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Modernos, Estressados e Depressivos

Por Giancarlo Tomazzoni*

A depressão é uma das condições mentais mais conhecidas, discretas e debilitantes conhecidas pela humanidade. No Brasil, os casos crescem cada vez mais, já atingindo quase 6% da população. Sabe-se que o estresse cotidiano desencadeia processos químico-biológicos que culminam nesta neuropatologia, e seus tratamentos, quando procurados, são custosos e trabalhosos. Assim, este texto descreve biologicamente o mecanismo no qual o sistema nervoso é moldado por fatores sociais, acarretando em depressão.

Figura 1 – Via de Resposta Neuroinflamatória mediante estresse externo.

Esta moldagem gira em torno do sistema imune, que condiciona uma resposta aos danos físicos conhecida como “inflamação”. O que pouco se comenta, porém, é que a inflamação pode ser também desencadeada por estresse psicológico, mesmo na ausência de qualquer fator físico. Células do chamado Sistema Imune Inato (mais evolutivamente antigo), como macrófagos e neutrófilos, viajam na corrente sanguínea com seus receptores inespecíficos. Isto significa que qualquer patógeno, não importando qual, faz estas células desencadearem uma cascata inflamatória de forma rápida e intensa. Esses receptores só conseguem distinguir os patógenos de outras células porque identificam certos padrões de comportamento molecular característicos de patógenos, os chamados Padrões Moleculares Patógeno-Associados (PAMPs).

Simplificadamente, a reação que ocorre nas células imunes após a identificação dos PAMPs é ativação de genes produtores de proteínas citocinas. Quando liberadas por células imunes, elas atuam como sinalizadoras para estimular um processo inflamatório (pró-inflamatórias) ou inibi-lo (anti-inflamatórias). Isto é possível porque diferentes tipos de citocinas estimulam ou inibem proteínas auxiliares da inflamação (como quimiocinas e proteínas C-reativas), responsáveis por marcar o local de inflamação para recrutar mais células imunes. Vê-se, assim, que as citocinas pró-inflamatórias produzem os efeitos conhecidos de vermelhidão, calor, inchaço e dor, que acabam aumentando a temperatura corpórea, os batimentos cardíacos e a taxa respiratória. Esses efeitos gerados acarretam na apatia social, a fim de evitar que a infecção se espalhe para os demais organismos no ambiente. Há, portanto, uma importância evolutiva para o desenvolvimento de comportamentos de evitação social a partir de processos inflamatórios. Resta ainda responder: como a inflamação pode ser gerada a partir do estresse social?

Figura 2- Resposta Transcricional às Adversidades (CTRA). Cada lado da figura corresponde a um tipo de ameaça. O direito corresponde ao estresse social moderno, o esquerdo às ameaças pré-contemporâneas.

A lógica/via neural que responde aos eventos sociais causando inflamação é bem compreendida (Fig.1): resumidamente, em pacientes saudáveis, duas regiões cerebrais (lobo insular (AI) e córtex cingulado (dACC)), respondem mais ativamente a situações de estresse social. Inicialmente, nestas regiões, os receptores das principais citocinas pró-inflamatórias (as TNF-α, IL-1β e IL-6) são superativados durante a extenuação mental. Esta superativação induz outras regiões do cérebro a liberarem hormônios que estimulam células imunes a continuarem a resposta inflamatória. Assim, estas células produzirão e liberarão mais citocinas pró-inflamatórias, recomeçando a via ciclicamente (o que chamamos de recursividade), causando danos progressivamente piores quanto mais esta via permanecer ativada, isto é, estresse recorrente.

