de, preferencialmente, tornarem-se gregários e solidários.

Assim, pelo menos por agora, o pêndulo da ciência se inclina para Rosseau: o homem parece ser, naturalmente, bom. Jaz dentro dele, entretanto, mecanismos poderosos de agressão e violência que são postos a funcionar conforme as circunstâncias ecológicas. Não se nasce, geneticamente, mau.

Notas:

  1. Todos desenvolvidos na segunda metade do século XIX e início do século XX.
  2. Este sistema “complementa” a ação dos anticorpos e é fundamental na destruição de células invasoras.
  3. Fusão da genética com a teoria evolutiva clássica, desenvolvida na primeira metade do século XX.
  4. Loci é o plural de locus, local no cromossomo onde se localiza um gene.
  5. O mesmo vale com a cor dos olhos ou cabelos, que são muito variadas na espécie humana.

Referências:

Sociedade da Terra Redonda

Sociedade da Terra Redonda

A Sociedade da Terra Redonda (STR) foi um blog de ceticismo e secularismo criado pelo professor Leandro da Silva Nunes Vieira.