Por Jhordan Santiago
Galileo Galilei foi uma das figuras centrais no desenvolvimento da ciência no período renascentista. Foi também protagonista em várias controvérsias, que, muitas vezes, não apresentam embasamento histórico. O presente texto é referente a algumas notas (sem o devido rigor de um historiador da ciência) sobre alguns mitos e extrapolações envolvendo as descobertas científicas de Galileo e a aceitação delas pela Igreja Católica. Baseio-me fortemente em excelentes trabalhos referenciados ao final do artigo.
O ensino de ciências é recheado de anedotas e analogias, que, por um lado possuem uma função pedagógica, ou seja, facilitam a aprendizagem e despertam o interesse dos alunos pelo assunto, por outro, fazem extrapolações sem base histórica e muitas vezes distorcem o processo de criação e o conteúdo das hipóteses e teorias científicas. O historiador da ciência Roberto de Andrade Martins (1950) e o filósofo Mario Bunge (1919 – 2020) são conhecidos críticos desse tipo de abordagem (este último em especial as analogias usadas pelos físicos para descrever a teoria quântica, mas esse não é o objetivo deste artigo). Vamos discutir brevemente três famosas controvérsias relacionadas a Galileo Galilei, sendo elas: a invenção da luneta e seu uso na astronomia, sua conversão ao heliocentrismo e os motivos que o levaram a prisão.
1. A invenção da luneta e seu uso na astronomia
Um dos mais famosos mitos atribuídos a Galileo é a invenção da luneta, o pioneirismo no apontamento para o céu e na descrição dos corpos celestes. Todas essas três afirmações são falsas. Primeiro, a manipulação de lentes para a correção de problemas de visão remota à Idade Média e não há consenso sobre quem realmente inventou as lunetas, especula-se que os primeiros protótipos foram desenvolvidos por Leonard Digges (1520 – 1559), Giambattista della Porta (1535 – 1615) e os holandeses Hans Lippershey (1570 – 1619), Jacob Metius (aprox. 1571 – 1630) e Zacharias Janssen (aprox. 1580 – 1638). Galileo soube da invenção das lunetas pelos holandeses em junho de 1609 e conseguiu, logo depois, construir a sua própria. Segundo, como várias pessoas já desenvolviam lunetas concomitante ou anterior a Galileo, é difícil saber quem realmente foi o primeiro a apontar para o céu. Galileo, na verdade, conseguiu duplicar seu salário mostrando às autoridades de Veneza sua aplicação para fins militares, só algum tempo depois ele percebeu que a luneta poderia ser útlil na observação astronômica. Terceiro, Galileo não foi o primeiro a descrever os objetos celestes através de uma luneta. O matemático inglês Thomas Harriot (1560 – 1621) foi a primeira pessoa que a usou para observar a Lua, notando o seu relevo e registrando suas observações em desenhos no dia 26 de julho de 1609, contrariando assim ao dogma católico de que a Lua era perfeitamente esférica e formada por uma substância diferente da terrestre. Galileo fez suas primeiras observações entre 30 de novembro e 18 de dezembro de 1609, onde registrou seus famosos esboços da superfície lunar. Em janeiro de 1610, Galileo descobriu o que futuramente seriam conhecidas como as Luas Galileanas, mas na época ele pensou que eram pequenos planetas. Apesar de falsamente divulgado, Galileo também não foi o primeiro a notar as manchas solares, já que elas foram previamente observadas por Harriot e descritas pela primeira vez em junho de 1611 pelo pastor alemão David Fabricius (1564 – 1617) e seu filho Johannes Fabricius (1587 – 1615).
2. A sua conversão ao heliocentrismo
Não foram as observações do céu que fizeram Galileo aceitar o modelo copernicano, ele havia, na verdade, se convertido à ela muitos anos antes, quando não existia nenhuma evidência direta ou indireta que favorecesse o modelo de Copérnico frente ao de Ptolomeu. Quando publicou seu livro em 1612 História e demonstrações, onde não só analisava as manchas solares como aderia publicamente ao copernicanismo, Galileo foi parabenizado por vários cardeais, entre eles o futuro Papa Urbano VIII. Na época, ambos os modelos tinham o mesmo poder preditivo e uma matemática semelhante (Copérnico se baseou bastante no modelo geocêntrico quando propôs o seu próprio), ou seja, é falso também a ideia de que o modelo geocêntrico fosse simplista ou que de alguma forma fosse evidente que estava incorreto, tanto que desde que foi proposto no século II d.C. por Ptolomeu, seu modelo pouco foi modificado, seja pelos escolásticos ou pelos matemáticos muçulmanos. Entretanto, foi Galileo o primeiro a perceber a importância destas observações e o fato delas não estarem de acordo com o modelo geocêntrico adotado pela Igreja, mas sim com o heliocentrismo.
