Por Quentin Ruyant
Publicado no Scientia Salon
Uma das principais tarefas da filosofia é clarificar problemas conceituais e montar um panorama de possíveis soluções para esses problemas. Claro, filósofos individuais muitas vezes tendem a defender posições especificas, mas o que emerge no nível de comunidade é, em geral, um panorama de possibilidades.
Tome, por exemplo, a questão do realismo científico: Qual é o status das teorias científicas? Elas deveriam ser interpretadas como descrições literais da realidade? Ou são instrumentos de predições, ferramentas para interagir com a realidade? Ou talvez meras construções sociais? O jeito padrão de elaborar esse problema surgiu de discussões filosóficos no decorrer dos anos e se decompõe em três perguntas distintas:
- Questão Metafísica: A natureza, objeto do estudo cientifico, existe independentemente da nossa concepção e observação? Idealistas e Construtivistas Radicais negariam isso.
- Questão Semântica: O que faz uma teoria verdade? Elas são descrições literais da natureza? Existe correspondência direta entre linguagem (incluindo linguagens formais ou modelos matemáticos) e a constituição fundamental da natureza, ou o significado das nossas proposições teóricas reduz suas condições de verificação? Instrumentalistas normalmente optariam pela última visão.
- Questão Epistêmica: Estamos nós em posição de saber que nossas teorias são ao menos aproximadamente verdades? Empiristas diriam que, enquanto nossas teorias pretenderem dizer mais do que é verificável ao nível de fenômeno observável, nos não estamos em posição de saber se elas são mais verdades do que (talvez inconcebíveis) teorias alternativas através de confirmação empírica.
Realismo científico é então a posição de que a realidade existe independentemente da mente, que nossas teorias deveriam ser interpretadas como (aproximadas) descrições literais da realidade, e que estamos em posição de saber se elas são (ao menos aproximadamente) verdade.
O panorama conceitual que estamos considerando é constituído também de argumentos pro e contra cada possibilidade. Atualmente, as proposições semânticas e metafísicas do realismo científico são frequentemente aceitas por filósofos (ao menos da tradição analítica). Apenas o aspecto epistemológico está ainda em discussão.
Um dos principais argumentos do realismo científico, formulado por Putnam, é que realismo é a única posição que não torna um milagre o sucesso preditivo da ciência. O ponto é que anti-realismo não tem explicação convincente para o impressionante sucesso da ciência (notavelmente por fazer novas e inesperadas predições), enquanto realistas tem uma simples: nossas teorias funcionam porque elas descrevem realidade corretamente.
Por outro lado, um dos principais argumentos contra realismo científico é o dito meta-indução pessimista: no passado, teorias abandonadas eram falsas (não existe forças gravitacionais como Newton pensava, apenas deformações do espaço tempo, de acordo com relatividade), então é razoável esperar que teorias contemporâneas também vão eventualmente ser substituídas por outras diferentes. Então não é razoável acreditar na sua verdade.
Alguns tem buscado um acordo entre realismo [1] e anti-realismo, enfrentando o desafio da indução pessimista por restringir realismo para o conteúdo estrutural das teorias (a relação “de lei” entre entidades, ao invés das teorias em si), o que, eles dizem, é retido nas mudanças de teoria. Essa posição é , de acordo, conhecida por realismo estrutural [2]. Outros, por razões similares, querem restringir à entidades concretas com as quais interagimos casualmente. Isto é chamado Realismo de Entidade.
Instrumentalismo e Mecânica Quântica
Como dito acima, a maior parte dos argumentos nesse debate são de natureza epistemológica: eles tratam do conhecimento científico em geral. Eles não entram em muitos detalhes sobre o conteúdo específico da teoria científica, exceto com propósito de exemplificação. O argumento que eu desejo defender aqui é que, ao contrário, o conteúdo específico de teorias não deveriam ser ignorado nessas discussões, e que uma teoria em particular coloca uma séria ameaça ao realismo científico, a mecânica quântica. Essa teoria, eu vou argumentar, não tem interpretação “literal” direta.
