Por Suzana Herculano-Houzel
Publicado na Folha de São Paulo
Mark Solms bem que tentou, ao fundar, em 2000, a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, promover um trabalho interdisciplinar entre a psicanálise e a neurociência: ele gostaria de usar a neurociência para “comprovar” as teorias de Freud e usá-las como arcabouço intelectual para a neurociência.
Na prática, a fusão não funciona, e eu diria que por uma razão bem simples: uma nunca precisou da outra. Freud propôs o que era cabível à sua experiência profissional, aos seus valores e aos seus conhecimentos limitados à neurologia da época, no contexto de uma Europa vitoriana pós-Darwin onde era tão problemático quanto importante lembrar que o ser humano tem impulsos como os outros animais.
Então, como hoje, a psicanálise não dependia de respaldo neurocientífico: ela é um sistema fechado de crenças sobre o comportamento humano, de grande utilidade em casos de necessidade de insight e autoconhecimento – e zero utilidade em distúrbios como dependência química, transtornos obsessivos-compulsivos e esquizofrenia.
Sim, há um enorme interesse em comum: compreender a mente humana. Mas foi justamente livre da psicanálise que a neurociência andou tanto. Hoje reconhecemos que o carinho materno na infância é fundamental ao desenvolvimento emocional; que os impulsos, sexuais e outros, são tão importantes para o comportamento que são orquestrados por um sistema dedicado (o de recompensa); e que tudo opera sob o controle de um sistema executivo que autoriza e torna conscientes só alguns dos processos.
Mas doenças mentais não resultam de repressão falha, neuroses não são distúrbios de função sexual originados na infância e sonhos são só acontecimentos recentes ou passados revisitados pelo cérebro. Se Freud pensava assim ou não, pouco importa para a neurociência. E, para os psicanalistas, pouco importa onde ficam o id ou o ego, se é que ficam em algum lugar. Ainda que alguns, mais chegados à neurociência, tenham apreço pela liberdade de pensar para além dos ditames de Freud e gostem de saber no que a sua teoria erra ou acerta.
Mas se não há “psicanálise” se a teoria psicanalítica não for seguida à risca, só o próprio Freud poderia rever seus conceitos à luz da neurociência e, então, propor uma neuropsicanálise. Enquanto isso não acontecer, a tal da “neuropsicanálise” continua não existindo…