Pular para o conteúdo

Não, provavelmente, não vivemos em uma simulação de computador

Por Sabine Hossenfelder
Publicado na Backreaction

De acordo com Nick Bostrom, do Future of Humanity Institute, é provável que vivamos em uma simulação de computador. E um dos nossos maiores riscos existenciais é que a superinteligência executando nossa simulação a desligue.

A hipótese da simulação, como é chamada, goza de certa popularidade entre as pessoas que gostam de se considerar intelectuais, acreditando que ela está sintonia com sua flexibilidade mental. Infelizmente, ela está em sintonia principalmente com sua falta de conhecimento de física.

Entre os físicos, a hipótese de simulação não é popular e isso por um bom motivo – sabemos que é difícil encontrar explicações consistentes para nossas observações. Afinal, encontrar explicações consistentes é o que somos pagos para fazer.

Dizer que “um programador fez” não apenas não explica nada – nos teletransporta de volta à era da mitologia. A hipótese da simulação me incomoda porque se intromete no terreno dos físicos. É uma afirmação ousada sobre as leis da natureza que, entretanto, não dá atenção ao que sabemos sobre as leis da natureza.

Primeiro, alguém poderia dizer, há uma maneira trivial em que a hipótese da simulação é correta: você poderia simplesmente interpretar as teorias atualmente aceitas para significar que nosso universo computa as leis da natureza. Então, é tautologicamente verdadeiro que vivemos em uma simulação de computador. Mas também é uma declaração sem sentido.

Uma maneira mais estrita de falar do universo computacional é tornar mais preciso o que se entende por ‘computação’. Você poderia dizer, por exemplo, que o universo é feito de bits e um algoritmo codifica uma série temporal ordenada que é executada nesses bits. Ok, aí já estaríamos profundamente envolvidos no reino da física.

Se você tentar construir o universo a partir de bits clássicos, não obterá efeitos quânticos, então esqueça isso – não funciona. Este pode ser o universo de alguém, talvez, mas não o nosso. Você ou tem que derrubar a mecânica quântica (boa sorte), ou tem que usar qubits. [Nota adicionada para maior clareza: você pode conseguir a mecânica quântica a partir de uma abordagem clássica e não local, mas ninguém sabe como obter a teoria quântica de campos a partir disso.]

Mesmo a partir dos qubits, no entanto, ninguém foi capaz de restabelecer as teorias fundamentais atualmente aceitas – a relatividade geral e o modelo padrão da física de partículas. A melhor tentativa até o momento é aquela de Xiao-Gang Wen e colaboradores, mas eles ainda estão longe de conseguir a relatividade geral. Não é fácil.

Na verdade, existem boas razões para acreditar que não é possível. A ideia de que nosso universo é discretizado se choca com as observações porque entra em conflito com a relatividade especial. Os efeitos da violação das simetrias da relatividade especial não são necessariamente pequenos e estão sendo procurados – e nada foi encontrado.

Para o propósito desta postagem, os detalhes não importam tanto. O que é mais importante é que essas dificuldades de ir de acordo com a física raramente são mencionadas quando se trata da hipótese de simulação. Em vez disso, há algum mistério sobre como o programador poderia evitar que os cérebros simulados percebessem contradições, por exemplo, contradições entre discretização e relatividade especial.

Mas como o programador percebe que uma mente simulada está prestes a notar contradições e como ele consegue resolver o problema rapidamente? Se o programador pudesse prever com antecedência o que o cérebro investigará em seguida, seria inútil executar a simulação para começo de conversa. Então, como ele sabe quais são os dados consistentes para alimentar o cérebro artificial quando ele decide investigar uma hipótese específica? Qual a origem dos dados? O programador poderia provavelmente obter dados consistentes de seu próprio ambiente, mas então o cérebro não viveria em uma simulação.

