Pular para o conteúdo

Leis do Raciocínio

Nota: Este texto é baseado nos artigos The Laws of Thought, de James Danaher, e no verbete homônimo da Enciclopédia Britannica (links estão no final do post). Trata-se, portanto, de um resumo informativo que tem por objetivo introduzir o assunto a leitores de todos os níveis de conhecimento filosófico.Não aprofundamos nenhuma das ideias aqui apresentadas, mas encorajamos os leitores a pesquisar mais sobre.

O pensamento crítico está presente em várias esferas da vida e é um dos pilares para o desenvolvimento da ciência e da filosofia, já que a organização e a clareza do pensamento são fundamentais para a construção de qualquer conhecimento. O discurso racional de forma sistematizada surge, portanto, lado a lado à filosofia na Grécia Antiga, muito embora os estudos sobre o assunto apareçam somente séculos depois dos primeiros filósofos.

Um dos primeiros a utilizar príncipios ou leis do raciocínio para fundamentar sua filosofia, ao menos intuitivamente, foi Parmênides (530 a.C-460 a.C). Entre os filósofos mais importantes da Escola Eleática, Parmênides desenvolveu a base do que se chama ontologia, o estudo do Ser. Para ele, o Ser existe (já que seria uma contradição dizer que o Ser não é) e, a partir desse axioma, é possível derivar as características do Ser (eternidade, imobilidade, imutabilidade etc). É importante observar que o pensamento de Parmênides opera segundo a lei da não-contradição e a partir dessa lei ele justifica o argumento acerca do Ser. Embora a sua obra apresente metáforas e seja numa forma poética, o racíocinio presente já introduz as primeiras regras da Lógica como fundamento para um argumento.

A estrutura de argumentos

Mas foi somente séculos depois, a partir de Aristóteles (384 a.C – 322 a.C), que trabalhos significativos acerca da Lógica e da Retórica foram produzidos. Uma das suas ideias mais famosas – e a base da lógica Ocidental por cerca de 2000 anos – foi o silogismo. Basicamente, o silogismo trata da validade de argumentos, que podem ser indutivos ou dedutivos. Um argumento é formado por premissas e uma conclusão. Formalmente, um argumento é válido quando a verdade das premissas é preservada na conclusão. Em termos leigos, se diz que argumentos dedutivos partem de premissas universais e chegam a conclusões particulares, enquanto que argumentos indutivos fazem o caminho inverso: partem de premissas particulares e concluem proposições universais. Vejamos o exemplo clássico que ilustra essa diferença:

Argumento A

Premissa 1: Todos os homens são mortais.

Premissa 2: Sócrates é homem.

Conclusão: Sócrates é mortal.

Neste tipo de argumento, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão deve necessariamente ser verdadeira, do contrário, o argumento não é formalmente válido. Argumentos dedutivos como do exemplo foram a base do pensamento matemático e foram reverenciados por filósofos por garantir a certeza do conhecimento. A seguir, mudamos o papel das proposições na estrutura do argumento que usamos como exemplo anteriormente:

Argumento B

Premissa 1: Sócrates é homem.

Premissa 2: Sócrates é mortal.

Conclusão: Todo homem é mortal.

Estranho, certo? Vejamos então um exemplo melhor:

Argumento C

Premissa 1: O sol nasce todos os dias desde que a Terra existe.

Conclusão: O sol nascerá amanhã.

Percebe-se que argumentos indutivos não são necessários, mas tratam de probabilidades. É possível que amanhã o sol não nasça, assim como é possível que nem todo homem seja mortal. Especialmente no caso do Argumento B, temos o problema de que se trata de um único caso particular. Quanto maior o número de casos particulares, maior a probabilidade e mais forte o argumento indutivo será. Portanto, se as premissas forem verdadeiras, existe uma maior probabilidade de que a conclusão também seja verdadeira.

Argumentos indutivos foram tratados como um problema na filosofia moderna por filósofos como David Hume e Karl Popper e foram/são, de certa forma, pano de fundo para o desenvolvimento de hipóteses científicas, mas não somente. Hume demonstrou que no dia-a-dia utilizamos o racíocinio indutivo, por exemplo, quando assumimos que o pão que comemos hoje tem as mesmas propriedades do pão que comemos ontem, ou quando assumimos que o sol nascerá amanhã do mesmo modo que nasceu nos dias anteriores.

É importante notar que argumentos não são verdadeiros ou falsos, mas válidos ou inválidos. O critério de verdade se aplica ao conteúdo dos argumentos, não ao argumento em si. O estudo da validade de argumentos, portanto, é formal e não se baseia na veracidade daquilo que as proposições afirmam.

