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As Interpretações dos Sonhos

Por Ana Carolina O. V. de Abreu*

Paul McCartney conta que um belo dia ele acordou de um sonho com uma melodia na cabeça. Então levantou-se, foi até o piano, e compôs Yesterday. Meio século antes, Niels Bohr dormia tranquilo em sua cama na Dinamarca e sonhava com o modelo estrutural do átomo que é utilizado até hoje. Eu, por outro lado, já sonhei que nas minhas veias corria suco de abacaxi e que estava sendo perseguida por uma aranha mutante gigante. Acho que não preciso dizer que isso não me rendeu um hit musical nem um prêmio Nobel, mas me deixou muito intrigada sobre o que o meu cérebro faz depois de me botar para dormir.

Os sonhos são um dos grandes mistérios da mente humana. Eles preenchem cerca de duas horas de cada uma das nossas noites de sono – quer lembremos ou não – e ninguém sabe explicar bem o porquê.

O que se sabe é que a maior parte dos sonhos ocorre durante a fase de sono REM (rapid eye movement), em que o corpo está paralisado mas a atividade cerebral é muito similar à de quando estamos acordados. Há, porém, uma diferença crucial: o córtex pré-frontal, responsável por planejamento, pensamento lógico e autocontrole, está praticamente inativo durante esta fase do sono.

Isso significa que as outras áreas do cérebro estão livres para interagir sem fiscalização. Com o pensamento racional inibido, lembranças da infância se misturam com um sentimento do dia anterior em um cenário do filme que você estava assistindo antes de dormir. Situações bizarras, ilógicas e desorganizadas surgem, como foi o meu caso com o suco de abacaxi nas veias.

Nossos sonhos podem até não fazer muito sentido, mas isso não quer dizer que eles não tenham uma função. Em uma de suas obras mais famosas, A Interpretação dos Sonhos, de 1900, Sigmund Freud defende que eles sejam uma forma que o inconsciente encontrou de satisfazer desejos reprimidos. Para o psicanalista, esses desejos estariam quase sempre disfarçados, expressos através de símbolos – o que explicaria os pesadelos. Em 1953, com a descoberta do sono REM, os sonhos passaram a ser estudados em laboratório e várias novas hipóteses foram elaboradas.

Resolução de problemas

Em um experimento conduzido por Robert Stickgold, da Divisão de Medicina do Sono da Harvard University, estudantes foram convidados a navegar por um labirinto virtual 3D, em uma espécie de video game. Depois do treinamento inicial foi feito um intervalo de cinco horas, durante o qual metade do grupo permaneceu acordado e metade tirou um cochilo. Ao voltarem a jogar, aqueles que dormiram tiveram um desempenho ligeiramente melhor: demoraram alguns segundos a menos que seus colegas despertos para encontrar a saída do labirinto.

Porém, entre os que dormiram, houve ainda voluntários que sonharam que estavam em um labirinto, ou ouviram a musiquinha do jogo. Estes que sonharam de alguma forma com o experimento tiveram um rendimento impressionante – dez vezes melhor do que os outros estudantes que cochilaram.

É interessante notar que aqueles que sonharam com o labirinto foram os que se saíram mal da primeira vez que jogaram. Segundo os pesquisadores, “se uma tarefa é difícil para você, o seu cérebro percebe, e você tem mais chances de sonhar com ela do que se fosse fácil. Quando você sonha, seu cérebro procura por conexões que você pode não ter pensado ou reparado enquanto estava acordado, e tenta entender o que é importante e o que pode descartar”.

Simulação de ameaças

Outra hipótese foi proposta pelo psicólogo finlandês Antti Revonsuo, que sugere que a função dos sonhos é simular eventos hostis para ensaiar a capacidade do cérebro de perceber e escapar de experiências perigosas na vida real. De acordo com ele, no ambiente cheio de ameaças em que nossos ancestrais viviam, a evolução teria favorecido qualquer vantagem em lidar com esses eventos.

Seguindo essa lógica, as pessoas que sonhassem com situações ameaçadoras reagiriam melhor frente a tais situações quando acordadas, pois já haveriam passado por uma simulação de algo parecido. Apesar dessa hipótese explicar por que eu sonhei que estava fugindo de uma aranha mutante gigante, não parece se aplicar aos outros sonhos não-ameaçadores que temos.

Lidando com experiências traumáticas

Ernest Hartmann, professor de psiquiatria na Tufts University, estudou os diários de sonhos de pessoas que haviam passado por experiências dolorosas. Ele percebeu que pesadelos e sonhos intensos, como o de estar sendo varrido por uma onda gigante, são mais frequentes após um trauma e que, com o passar do tempo, vão sendo gradualmente substituídos por temas mais banais.

O pesquisador explicou que “o sonho parece estar de alguma forma ‘conectando’ ou ‘tecendo’ o novo material na mente, o que sugere uma possível função. A curto prazo, fazer essas conexões diminui o distúrbio emocional e a ansiedade. A longo prazo, o conteúdo traumático é associado com outras partes do sistema de memória e acaba não sendo mais algo tão único ou extremo – então da próxima vez que algo similar ocorrer, as conexões já estarão presentes e o evento não será tão traumático”. Como uma vacina.

Inúmeras outras hipóteses tentam explicar por que sonhamos. Talvez todas estejam erradas, talvez em cada uma delas haja algo de verdadeiro. Provavelmente não há uma resposta só – afinal, se o cérebro humano fosse tão simples que pudéssemos entendê-lo, seríamos tão simples que não o entenderíamos (Emerson M. Pugh).

Referências:

  • Hartmann E. The underlying emotion and the dream relating dream imagery to the dreamer’s underlying emotion can help elucidate the nature of dreaming. International review of neurobiology. 2010;92:197-214. doi: 10.1016/S0074-7742(10)92010-2.
  • Revonsuo A. The reinterpretation of dreams: An evolutionary hypothesis of the function of dreaming. The Behavioral and brain sciences. 2000;23(6):877-901. doi:10.1017/cbo9780511615511.007.
  • Wamsley EJ, Tucker M, Payne JD, Benavides J, Stickgold R. Dreaming of a Learning Task is Associated with Enhanced Sleep-Dependent Memory Consolidation. Current biology : CB. 2010;20(9):850-855. doi:10.1016/j.cub.2010.03.027.

 

*Este texto foi produzido por Ana Carolina O. V. de Abreu, graduanda em Biomedicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como proposta de trabalho da disciplina Introdução à Psicologia para Biomedicina. Simulando o processo editorial de publicações científicas (double-blind peer review), após a produção do texto original, dois outros alunos revisaram anonimamente o manuscrito da colega e deram sugestões para o aperfeiçoamento do mesmo. Assim, Ana Carolina produziu e aprimorou o texto acima, o qual revisei e selecionei para ser publicado aqui, no Universo Racionalista.
Destaco e agradeço a importante iniciativa do Universo Racionalista neste projeto. Ao incentivar a divulgação científica produzida por alunos de graduação, ele não apenas amplia o acesso ao conhecimento gerado na academia, como também ajuda a expandir as perspectivas destes profissionais em formação.
João Centurion Cabral

João Centurion Cabral

Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento (LPNeC). Além de ser pesquisador/doutorando em tempo integral e divulgador de ciência nas (poucas) horas vagas, sou um curioso nato buscando entender a natureza do comportamento humano.