Se isso estiver correto, então realismo científico perde sua força: porque argumentar que teorias científicas devem ser interpretadas literalmente, se não existe tal interpretação para nossa melhor teoria física (que alegadamente lida com os níveis mais fundamentais de realidade)? Não deveríamos ir de volta para concepções mais modestas do significado das nossas teorias e aceitar uma visão mais humilde do status de nossas representações? Talvez nos poderíamos encontrar um jeito de acomodar alguma desirata do realismo enquanto desistimos numa correspondência estrita entre modelos de realidade.
Primeiramente, deixe-me dizer algo sobre o relacionamento de longa data entre a mecânica quântica e o instrumentalismo. A Mecânica Quântica foi desenvolvida num período no qual diferentes formas de instrumentalismo (uma negação da proposição semântica acima, pela teoria verificacionista do significado, por exemplo) eram prevalentes. Era também um tempo no qual filósofos e cientistas alimentavam fortes relações intelectuais. Famosos cientistas e filósofos se juntaram no Círculo de Viena nos anos 20. O círculo deu nascimento ao empirismo lógico [2], um movimento filosófico que por muito tempo influenciou a filosofia da ciência. Instrumentalistas desapareceram no decorrer do século XX, depois do falecimento do empirismo lógico. Posições instrumentalistas eram atacadas por argumentos fortes, tanto internos quanto externos ao movimento, mas principalmente na filosofia da linguagem [5]. Entretanto, mecânica quântica permaneceu, e, por assim dizer, se tornou órfã de uma interpretação filosófica, como ilustrado pela notória corrente de pensamento: “cale a boca e calcule” entre alguns cientistas praticantes, que começou após a Segunda Guerra.
Infelizmente para os realistas, a estranheza da mecânica quântica está aqui para ficar. Não que a teoria não vai ser superada por uma teoria melhor. Isso certamente vai, como a teoria quântica de campos padrão, que funde mecânica quântica e relatividade, não leva em conta gravitação. Entretanto, existem fortes indicadores que seu sucessor vai compartilhar os aspectos mais desafiadores. Alguns são inferidos pelo Teorema de Bell [6], que em boa parte independe da teoria em si. As consequências estranhas do teorema, que nenhuma teoria realista local pode considerar fenômenos observados, tem sido bem confirmada por experimentos, como os de Aspect em 1982 [7]. Qualquer teoria futura vai ter que acomodar esse resultado.
Pessoalmente, eu tendo a pensar que a teoria não poderia ter sido desenvolvido sem a forte posição instrumentalista de seus fundadores, e que sucesso empírico da teoria clama por um compromisso entre o atual realismo dos filósofos e uma quase internamente construída teoria instrumentalista. Existem tentativas de reconciliar mecânica quântica com realismo, mas eu acho que eles encontram sérios desafios e levam a conclusões inaceitáveis. Talvez outra caminho seja preferível.
Esse artigo, entretanto, não é para encontrar um caminho alternativo, um objetivo demasiado ambicioso. Mais modestamente, eu vou simplesmente expor as dificuldades em formular uma interpretação realista da mecânica quântica.
O problema da medição
Existem duas principais dificuldades que interpretações realistas da mecânica quântica enfrentam: primeiro, o problema de medição, segundo, o problema de referência.
O problema da medição é uma área onde filósofos fizeram seu trabalho direito em clarificar o problema. Na mecânica quântica clássica (não vou tratar da teoria quântica de campos, mas o problema é essencialmente o mesmo) sistemas são descritos por funções de onda. Diferente propriedades podem ser medidas em um sistema: sua posição, seu momento, seu spin. Uma função de onda é uma estrutura matemática que, de forma simplificada, descreve a correlação entre todas os possíveis resultados de medições dos sistema para essas propriedades, incluindo, no caso de sistemas compostos, a possibilidade de resultados para todas as combinações de medições de distintas partes do sistema, não importando o quão distantes. Note que a função de onda codifica todas as medições complexas possíveis, mas não todas as medições são compatíveis e podem ser feitas simultaneamente (pense, por analogia, em um objeto 3D que codifica todas as possibilidades de perspectiva 2D do objeto, mas apenas uma das perspectivas pode ser percebida de cada vez). Cientistas chama essas complexas possibilidades de medir um sistema de “observáveis.”
A função de onda evolui de acordo com uma equação linear, a equação de Schrödinger. Os coeficientes associados com os possíveis resultados para uma observação são números complexos (com módulo, ou valor absoluto, e fase), que levam em conta que(de novo, de forma simplificada) possíveis resultados possam interferir um com outro, ao menos quando não são medidos (imagine que de certa perspectiva 2D, partes do objeto se sobrepõe e interferem de forma construtiva ou destrutiva).