Agora que entende-se o mecanismo de resposta do cérebro ao estresse, deve-se entender o porquê dele desencadear uma resposta imune, e a resposta é muito simples: o modelo humano de resposta ao estresse segue uma Resposta Transcricional Conservada às Adversidades (CTRA) (Fig.2). Evolutivamente, situações de estresse envolviam danos físicos, e o pró-inflamatório favorece a recuperação física através da superativação de genes produtores de algumas proteínas. No mundo contemporâneo, porém, o estresse passou a ser causado recorrentemente e sem necessariamente um dano físico, ativando o sistema imune sem haver necessidade. Esta longa exposição à inflamação aumenta a vulnerabilidade do corpo a infecções virais e risco de doenças inflamatórias.

Dessa forma, exposição ao estresse, seja na fase precoce ou adulta da vida, resulta em mudanças neurais que convertem experiências de estresse social em inflamação, que causam o comportamento apático (distúrbios no sono, letargia, diminuição do apetite, etc.) característico de depressão. Esta conduta evolutivamente facilita a recuperação de danos físicos, e mantiveram-se evolutivamente mesmo em situações nas quais eles se ausentam. Um estudo conduzido pela epidemiologista Natalie Slopen e colegas na Universidade de Maryland, publicado em 2013, confirma que crianças expostas ao estresse familiar, abuso sexual, rejeição ou disciplinamento rígido possuem altas concentrações de proteínas C-reativas. O mesmo vale para adultos sobrecarregados profissionalmente, frustrados financeiramente ou com problemas familiares/de relacionamento, evidenciando a correlação entre inflamação e depressão. Não por acaso, anti-inflamatórios como o celecoxibe atuam em conjunto com antidepressivos, aliviando os sintomas da depressão. Em outras palavras, entende-se que os fatores sociais sofrem conversão/transdução para um sinal inflamatório, que é transmitido para todo cérebro através das células imunes. Serão utilizados glândulas, nervos e neurotransmissores variados para fazer o transporte deste sinal, definindo a via de Sensitização Neuroinflamatória. Esta teoria é chamada de Teoria da Transdução do Sinal Social.

Evidentemente, não é em todos indivíduos que a inflamação é suficiente para desencadear depressão, muito menos significa que a inflamação é necessária para se ter depressão, é demarcada apenas uma correlação significativa entre ambas para muitos casos, o que abre um leque de esperança para tratamentos antidepressivos promissores, como a utilização de antagonistas do TNF-α para inibir o mecanismo das citocinas, como o etanercepte e infliximabe. Há também o emprego de práticas terapêuticas que simultaneamente são anti-inflamatórias e antidepressivas, como a meditação Tai Chi, Hatha Yoga e grupos de reabilitação social. Estas atividades resultam em menor atividade pró-inflamatória e até mesmo reversão de possíveis mudanças genômicas causadas pela CTRA.

Referências:

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  8. Slopen, N., Kubzansky, L. D., McLaughlin, K. A., & Koenen, K. C. (2013). Childhood adversity and inflammatory processes in youth: A prospective study. Psychoneuroendocrinology38(2), 188–200. http://doi.org/10.1016/j.psyneuen.2012.05.013

 

*Este texto foi produzido por Giancarlo Tomazzoni, graduando em Biomedicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como proposta de trabalho da disciplina Introdução à Psicologia para Biomedicina. Simulando o processo editorial de publicações científicas (double-blind peer review), após a produção do texto original, dois outros alunos revisaram anonimamente o manuscrito do colega e deram sugestões para o aperfeiçoamento do mesmo. Assim, Giancarlo produziu e aprimorou o texto acima, o qual revisei e selecionei para ser publicado aqui, no Universo Racionalista.
Destaco e agradeço a importante iniciativa do Universo Racionalista neste projeto. Ao incentivar a divulgação científica produzida por alunos de graduação, ele não apenas amplia o acesso ao conhecimento gerado na academia, como também ajuda a expandir as perspectivas destes profissionais em formação.
João Centurion Cabral

João Centurion Cabral

Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento (LPNeC). Além de ser pesquisador/doutorando em tempo integral e divulgador de ciência nas (poucas) horas vagas, sou um curioso nato buscando entender a natureza do comportamento humano.