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Não há evidências de experiências de quase-morte

Por Steven Novella
Publicado na Neurologica
Traduzido por Caroline Fagundes, Douglas Rodrigues e Jessica Nunes

Em maio, participei de um debate para Intelligence Squared sobre “Death Is Not Final.” Na época, estive me atualizando sobre a literatura publicada referente às supostas Experiências de Quase Morte ou EQMs e notei que o estudo da AWARE (AWAreness during REsuscitation, ou simplesmente ‘Consciência durante ressuscitação’) tinha sido concluído, mas os dados ainda não tinham sido publicados. Fiquei desapontado por não ter esses resultados nas mãos durante o debate.

Eu tinha lido sobre o estudo há vários anos. Este é um estudo prospectivo de pacientes com parada cardíaca para descrever não só quando as suas EQMs ocorrem, mas sobre a realização de um grande ensaio procurando evidências objetivas de consciência durante a ressuscitação. O pesquisador-chefe, Sam Parnia, acredita em EQMs e propôs um estudo teoricamente capaz de encontrar provas objetivas.

O estudo multicêntrico envolveu uma imagem em um local que estava escondido da visão normal do paciente na sala de cirurgia, mas poderia ser visto por uma pessoa que flutuaria acima de seu corpo durante uma EQM. Esta poderia ser uma forma de diferenciar objetivamente entre as duas hipóteses principais. Parnia e outros acreditam que os relatórios de EQMs representariam a consciência real durante a parada cardíaca quando o cérebro não está funcionando. Isso, é claro, seria uma evidência convincente para a cognição separada da função cerebral.

Eu e a maior parte dos cientistas somos favoráveis a explicação mais plausível que as memórias de EQMs são formados em outros momentos, quando o cérebro está funcionando, por exemplo, durante um processo de longa recuperação. Pelo menos, as próprias memórias não diferenciam entre estas duas hipóteses e esta explicação não necessita inventar fenômenos não-materialistas inteiramente novos.

Então, eu esperava ansiosamente os resultados do estudo AWARE. Eu admito que estava bastante confiante de que os resultados seriam negativos. A minha maior preocupação era que o estudo tinha sido criticado por não ter protocolos rígidos – por exemplo, alguns tem cobrado que as imagens “escondidas” eram visíveis aos trabalhadores da sala de emergência e isso poderia fornecer uma forma para o conhecimento das imagens chegar aos pacientes. Mas eu esperava que isso não tivesse ocorrido ou chegado a afetar os resultados.

Aqui, finalmente, é o estudo publicado.

Mas espere um minuto – não há nenhuma menção no resumo sobre as imagens escondidas. Como pode ser? Eu entendi que este é o resultado principal do estudo, a única coisa que o diferencia de estudos meramente descritivos do passado. O que aconteceu?

Há somente duas menções em relação às imagens escondidas na discussão.

Enquanto a baixa incidência (2%) de evocação explícita da Consciência Visual CV prejudica nossa capacidade de usar imagens para examinar objetivamente a validade das reivindicações específicas associadas a CV, no entanto, nosso caso verificado de CV sugere que a percepção consciente pode ocorrer além dos primeiros 20-30 s depois da CA (quando pode ocorrer algum resíduo de atividade cerebral), proporcionando um período quantificável de consciência, depois que o cérebro normalmente atinge um estado isoelétrico.

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Enquanto o pré-posicionamento dos alvos visuais em áreas de reanimação destinado a testes de CV era viável do ponto de vista prático (não houve incidentes adversos notificados), a observação de que 78% dos eventos de CA ocorreu em áreas sem prateleiras ilustra o desafio de testar objetivamente a reivindicações de CV em CA usando nossa metodologia proposta.

Bem, isso é decepcionante. No entanto, aparentemente não houve casos de pacientes com parada cardíaca que foram capazes de ver, lembrar e relatar as imagens escondidas. A coleta de dados foi mais difícil do que eles esperavam, mas os resultados que eles obtiveram foram negativos.

Por que, então, estou vendo as manchetes como esta do Telegraph: First hint of ‘life after death’ in biggest ever scientific study. E o qual foi essa referência acima para “nosso caso verificado?”

Na falta de obter qualquer evidência real de que as EQMs representam a cognição não-corpórea, Parnia aparentemente decidiu voltar ao princípio ao retratar apenas as falas dos participantes como se fosse uma evidência real. Vamos dar uma olhada novamente para os resultados:

Entre 2060 eventos da CA, 140 sobreviventes concluíram a primeira fase de entrevistas, enquanto 101 de 140 pacientes completaram a segunda fase de entrevistas. 46% tinham memórias com 7 principais temas cognitivos: o medo; animais/plantas; luz brilhante; violência/perseguição; Deja Vu; família; lembranças de eventos pós-CA e 9% tiveram uma EQM, enquanto 2% descreveram conscientemente lembranças explícitas de “ver” e “ouvir” os eventos reais relacionados com a sua reanimação. Um deles tinha um período verificável de consciência durante o qual não se esperava função cerebral.

