O Instituto Liberal publicou um artigo – posteriormente, distorcido pelo jornalista Luis Nassif do Jornal GGN – sobre como algumas ideologias se apropriam ou mesmo distorcem as descobertas científicas para justificar suas posições. O problema é que o autor parte de argumentos equivocados e de críticas fora do contexto. Basicamente, ele transforma uma crítica à “filosofia pós-moderna”, que teve a sua origem na esquerda, como uma crítica a toda “esquerda política”. Vejamos:
I. FILOSOFIA, HISTÓRIA E SOCIOLOGIA
“A marca histórica da esquerda é a falta de clareza. Claro, pois para justificar um sistema de crenças que não funciona, é esperado que as assertivas não pudessem ser facilmente analisadas ou refutadas, esperando-se do discípulo apenas a fé no que o mestre diz. Assim, não só disciplinas típicas da esquerda, como a sociologia e a história, mas todas as outras são absorvidas em seu aspecto heterodoxo, para ser útil à agenda esquerdista.”
Para rebater o trecho acima, é preciso invocar as referências que o autor possivelmente usa como fonte, como as obras Pensadores da Nova Esquerda de Roger Scruton e, principalmente, Imposturas Intelectuais de Alan Sokal. A afirmação de que “a marca histórica da esquerda é a falta de clareza” não encontra respaldos em ambas as obras. Em Imposturas Intelectuais, por exemplo, Sokal especifica que a filosofia continental e a “filosofia pós-moderna” são conhecidas pela ambiguidade e falta de clareza, mas não a esquerda em si. Mario Bunge, em Crises e Reconstrução da Filosofia, faz essa mesma crítica e destaca o caráter de obscuridade dos filósofos continentais, tal como Heidegger e os hermeneutas. Há, contudo, autores como Stephen Hicks que defendem que os ideais de esquerda estiveram aliados aos princípios irracionalistas ao longo dos séculos, contudo esta opinião não é consensual na literatura especializada.
A noção de que a sociologia é uma disciplina de esquerda não faz sentido do ponto de vista histórico. Augusto Comte, considerado por muitos como o pai da sociologia, ainda que não seja com ele que a sociologia tenha ganhado o status de cientificidade, tinha posturas políticas que colocavam a ciência como o principal motor do progresso social. Suas posições podem ser consideradas como uma mescla do conceito de tecnocracia com a noção de sociocracia. Posterior a Comte, surge Alexis de Tocqueville, conhecido pelos seus estudos e reflexões visionárias acerca da democracia norte-americana. Apesar da simpatia de Tocqueville pela democracia, ele era aristocrata. Após Tocqueville, a sociologia viria a ganhar o status de cientificidade com Émile Durkheim, que é considerado o principal responsável por estabelecer os princípios metodológicos da investigação sociológica que, posteriormente, foram aprimorados por Max Weber. Durkheim não foi um simpatizante das ideias de Karl Marx. Ele até pensava que as ideias de Marx eram conflituosas e radicais demais para serem aplicadas. Além desses pensadores com visões diversificadas, a sociologia teve influência de pensadores como Adam Smith (considerado por muitos como o pai do liberalismo econômico), Bernard de Mandeville (popularmente conhecido pela obra A Fábula das Abelhas) e Norbert Elias (conhecido pela obra O Processo Civilizatório).
Agora, a história, enquanto ciência, teve contribuições claras tanto das correntes positivistas na sociologia como pelas contribuições de Karl Marx (o materialismo histórico e dialético) e da escola francesa de Annales de historiografia. Assim, não faz sentido proclamar que a influência histórica se deve unicamente a esquerda.
Se enriquecer o repertório intelectual é uma atitude de esquerda, então ponto para a esquerda que decidir usar os estudos sociológicos e históricos em seu favor. Afinal, uma ideologia alimentada com ciência é melhor do que uma ideologia nociva e obsoleta. Atacar um espantalho não fará com que os estudos sociológicos e historiográficos sejam rechaçáveis apenas porque você discorda deles.
“Tendo o objetivo final de implantar o socialismo, associado à ideologia marxista, é necessário primeiramente, a quem busca isto, dizimar os sistemas de crenças concorrentes. O cristianismo, a ideia de verdade, o conceito de indivíduo, de responsabilidade, família e outros ligados à tradição e com matizes conservadores, devem ser postos em contradição, desacreditados, deixando a todos sem um sistema de crenças, perdidos, para, em seguida, ser vendida a solução socialista. O povo desesperado e atomizado não terá escolha senão amar o Grande Irmão, como em 1984, de George Orwell.”