Em adição a esse modelo matemática, a regra de Born nos diz como inferir possíveis resultados do modelo. Isso significa projetar a função de onda em apenas um dos possíveis resultados para gerar uma probabilidade, calculada do coeficiente correspondente.
O problema é esse: se realismo é verdade na mecânica quântica clássica, então a realidade, como descrita pela teoria, é uma função de onda, que codifica todos os possíveis resultados para todas as possíveis medições de um sistema, mas a realidade empírica, da qual testamos a teoria, é constituída apenas de medições com resultados observáveis determinados e específicos. Então existe uma lacuna entre modelo e realidade empírica. A lacuna é preenchida pela regra de Born, mas a regra de Born não é parte do modelo físico. Não é um objeto, nem um processo ocorrendo no espaço-tempo: é apenas uma regra matemática. Também é relativo a forma de medir o sistema. Como podemos fazer sentido disso?
Alguém poderia pensar que o problema é fácil: apenas interprete a função de onda como um objeto epistêmico, descrevendo nossa ignorância do real estado subjacente. Assim que probabilidades eram normalmente interpretadas na física clássica afinal: como reflexo da nossa ignorância. Talvez a função onda pode ser vista como a sobreposição de possíveis estados, mas apenas um deles existe de fato. Entretanto, decomposição em possíveis estados depende do observador. Como poderia um sistema saber em avanço como ele seria observado? Lembre, também, que “possíveis estados” observáveis que não são medidos podem interferir uns com os outros, eles todos contribuem potencialmente para o resultando final do sistema observado que se mede, ao menos estatisticamente. Como eles podem fazer isso se eles nem ao menos existem? mas se todos eles existem, por que nós sempre observamos determinados resultados, e não superposição deles? O que acontece durante a medição?
Como eu disse, filósofos fizeram um excelente trabalho clarificando o problema; aqui está uma formulação (que eu tomo de Maudlin [8]) em termos de um trilema: três proposições que não podem ser aceitas juntas:
- A função onda é uma descrição completa do estado de um sistema;
- A função onda se desenvolve de acordo com a dinâmica linear (Equação de Schrödinger)
- Todas as medições tem resultados determinados
De (1), o sistema pode ser visto, por qualquer observador, como a “sobreposição de estados.” Seguindo (2), a superposição dos estados vai necessariamente se desenvolver numa outra superposição de estados, não existe “projeção” física. Vamos aceitar (1) e (2) e descrever o estado do aparato de medida acoplado com um sistema composto de uma função onda. O aparato de medição também é um sistema físico. No final do experimento, o sistema+aparato vão estar em sobreposição de estados, contradizendo (3): O experimento tem um resultado determinado.
A conclusão lógica é que temos que abandonar uma das três proposições. Isto é o problema da medição.
As perspectivas de uma solução realista
Um dos benefícios dessa formulação é que se pode classificar as possíveis soluções do problema. Eu não vou entrar em muitos detalhes técnicos aqui, mas nenhuma solução é inteiramente satisfatória.
Rejeitando (1) ou (2) envolve completar a teoria com estruturas adicionais.
Mecânica Bohmiana [9] é o movimento mais conservador. Rejeita (1) por postular partículas pontuais (e casualmente ociosas) em adição a função de onda, assim como na física clássica. Isso retorna determinismo mas se é obrigado postular interação instantânea a distância, e é talvez menos apta a reconciliar mecânica quântica e relatividade (que tem notórias e complicadas relações com não-localidade e simultaneidade).
Uma outra possibilidade nessa classe de soluções é implementada pela interpretação modal [9], inicialmente proposta por van Fraassen, que completa a teoria com um observador dinâmico, privilegiado, para o qual existe um estado determinado em qualquer tempo ( e que eventualmente coincide com o estado que é medido). Mecânica Bohmiana pode ser lida como uma interpretação modal onde o observador privilegiado é estático e está sempre me posição. Interpretações modais também requerem a noção de simultaneidade absoluta, porque o estado de um sistema não-local,por construção, é determinado num instante particular. Por essa razão, elas são difíceis de reconciliar com teoria da relatividade.
