Por Mike McRae
Publicado na ScienceAlert
Numa manhã de véspera de Ano Novo em Minnesota, nos Estados Unidos, em 1980, um homem chamado Wally Nelson tropeçou no corpo de sua amiga, caído na neve a poucos metros de sua porta.
O carro de Jean Hilliard, de dezenove anos, havia enguiçado enquanto voltava para a casa dos pais depois de uma noitada. Vestida com pouco mais do que um casaco de inverno, luvas e botas de cowboy, ela enfrentou o frio noturno de 30 graus Celsius negativos para buscar a ajuda de seu amigo.
Em algum momento, ela tropeçou e perdeu a consciência. Por seis horas, o corpo de Hilliard ficou no gelo, com seu calor se esvaindo até deixá-la – segundo vários relatos – “congelada em estado sólido”.
“Eu a agarrei pelo colarinho e a empurrei para a varanda”, relataria Nelson anos depois em uma entrevista à Rádio Pública de Minnesota.
“Eu pensei que ela estava morta. Estava congelada e mais dura do que uma tábua, mas eu vi algumas bolhas saindo de seu nariz”.
Se não fosse pela resposta imediata de Nelson, Hilliard poderia ter acabado de se tornar uma das milhares de mortes atribuídas à hipotermia a cada ano. Em vez disso, sua história se tornou parte da tradição médica e uma curiosidade científica.
Como um corpo poderia sobreviver sendo congelado?
Histórias de pessoas que sobreviveram a temperaturas congelantes são incomuns o suficiente para serem interessantes, mas também não são exatamente raras. Na verdade, os médicos especialistas em climas frios têm um ditado: “Ninguém está morto até o calor desaparecer”.
A compreensão de que a hipotermia extrema não é necessariamente o fim de uma vida tornou-se a base da terapia para tratá-la. Sob condições controladas, a redução da temperatura corporal pode esfriar o metabolismo e reduzir a fome insaciável do corpo por oxigênio.
Em ambientes médicos, ou em raras ocasiões em outros lugares, um corpo frio pode frear todo o processo de morte por tempo suficiente para se acomodar a um pulso baixo, pelo menos por um tempo.
Onde o relato de Hilliard se destaca é a natureza extrema de seu estado de hipotermia.
Esqueça o fato de que sua temperatura corporal mal chegava a 27 graus Celsius, 10 graus abaixo da de um ser humano saudável. Ela estava – aparentemente – congelada. Seu rosto estava pálido, os olhos sólidos e sua pele supostamente dura demais para ser perfurada por uma agulha hipodérmica.
Nas palavras de George Sather, o médico que a tratou, “o corpo estava frio, completamente sólido, exatamente como um pedaço de carne em um congelamento profundo”.
No entanto, em apenas algumas horas, esquentado por almofadas de aquecimento, o corpo de Hilliard voltou a um estado saudável. Ela estava falando pelo meio-dia e, com pouco mais do que alguns dedos dormentes e bolhas, logo teve alta para viver uma vida normal, não afetada pela noite em que virou um picolé humano.
Aos amigos e familiares de sua comunidade, tudo graças ao suposto poder da oração. Mas onde entra a biologia nisso?
Ao contrário de muitos materiais, a água ocupa um volume maior como sólido do que como líquido. Essa expansão é uma má notícia para os tecidos congelados do corpo, pois seu conteúdo líquido corre o risco de inchar a ponto de romper seus depósitos.
Mesmo alguns cristais de gelo dispersos que crescem no lugar errado podem perfurar as membranas celulares com seus fragmentos semelhantes a agulhas, reduzindo as extremidades a manchas enegrecidas de pele e músculos mortos, ou o que comumente conhecemos como ulceração provocada pelo frio.
Alguns animais desenvolveram algumas adaptações interessantes para lidar com os perigos dos cristais de gelo afiados em condições de congelamento. Alguns peixes das profundezas, conhecidos como peixes-gelo da Antártida, produzem glicoproteínas como uma espécie de anticongelante natural, por exemplo.
A rã-da-floresta transforma o conteúdo de suas células em uma calda, inundando seu corpo com glicose, resistindo assim ao congelamento e à desidratação. Fora de suas células, a água é livre para se transformar em um sólido, envolvendo os tecidos em gelo e fazendo com que fiquem tão sólidos quanto cubos de gelo em forma de sapo.
Sem nada além de observações externas, é difícil dizer com certeza como o corpo de Hilliard resistiu ao congelamento. Havia algo único em sua química corporal? Ou mesmo a química em seus tecidos?
Pode ser. Uma questão muito mais importante é o que exatamente “congelado” significa neste caso. Embora baixa, a temperatura corporal central de Hilliard ainda estava muito acima de zero. Há um mundo de diferença entre estar metaforicamente ‘congelado até os ossos’ e literalmente ter água solidificada nas veias.
O fato de o corpo de Hilliard parecer sólido é um sinal comum de hipotermia severa, à medida que a rigidez muscular aumenta a tal ponto que pode até se assemelhar ao rigor mortis, o enrijecimento que acontece com um corpo morto.
O fato da superfície de seu corpo estar fria e pálida, e até mesmo seus olhos parecessem vítreos e “sólidos”, também pode ser menos que surpreendente. O corpo fechará os canais para os vasos sanguíneos sob a pele para manter os órgãos funcionando, a ponto de um corpo parecer pálido e permanecer extremamente frio.
Para a equipe médica persistente o suficiente para tentar a sorte usando um hipodérmico menor calibrado em veias fortemente contraídas, especialmente se elas forem cobertas por finas camadas de pele desidratada pressionadas contra músculos rígidos, podemos até imaginar uma ou duas agulhas se entortando ao tentar perfurar a pele.
Com pouco mais além de alguns relatos surpresos, podemos apenas especular se o corpo “congelado” de Hilliard era normal, mesmo que isso seja chocante, ou de fato estranhamente único em sua capacidade de resistir a uma mudança de estado tão extrema. Não pode haver dúvida, entretanto, de que ela teve sorte.
Quanto mais aprendemos sobre as coisas incríveis que o corpo humano pode realizar, menos podemos confiar na boa sorte para salvar vidas como a dela no futuro e mais nos avanços da medicina e respostas rápidas.