O viés conservador é notório, porque pressupõe que a noção de verdade, indivíduo, etc. esteja ligado exclusivamente ao cristianismo. O conceito de verdade remonta-nos aos pré-socráticos e a preocupação com o indivíduo e seus direitos ganha força com Sócrates. O outro ponto é que o marxismo se contrapõe ao idealismo objetivista – de Hegel – em defesa a uma posição materialista acerca da realidade, mantendo, em alguma medida, o compromisso com a verdade.
“Um time de filósofos se empenhou, alguns talvez inconscientemente, nessa missão. Cito como exemplos a Escola de Frankfurt, tendo como representantes ilustres Adorno, Horkheimer e Habermas, retomando Marx, Hegel e outros anteriores, agora em termos mais atuais e adequados à nova geração. A França contribuiu bastante, com Sartre, Foucault, Derrida, Deleuze, Guattari e outros. As obras Pensadores da Nova Esquerda, de Roger Scruton, e Imposturas Intelectuais, de Sokal, dão conta de explicar o fenômeno.”
Neste trecho, não há uma divisória explicando que a crítica se refere ao pós-modernismo filosófico e não a esquerda per se. Adorno e Habermas são taxados como críticos do pós-modernismo, mas que em suas bases aderiram às próprias irracionalidades do pós-modernismo. Existe também a noção de que o pensamento pós-moderno se fomentou a partir da Nova Esquerda com influências da Escola de Frankfurt. Mas a inspiração inicial para a filosofia pós-moderna encontra-se sobre a base do fenomenismo kantiano, do ataque à razão de Rousseau em sua obra O Discurso sobre a Origem da Desigualdade, do ataque nietzscheano à ciência e à lógica e sua defesa ao perspectivismo, do desconstrucionismo de Derrida, do construtivismo social de Foucault, do existencialismo de Sartre e Kierkegaard, da fenomenologia anticientífica de Husserl e Heidegger, do relativismo epistemológico, entre outros. Assim, o autor acerta na conclusão final do capítulo sobre a filosofia de que “dada a competência literária de alguns desses filósofos, como Foucault e Deleuze, o que temos é um desfile de conceitos imprecisos, conclusões ilógicas e projeção de vivências impossíveis, ao lado da beleza da escrita, da menção apaixonada de passagens literárias, cinematográficas e filosóficas, com grande pirotecnia erudita e mistura de fatos e sentenças verdadeiras no caldo mentiroso da teoria. O poder de sedução é real, fisgando o leitor incauto”.
II. MECÂNICA CLÁSSICA E MECÂNICA QUÂNTICA
“A física tradicional newtoniana é, para quem quer confundir, excessivamente exata, matemática e previsível. São objetos em movimento no universo, seguindo leis já mapeadas.”
A física newtoniana se aplica na Terra – especificamente, para objetos de até cerca de 20% da velocidade da luz. Inclusive, quando enviamos foguetes para o espaço, a NASA usa os princípios da mecânica de Newton.
“A física quântica, através de extrapolações indevidas de descobertas de cientistas como Einstein, Heisenberg, Schrödinger, Planck e outros, ganhou a fama de ser o ramo científico onde “tudo pode”. Estar em dois lugares ao mesmo tempo, ser e não ser, teletransporte, telepatia, o mundo como um sonho, o nada que é tudo, enfim, uma espécie de “liberou geral” da ciência, contrário à física newtoniana, e que certamente não seria autorizado pelos físicos quânticos, os quais eram sérios.”
A física sofre extrapolações indevidas, mas não de físicos teóricos – algo que o autor não deixou explícito –, mas sim de pseudocientistas (Amit Goswami, Deepak Chopra, Hélio Couto, Laércio Fonseca) como de ideólogos da esquerda (Judith Butler, Katherine Hayles, Marilena Chaui) e da direita (Donald Trump, Silas Malafaia). Por exemplo, veja a citação da ideóloga pós-moderna Katherine Hayles:
“O ato de privilegiar a mecânica dos sólidos sobre a dos fluídos, e na verdade a incapacidade da ciência de lidar com o fluxo turbulento, ela atribui à associação da fluidez com a feminilidade. Enquanto homens têm órgãos sexuais que se projetam e se tornam rígidos, mulheres têm aberturas que deixam vazar sangue menstrual e fluidos vaginais. Essas idealizações são reinscritas na matemática, que concebe fluidos como planos laminados e outras formas sólidas modificadas. Da mesma forma com que mulheres são apagadas dentro de teorias e linguagem masculinistas, existindo apenas como não-homens, os fluidos foram apagados da ciência, existindo como não-sólidos.”