O único caso que está sendo apontado como evidência é um paciente que aparentemente tem descrito detalhes da ressuscitação cardíaca. Parnia está se referindo a isso como “consciência conscientemente verificável.” Não tão rápido.

Vamos colocar isso em alguma perspectiva. Dos 140 casos que foram entrevistados, apenas um caso relatou memórias de eventos durante a parada cardíaca que Parnia considerou “verificado”. Todos os 140 casos receberam uma entrevista, 101 receberam uma entrevista de segundo estágio e um paciente recebeu uma entrevista de terceiro estágio por Parnia.

A discussão das várias entrevistas é significativa:

Além disso, devido à acuidade e gravidade da doença crítica associada à CA, o tempo de entrevista não foi exatamente o mesmo para todos os pacientes, o que pode ter introduzido algum enviesamento (como o viés de recordação e confabulação) nas recordações.

Os indivíduos foram entrevistados muitas vezes depois que eles receberam alta do hospital, mesmo para a primeira entrevista (embora alguns tenham sido entrevistados ainda no hospital). Imagine despertar lentamente de um delírio, durante horas ou mesmo dias. Mesmo quando você aparece acordado e é capaz de interagir e responder perguntas, seu cérebro ainda não se recuperou completamente do trauma de parada cardíaca, e você ainda pode estar doente, mesmo recebendo medicamentos sedativos.

Seu cérebro está lutando para reconstruir memórias do que aconteceu através do delírio e fará o possível para construir uma narrativa do que ocorreu. Sabemos de inúmeros experimentos psicológicos que nossos cérebros preenchem com prazer as lacunas de qualquer forma (isso é chamado de confabulação) – ele irá fundir e criar memórias, incorporar detalhes de fontes externas e se transformar ao longo do tempo para se ajustar uma narrativa em evolução do que aconteceu.

Então, sim – lembranças tendenciosas e confabuladas lembradas muito tempo depois do evento, influenciadas por várias entrevistas, são os pontos fracos do estudo.

O que é um pouco surpreendente para mim é que Parnia só poderia apresentar um caso com uma memória que pode ser apresentada como um evento correspondente durante a parada cardíaca. Isso não torna esse caso “verificado”, até porque ele é altamente selecionado e filtrado a partir de um conjunto maior de dados.

Como uma analogia, isso é semelhante a um suposto vidente trabalhando em uma sala com 40 pessoas e fazendo uma leitura fria, que é uma boa combinação para uma das pessoas. É falacioso (conhecido como a falácia loteria) perguntar quais são as probabilidades de que o suposto vidente tenha acertado para essa pessoa. Em vez disso, precisamos considerar as probabilidades de acertar para qualquer uma das 40 pessoas, e ampliá-la para qualquer possível acerto, e não apenas para o que é feito.

Precisamos considerar quais são as probabilidades de que uma das 140 pessoas tinha uma memória (quase certamente contaminada, como nenhum procedimento estava em vigor para prevenir a contaminação) que combinava eventos durante a parada cardíaca em alguns detalhes arbitrários. Isso certamente soa coerente com a aleatória base de dados e, portanto, não é evidência de qualquer coisa.

Conclusão

O estudo da AWARE, que foi projetado para ser o primeiro grande estudo rigoroso das experiências de quase-morte com resultados objetivos, é essencialmente uma fraude. O estudo, que foi criado para obter a principal medida do resultado para o qual foi concebido, não retornou com novos dados, como era esperado, mas os dados que retornaram são inteiramente negativos. Esse é um estudo negativo.

Parnia, na minha opinião, está tentando desesperadamente resgatar o estudo recorrendo à relatos subjetivos sobre o que as pessoas lembram muito tempo após o evento. Esse tipo de informação não é nada novo e não pode resolver objetivamente o debate. Os resultados também são completamente inexpressivos, perfeitamente consistente com o que esperamos, dado o que já está bem consolidado sobre a memória humana.

A única parte relevante do estudo é a admissão de Parnia que os resultados podem ser devidos inteiramente à confabulação. O giro desse estudo na imprensa popular como evidência de vida após a morte não se justifica.

Caroline Fagundes

Caroline Fagundes

Estudante de Medicina na Universidade Estadual do Mato Grosso.