Algumas teorias rejeitam (2) por postular processos de projeção físicas aleatórias, também chamadas colapsos. Uma possibilidade inicial, visualizada por Wigner e von Newman, era o colapso induzido por observadores conscientes [9], mas essa solução parece muito antropocêntrica e dualista para ser aceitável e nunca foi articulada precisamente. Formulações mais concretas são as teorias GRW e CSL [9], que postulam colapso espontâneo (respectivamente, discretos e contínuos). Essas teorias fazem predições distintas da Mec. Quântica padrão, mas eles vem com parâmetros ( a taxa e intensidade do colapso) que estão calibrados para se manterem compatíveis com as atuais confirmações empíricas da teoria. Isso é um pouco ad-hoc, obviamente.
Todas essas teorias postulam estruturas matemáticas adicionais por razões não-empíricas por uma razão: salvar nossas presunções realistas. Discutivelmente, esse é um caso de “domesticação da ciência por metafísica” [10] que gostaríamos de ter evitado. Um preço mais concreto a pagar está nas dificuldades de reconciliar essas estruturas adicionais com a teoria da relatividade e na formulação de uma versão da teoria quântica de campos consistente dessas teorias. Não é preciso dizer que essas teorias são raramente consideradas por físicos. De qualquer modo, enquanto elas postularem estruturas adicionais, elas não podem ser consideraras diretas e literais leituras da mecânica quântica: elas são teorias distintas.
Rejeitar (3) parece a prima facie absurdo: como os resultados empíricos os que servem para testar a própria teoria, não serem determinados?
A solução, proposta por Everett, é ver elas como relativas ao observador [9]. A ideia é que a função onda do universo se desenvolve em ramos relativamente independente (considerados pela teoria da incoerência [11]), e que experimentos estão sempre situados em apenas um dos ramos, do qual resultados empíricos parecem determinados. Cada resultado medido é instanciado em um ramo separado. Seguindo essa proposta vem as interpretações de muitas mentes e de muitos mundos [9].
O movimento é tentador: nós poderíamos ter uma teoria realista sem o custo de estruturas adicionais, somente se nós abandonarmos certos intuições de senso comum e aceitar que trilhões de mundos alternativos, inacessíveis são instanciados cada milissegundo. Alternativamente, nos poderíamos ver o universo como o conjunto inter-relacionado de todos os mundos físicos possíveis e suas evoluções completas, e cada um de nós localizado em algum lugar desse gigantesco quarteirão do universo. Mas o diabo está nos detalhes. A interpretação de muitas mentes vem com uma ontologia muito estranha (infinitas mentes habitariam cada um de nós em qualquer instante, seguindo diferentes ramos) além de um cometimento problemático com dualismo e epifenomenalismo. A interpretação de muitos mundos não faz sentido de probabilidade: nos falamos de probabilidades como se todos os resultados fossem igualmente reais? Nós não podemos invocar probabilidade com ignorância aqui: não tem nada relevante que ignoramos. Nós sabemos que cada resultado vai acontecer. Ainda mais, porque a regra de Born? Não deveríamos ver cada resultado com uma probabilidade igual?
Existem tentativas de resolver o problema apoiando as probabilidades em agentes epistêmicos restritos a racionalidade (a proposta foi feita por um físico alemão e melhorada pelo filósofo Wallace [12]). Probabilidades seriam subjetivas e corresponderiam à apostas em resultados futuros. A regra de Born pode ser tirada como a única regra que satisfaz certas restrições simétricas no rateamento de probabilidades de estados quânticos. Entretanto, não é claro se essa solução sucede. Apostas são feitas em resultados empíricos, mas sem uma concepção mais robusta de probabilidades (alguma coisa que poderia estar ligada a distribuição estatística no multi-verso) não há nenhuma razão para pensar que resultados estatísticos passados são representativos de todo o universo: se essa teoria é verdade, parece que não estamos racionalmente capacitados para acreditar que mecânica quântica é verdade![13] Em qualquer caso, o que estamos realmente dispostos a apostar se todos nossos eu’s futuros existem igual a nós? Porque deveríamos nos importar? Restrições racionais supostamente tem um aspecto normativo (não são leis psicológicas: nos dizem que deveríamos fazer), mas aqui, qual o ponto, exatamente?