Hayles, N. K. (1992)
Gender encoding in fluid mechanics: Masculine channels and feminine flows.
Differences: a journal of feminist cultural studies, 4(2), 16 – 44.
Os pseudocientistas dizem que a mecânica quântica tem o poder de fazer predições comportamentais (astrologia e psicologia quântica), de curar a distância através do “efeito do observador” (cura quântica) e, principalmente, de alterar à realidade através do pensamento (misticismo quântico).
A péssima divulgação científica contribui para a perpetuação desse tipo de pensamento e, então, surgem afirmações tais como “a quântica pode explicar a alma (ou espírito)”; “a quântica permite a existência de mediunidade, telepatia e projeção astral”; “a quântica é compatível com o espiritualismo”; mas nada disso faz parte do domínio da quântica.
O autor, por exemplo, cita que a quântica lida com questões relativas à “telepatia”, mas isso não é verdade. A hipótese da existência de telepatia parte da noção de que existe uma “percepção extrassensorial”, que permite a manifestação da clarividência e precognição. Um dos pontos que permite que essa hipótese seja descartada é o confronto com o princípio de conservação de energia das leis da termodinâmica e a falta de evidência científica. Em síntese, o Conselho de Pesquisa dos Estados Unidos concluiu que “não há nenhuma justificativa científica das pesquisas realizadas durante um período de 130 anos para a existência de fenômenos parapsicológicos”.
Enquanto que os pseudocientistas e ideólogos políticos fazem extrapolações indevidas na ciência para alcançar algum fim obscuro – por exemplo, por motivação financeira ou anseio político –, os cientistas realizam predições a partir de experimentos confirmados direta ou indiretamente e que podem ser passíveis de replicação por pesquisadores independentes. Assim, a ciência (a mecânica clássica, a mecânica quântica, a relatividade geral, a teoria sintética da evolução, a teoria do comportamento, a teoria dos germes, a teoria de sistemas, os sistemas lógicos e matemáticos, etc.) não é um campo em que “tudo vale”, como pensava também o irracionalista Paul Feyerabend.
“E por que o interesse da esquerda na física quântica? Porque “harmoniza” com o uso de drogas, com a ideia de que o indivíduo é uma ilusão, criando uma justificativa racional para a irresponsabilidade e o ateísmo. Ambos os resultados bem úteis e “capitalizados” pelo movimento revolucionário.”
Para quem começou reclamando da suposta falta de clareza da esquerda, o autor pecou nesse quesito, deixando o contexto aberto à inúmeras interpretações. Por exemplo, não dá para saber se o autor está endossando a noção de que a quântica “harmoniza” com o uso de drogas ou se ele está se referindo a uma interpretação que a esquerda supostamente criou da quântica. De qualquer forma, não existe relação da quântica com o uso de drogas com também não existe qualquer interpretação da quântica que demonstre a possibilidade de que o indivíduo é uma ilusão ou que ela serve de argumento para justificar um ato irresponsável. A única ressalva sobre o que foi afirmado é que a quântica pode ser usada, assim como qualquer outra ciência, para embasar argumentos em favor do ateísmo em discussões filosóficas. Entretanto, é sabido que a quântica é apenas uma disciplina da física que se preocupa com as questões acerca das propriedades fundamentais da natureza (átomos, campos, partículas elementares, etc.) com a utilização de uma matemática robusta.
CONCLUSÃO
O artigo do Instituto Liberal apresenta inúmeros erros e inconsistências. No começo, o autor mistura o conceito de “esquerda política” com o “pós-modernismo filosófico” – sem mencioná-lo, mas fazendo referências a pensadores e obras que denunciam essa moda anti-intelectualista e irracionalista. Em seguida, ao abordar a história e a sociologia, ele comete um equívoco ao afirmar que elas “são disciplinas típicas de esquerda”, ignorando o contexto histórico e as influências que a sociologia sofreu ao longo do tempo. Em alguns pontos do artigo, o autor apresenta uma característica de ambiguidade que dificulta a compreensão entre o que está sendo objetado e o que está sendo defendido – por exemplo, o autor faz algumas afirmações extraordinárias que confrontam com o nosso conhecimento atual sobre a mecânica quântica e não deixa claro se está o endossando ou rejeitando tal concepção.
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NOTA
O Instituto Liberal retirou o artigo de circulação e ainda fez uma retratação com pedido de desculpas.