3. A prisão de Galileo
Galileo não foi preso por defender o modelo de Copérnico, a anedota de que os sacerdotes se recusaram a olhar a Lua pelo telescópio é falsa também. Inicialmente não houve uma reação contrária as ideias de Copérnico¹.
Após algumas acussões, foi feita entre 1615 e 1616 uma comissão para analisar alguns textos de Galileo, pois ele tentara dar uma interpretação heliocêntrica à algumas passagens bíblicas, e, apesar de alguns clérigos quissessem que ele abandonasse o copernicanismo, o cardeal Maffeo Barberini (futuro Papa Urbano VIII) ficou ao lado de Galileo. Todavia, as coisas começaram a mudar em 1629, quando Galileo termina de escrever o livro Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo. Ele é então acusado de não abordar o modelo heliocêntrico de forma hipotética, entretanto, após passar pela comissão de censura da Igreja, o livro precisou de poucas correções e foi publicado em 1632.
Em seu livro Diálogos, Galileo criou três personagens. Salviati, um copernicano, Simplício, um defensor do modelo geocêntrico, e Segredo, que era facilmente convencido pelos argumentos de Salviati. O livro retratava Salviati como alguém sábio e que usava bons argumentos a favor do heliocentrismo, enquanto Segredo era retratado como alguém teimoso e que não apresentava bons argumentos a favor do modelo ptolomaico. Os jesuítas Schneiner e Grassi, motivados por um conflito pessoal com Galileo (Schneiner alegava que havia observado as manchas solares 7 meses antes de Galileo), convenceram o Papa Urbano VIII, que antes era amigo e apoiador de Galileo, que os personagens Salviati e Segredo eram uma sátira em que o primeiro representava o próprio Galileo e o segundo o Papa Urbano VIII, sendo a personagem Segredo vista como tola e burra. Para piorar: o livro foi escrito em italiano e em forma de divulgação científica, ficando bem mais acessível ao público. Depois desse episódio foi organizado uma comissão para novamente ser analisando o livro Diálogo.
O tribunal enviou ao Papa três problemas encontrados na obra, mas mesmo assim, o tribunal decidiu que o livro apenas precisava de pequenas correções. O Papa, contrariando o veredito da comissão, tomou outras medidas. Urbano VIII, influenciado pela acusações dos jesuítas e tentando evitar uma possível crise dentro do clero, já que Galileo havia criado muitos inimigos, conseguiu que Galileo fosse culpado de heresia pela Inquisão e condenado a prisão domicilar (viveu seus últimos anos numa residência luxuosa nos arredores de Florença), a pagar penitência (que poderia ser realizada por uma de suas filhas), além do banimento do livro Diálogo, e a proibição da defesa da imobilidade do Sol e a mobilidade da Terra.²
Nas palavras de Baldow (2014) “Essa situação infere que a punição feita a Galileu não foi só realizada pelo conteúdo científico que tinha no livro, mas foi também um oportunismo do Papa em defender sua dignidade e autoridade diante do cargo que tinha no Vaticano”.
Concluímos então que, apesar das importantes observações e teorias científicas defendidas por Galileo e a perseguição que sofrera pela Igreja, existem algumas extrapolações envolvendo o caso Galileo que devem ser corrigidas, já que não apresentam evidências históricas.
¹ Na verdade, quando o livro de Copérnico Das Revoluções das Orbes Celestes foi publicado postumamente (1543), ele não havia entrado na lista de livros banidos pela Igreja.
² Não existem evidências que apontem que Galileo foi de alguma forma fisicamente torturado pelo Tribunal da Santa Inquisão.
Referências
[1] BALDOW, R. Um teatro sobre o caso Galileu: a peça didática de Brecht como instrumento de divulgação científica, 2014.
[2] MARTINS, R. A. O mito de Galileu desconstruído. Revista de História da Biblioteca Nacional. 5:24-27, outubro de 2010.
[3] MARTINS, R. A. Galileo e a rotação da terra. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 11, n.3, p. 196-211, 1994.