A interpretação de muitos mundos também tem necessidade incoerência, mas talvez a teoria de incoerência também depende de uma interpretação mais robusta de probabilidade [14]. Isso também pressupõe uma distinção entre sistemas e seus ambientes, mas o universo como um todo tem um ambiente?
O problema de referência
Já deu do problema de medição. Existe um outro desafio qual a teoria realista enfrenta: o problema de referência.
Seguindo da proposição semântica do realismo, deveria haver correspondência entre modelos matemáticos e entidades reais. Entretanto, a função onda não é o tipo de estrutura que pode ser mapeada em entidades reais, como normalmente entendido. O problema, então, é com conectar essa imagem com experiências do dia a dia.
Tome o campo eletromagnético da física clássica: ele atribui vetores para cada ponto do espaço-tempo. O objeto não é difícil de representar. Apenas imagine que um vetor é um tipo de propriedade do campo num local específico. Mas que tipo de objeto é uma função onda? A função onda, interpretada como campo, não atribui propriedades a pontos do espaço-tempo: ela vive num espaço matemática abstrato de dimensões infinitas (chamado espaço de configuração). Tradicionalmente, essas dimensões matemáticas eram construídas como os graus de liberdade de diferentes partículas. Legal, mas isso supõe que as partículas existem em adição a função de onda: mas se, seguindo as teorias de muitos mundos, CRW ou CSL, nós desejássemos ver a função de onda como um objeto autônomo, como “tudo que há”? Não é fácil, dessa representação abstrata de um objeto com infinitos graus de liberdade recuperar a “imagem manifesta do mundo”: o família, 3+1 dimensional espaço tempo, preenchido por objetos ordinários, no qual nós fazemos testes empíricos de nossa teoria. Alguns autores estão preparados a fazer o sacrifício (como Albert, por exemplo) e esperam que nosso espaço-tempo familiar é de alguma forma emergente do espaço de configurações, mas muitos pensam que isso é um problema, e que a teoria física deveria ser capaz de nos dizer o que existe no espaço-tempo [15].
Uma possível solução é pensar na função onda como uma entidade “nômica”, similar as leis da natureza, ou disposições, ao invés de objetos concretos, e suplementar a teoria com estruturas adicionais que descrevem o portador dessas disposições, ou as implicações dessa lei, no espaço-tempo ordinário. Mecânica Bohmiana já tem as partículas para essa função. Propostas para GRW incluem os peculiares pontos do espaço-tempo onde o colapso ocorre, conhecidos por “flashes”, ou campos de densidade de matéria [16]. Note que essa estrutura adicional é inútil e não serve a nenhum propósito empírico: não estamos, novamente, tentando forçar teorias científicas em moldes dos nossos preconceitos metafísicos?
Além disso, pensar na função onda como uma lei dificilmente faz sentido: leis da natureza não variam no espaço e no tempo. Mas pensar na função onda como disposições é difícil também, porque a função onda é um objeto não local e não pode ser atribuída a portadores locais diretamente (como Esfeld e Egg observam no artigo [17]). Elas deviam ao invés serem atribuídas a “configuração das coisas”. No fim, nos poderíamos ser deixados como uma estrutura abstrata que representa as disposições de como o universo evolui. Não muito entusiasmante.
Juntando, em qualquer uma dessas teorias a função onda não pode ser dispensada porque faz todo trabalho preditivo, assim por dizer; mas seu status ontológico e a forma com que está conecta com objetos da nossa experiência permanece, de certa forma, obscura.
Outras Interpretações
A concepção da discussão até então tem sido realista. O problema de referência direta segue de um compromisso realista, que as estruturas da teoria correspondam a entidades reais, e implicitamente na formulação do problema de medição é que a função onda descreve um estado (se não um estado completo) que evolui com o tempo.