Os erros de racíocinio são chamados de falácias e, em alguns casos, também são referidos como sofismas. O termo sofisma vem da Grécia Antiga, em que professores conhecidos como sofistas (do grego, sofia = sabedoria, sofista = sábio) eram conhecidos por distorcer o discurso utilizando um racíocinio incorreto, mas com a aparência de válido. Os sofistas, por sinal, são “avós” de muitas posições adotadas por filósofos pós-modernos, como o relativismo epistemológico. Mas, não vamos nos aprofundar mais na questão sobre falácias e argumentos porque já existe um texto muito bom sobre o assunto publicado aqui no Universo Racionalista, clique aqui para conferir.

As leis do pensamento

Voltemos, então, à questão das leis do pensamento. Como foi dito anteriormente, Pârmenides é o primeiro filósofo a utilizar uma norma de racíocinio: a Lei da Não-contradição (1). Essa lei, somada à Lei do Terceiro Excluído (2) e a Lei da Identidade (3), forma o conjunto das Leis do Pensamento. Desde o tempo de Pârmenides, no entanto, essas leis foram questionadas. Heráclito (535 a.C – 475 a.C), contemporâneo de Pârmenides, defendia justamente o oposto: a realidade seria caracterizada pela mudança, instabilidade e pela contradição. Não existe o Ser, mas o “vir a ser”, tornar-se. A realidade muda o tempo todo e contém em si o ser e o não ser. Veremos mais adiante de que forma os filósofos gregos posteriores a Heráclito lidaram com esse problema.

Analisando de forma simplificada as leis citadas acima, pode-se ver que todas as três possuem uma relação com a ideia de identidade: A lei (1) afirma que uma proposição não é igual à sua negação, o que seria traduzido, em termos formais,como: dada uma proposição A, A não é igual a não A (A ≠ ¬ A). A lei (2) diz que ou A é verdadeira ou ¬A é verdadeira, não existindo uma terceira opção (A ˅ ¬A). Por fim, a lei (3), lei da identidade, estabelece que A formalmente implica A (A = A).

É interessante notar a relação dessas leis com a teoria dos universais de Platão. Por exemplo, dadas as proposições “Sócrates é um pai” e “O cachorro tem um pai”, poderia-se concluir que “Sócrates é pai de um cachorro”. É certo que a conclusão de que Sócrates é pai de um cachorro é absurda, mas como ele poderia ser pai e ao mesmo tempo não ser? Platão determina, então, que essas leis do pensamento precisam ser restringidas para que não levem à conclusões absurdas.

Aristóteles aprofunda essa ideia ao criticar a posição de Heráclito e restringe a identidade a um momento no tempo, solucionando o problema da mudança do ser produzir contradições: “o mesmo atributo não pode pertencer e ao mesmo tempo não pertencer ao mesmo sujeito.” [1]

Apesar dos problemas derivados dessas leis, tanto Aristóteles quanto Platão optaram por mante-las como ponto de referência do pensar corretamente. Logo, quando algum paradoxo ou problema surgia, era preciso especificar as condições para que a integridade das leis fosse mantida.

Ao longo da história da filosofia, o procedimento padrão foi justamente esse: analítico, de quebrar em partes até não restar contradição, do mesmo modo que Aristóteles “quebrou” o ser em partes no tempo (o ser de 1 segundo atrás não é o mesmo ser atual).

No entanto, no século XIX, pensadores como Hegel retomaram as ideias de Heráclito. A lógica hegeliana elimina a lei da não-contradição para abraçar a ideia do Absoluto, uma totalidade semelhante à Substância de Spinoza e ao próprio Ser de Pârmenides. Tendo como framework parte da epistemologia kantiana, Hegel assume que essa separação entre as coisas, a própria noção de identidade, seja um problema da razão humana. A coisa em si, a essência da realidade, seria o eterno fluir de Heráclito.

No século XX, surgiram outras propostas de lógica alternativas à lógica clássica e que eliminam uma ou todas as leis, como é o caso da lógica intuicionista. Apesar disso,o debate sobre as leis do pensamento, se elas ainda são válidas, se é necessário modifica-las, permanece aberto na academia.

NOTAS:

[1] Metaphysics G, 3,1005b18-20

REFERÊNCIAS:

DAHANER, James. The Laws of Thought – http://www.the-philosopher.co.uk/lawsofthought.htm

Encyclopedia Britannica – http://www.britannica.com/topic/laws-of-thought

MATERIAL RECOMENDADO:

Série de palestras sobre pensamento crítico realizado pela Universidade de Oxford. (em inglês): https://youtu.be/kBlQj5uiOXc

Caroline Soares de Araujo

Caroline Soares de Araujo

Jornalista graduada pela UFPA (2013), estudou por seis meses história da filosofia na Università degli Studi di Firenze (UNIFI). Mestranda em Filosofia no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPA (PPGFIL). Tem interesse por Epistemologia, Lógica, Filosofia da Ciência e Filosofia da Matemática.