Vamos agora falar um pouco sobre algumas interpretações não realistas. Físicos contemporâneos não concordam na interpretação correta da mecânica quântica. Alguns deles são realistas e explicitamente defendem a interpretação de muitos mundos (Carrol [18] por exemplo). Talvez alguns tenham uma interpretação com colapso não explicito na mente, e outros não tem interpretação alguma (a escola do “cale a boca e calcule”), ou se seguram a vaga interpretação de Copenhagen [9] (resumidamente, realismo em relação a objetos clássicos e instrumentalismo com relação a mecânica quântica), ou a mais elaborada abordagem de histórias consistentes [9]. Em qualquer caso, ter uma interpretação ontológica clara e articulada não é necessário para todos os cientistas. Aparentemente o instrumentalismo esta perfeitamente bem, para todos os fins práticos. A questão do realismo é mais um problema filosófico, apesar de que houve um número considerável de cientistas influentes, de Newton até Einstein, que possuíam fortes visões metafísicas subjacentes as suas reflexões teóricas. Esse é provavelmente o caso para muitos cientistas contemporâneos também, mas é um assunto para outro texto.
Claro que, um benefício do instrumentalismo é evitar trivialmente os problemas acima. Tudo que é necessário é que a teoria funciona. Entretanto, existem jeitos mais sutis de trazer a luz os mistérios da mecânica quântica de uma perspectiva instrumental.
Olhando para mecânica quântica como uma teoria de informação, ou como uma generalização da teoria de probabilidade [9] (que se resume a revisar lógica clássica!), tem ganhado popularidade nas últimas décadas, notavelmente no campo de computação quântica. As propostas mais sofisticadas incluem Bayesianismo quântico, ou Q-bism [9]. Isso é claramente um movimento anti-realista (Bayesanismo é uma teoria subjetiva de probabilidades). Seguindo essas visões, a função de onda é epistêmica: ela descreve nosso conhecimento da realidade. Todas essas teorias dizem dizem que nossas inferências na física devem ser regras lógicas contra intuitivas, as regras da lógica quântica.
Uma outra possibilidade é adaptar a formulação de estado relativo do Everett com uma virada anti-realista (e sem os muitos mundos). Isso é a interpretação relacional [9], proposta pelo físico Rovelli, a qual mantém que funções onda não descrevem estados objetivos, mas relações entre observadores físicos (qualquer sistema físico) e sistema observado. Não há nenhuma “visão de lugar nenhum” objetiva. Outras tentativas similares de revitalizar a função onda para frames de referência. Há também a perspectiva das interpretações modais. Esse tipo de visão é de fato de espirito relativista: alguém poderia dizer que empurra a teoria da relatividade um passo a frente, pela relativização de estados físicos (não só coordenadas do espaço-tempo) para observadores físicos.
Finalmente, as interpretações transacionais [9] propostas pro Cramer postulam que medições são transações entre emissores e receptores. Uma transação envolve a combinação de uma onda retardada (avançando no tempo) e uma onda avançada (indo para trás no tempo, tradicionalmente descartas como objetos “não físicos” por físicos). A interpretação propõe uma narrativa num pseudo-tempo, onde ondas retardadas são oferecidas pelos emissores aos absorvedores, que respondem com ondas avançadas. Um absorvedor é selecionado e a transação ocorre. A interpretação retira a regra de Born de um jeito legal e elegante do seu formalismo. Eu não classifiquei como uma interpretação realista porque as transações não são processos físicos, elas não ocorrem no espaço-tempo, e são as vezes ditas relacionadas a perspectiva (por exemplo, por Kastner [19]). Talvez essa interpretação, com enfase nos aspectos relacionais (as transações), não está muito longe de interpretações relacionais.
Eu sou de certa forma simpatico a essas propostas, em particular quando elas mantém o componente realista não nos forçam a voltar a um idealismo hardcore. Mas elas enfrentam desafios e resta trabalho a ser feito para obter teorias metafísicas explicitas e completamente consistentes. Elas também precisam confrontar argumentos mais gerais que são parte do debate epistemológico do realismo científico.
Conclusão
Então, o que concluímos? Parece que os debates sobre realismo científico na epistemologia deveriam prestar atenção ao conteúdo específico das teorias. No caso da mecânica quântica, o problema é que não há nenhuma interpretação literal incontestável da teoria. A mais próximo tem tons instrumentalistas: nós diz pra aplicar regras matemáticas para calcular resultados probabilísticos de um modelo, o que não é muito realista. Discutivelmente, todas as outras interpretações (incluindo de muitos mundos) são conjecturas postas sobre a teoria. Além disso, todas encontram dificuldades: ou completamos a teoria com estruturas ad-hoc que não tem papel nas previsões e são tratadas para serem compatíveis com a teoria, ou enfrentamos problemas conceituais na interpretação de probabilidade (ou somos forçados a adotar a dúbia ontologia de muitas mentes). E em qualquer caso, o status ontológico da função onda permanece um tanto obscuro. Nenhuma solução é inteiramente satisfatória, até então.
Note que em relação ao debate epistemológico com o qual começamos, é suficiente dizer que existem mais de uma interpretações e teorias metafísicas possíveis, todas compatíveis com os dados empíricos, e nenhuma sendo natural ou direta [20]. Isso é suficiente para minar realismo científico com mecânica quântica: qual interpretação ou teoria deveríamos tomar como realista? Talvez o futuro vai convencer todo mundo que alguma o outra interpretação realista é a correta, mas eu não acho essa perspectiva muito boa no momento.
Enquanto as interpretações anti-realistas ? Se não existe forma direta na qual o conteúdo da mecânica quântica pode ser dito como “correspondente a” realidade, não deveríamos,por consequência, remendar a teoria de correspondência da verdade, e adotar uma atitude mais pragmática em relação a teorias científicas? Eu estou inclinado a pensar assim, mas admitidamente, a questão não é simples. Ao menos alguma parte de realismo científico é bastante sensível. O desafio é formular uma posição que não vire presa das objeções usuais ao instrumentalismo (em particular, o “argumento do nenhum milagre”, mas o argumento semântico também), e que recupere a “imagem manifestada do mundo”, a intuição do senso comum que objetos são estados na escala macroscópica e num espaço-tempo com poucas dimensões. Tudo isso, se possível, sem a forma vaga da interpretação de Copenhagen. Com essas dificuldades estabelecidas a nossa frente, não é surpresa que muitos autores prefiram acomodar alguma o outra interpretação realista.
Vamos nos manter otimistas: mecânica quântica é estranho, e provavelmente não vamos nos livra dessa estranheza, o que significa que há espaço para muito trabalho filosófico excitante!
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[1] Scientific Realism, SEP.
[2] Structural Realism, SEP.
[3] Entity realism, Wiki entry. See also Massimo’s recent post: On the Reality of Atoms and Subatomic Particles.
[4] On the Vienna circle and on logical empiricism.
[5] Popper criticized verificationism as early as 1934 (see: The Logic of Scientific Discovery). Quine’s “Two dogmas of empiricism” (1951) and Kuhn’s The Structure of Scientific Revolutions are among the most cited criticisms of logical empiricists’ positions. Kripke (in Naming and Necessity, 1980) and Putnam (“The Meaning of ‘Meaning,’” 1975) are often credited for their arguments against descriptivism, a semantic theory underlying logical empiricist’s positions.
[6] Bell’s Theorem, SEP.
[7] Aspect, A., Dalibard, J., and Roger, G. (1982), “Experimental test of Bell’s Inequalities using time-varying analyzers,” Physical Review Letters, 49:1804–1807.
[8] Maudlin, D., (1995) “Three Measurement Problems.”
[9] Here are some resources for the many interpretations of quantum mechanics: Bohmian mechanics; modal interpretations; Wigner-von Newman interpretation; collapse theories (GRW and CSL); Everett’s relative state formulation; many worlds and many minds; Copenhagen interpretation; consistent histories approach; quantum Bayesianism; quantum logic and probabilities; relational interpretations; transactional interpretation.
[10] Ladyman, Ross and Spurett vehemently argued against this attitude in Every Thing Must Go.
[11] The Role of Decoherence in Quantum Mechanics, SEP entry.
[12] Quantum Probability and Decision Theory, Revisited, arxiv.
[13] Against the Empirical Viability of the Deutsch Wallace Approach to Quantum Mechanics, PhilScience Archive.
[14] Many Worlds: Decoherent or Incoherent?, PhilScience Archive.
[15] See for example Wave function ontology, PhilPapers.
[16] On the common structure of Bohmian mechanics and the Ghirardi–Rimini–Weber theory, PhilPapers.
[17] Primitive ontology and quantum state in the GRW matter density theory, PhilSci Archive.
[18] Why the Many-Worlds Formulation of Quantum Mechanics Is Probably Correct, Preposterous Universe.
[19] The Transactional Interpretation of Quantum Mechanics, IEET.
[20] Underdetermination of Scientific Theory, SEP entry.