Não é que eu acredite que seja impossível simular uma mente consciente com redes ‘artificiais’ construídas por humanos – não vejo por que isso não deveria ser possível. Acho, no entanto, muito mais difícil do que muitos otimistas com o futuro gostariam que acreditássemos. Seja qual for a composição dos cérebros artificiais, eles não serão mais fáceis de copiar e reproduzir do que os cérebros humanos. Eles serão únicos. Eles serão indivíduos.

Portanto, parece-me implausível que logo seremos superados em número por inteligências artificiais com habilidades cognitivas superiores às nossas. O mais provável é que veremos um futuro em que as nações ricas possam se dar ao luxo de criar uma ou duas consciências artificiais e depois consultá-las sobre questões importantes.

Então, sim, acho que a consciência artificial está no horizonte. Também acho que é possível convencer uma mente com habilidades cognitivas comparáveis ​​às dos humanos de que seu ambiente não é o que eles acreditam ser. É fácil colocar o cérebro artificial em uma cuba metafórica: se você não der nenhuma contribuição, ele nunca se torna mais sábio. Mas esse não é o ambiente que eu experimento e, se você ler isto, também não é o ambiente que você vivencia. Temos muitas observações. E não é fácil computar consistentemente todos os dados que temos.

Além disso, se a razão de você construir uma inteligência artificial é a consulta, fazê-las acreditar que a realidade não é o que parece é a última coisa que você deseja.

Portanto, o primeiro grande problema com a hipótese de simulação é criar consistentemente todos os dados que observamos por qualquer meio diferente do modelo padrão e da relatividade geral – porque estes são, pelo que sabemos, incompatíveis com o universo computacional.

Talvez você queira argumentar que é apenas você que está sendo simulado, e eu sou apenas outra parte da simulação. Eu às vezes simpatizo muito com essa reencarnação do solipsismo, pois às vezes minha melhor tentativa de explicar o mundo é que tudo é um artefato de meus pesadelos subconscientes. Mas a ideia de um só cérebro não funciona se você quiser alegar que provavelmente vivemos em uma simulação de computador.

Para afirmar que é provável que sejamos simulados, o número de mentes conscientes simuladas deve superar em muito o número de mentes não simuladas. Isso significa que o programador terá que criar muitos cérebros. Agora, eles poderiam simular separadamente todos esses cérebros e tentar simular um ambiente com outros cérebros para cada um, mas isso seria absurdo. A maneira computacionalmente mais eficiente de convencer um cérebro de que os outros cérebros são “reais” é combiná-los em uma simulação.

Então, no entanto, você obtém sociedades simuladas que, como a nossa, se empenharão em entender as leis que regem seu meio ambiente para melhor utilizá-lo. Em outras palavras, eles farão ciência. E agora o programador tem um problema, porque deve acompanhar de perto o que todos esses cérebros artificiais estão tentando sondar.

O programador poderia apenas, é claro, simular o universo inteiro (ou multiverso?), mas isso novamente não funciona para o argumento da simulação. O problema é que, neste caso, teria que ser possível codificar um universo inteiro como parte de outro universo, e partes da simulação tentariam executar sua própria simulação e assim por diante. Isso tem o efeito de tentar reproduzir as leis em escalas de distância cada vez mais curtas. Isso também não é compatível com o que sabemos sobre as leis da natureza. Desculpe.

Stephen Wolfram (da Wolfram Research) disse recentemente a John Horgan que:

[Talvez] na escala de Planck encontraríamos uma civilização inteira que está preparando as coisas para que nosso universo funcione da maneira que funciona.

Eu até chorei lendo isso.

A ideia de que o universo é semelhante a si mesmo e se repete em pequenas escalas – de modo que as partículas elementares são construídas de universos que contêm átomos e assim por diante – parece ter um grande apelo para muitos. É mais uma dessas boas ideias que funcionam mal. Ninguém jamais foi capaz de escrever uma teoria consistente que alcance isso – consistente tanto internamente quanto com nossas observações. A melhor tentativa que conheço é limitar os ciclos no espaço da teoria, mas que eu saiba, isso também não funciona.

Novamente, no entanto, os detalhes não importam muito – acredite apenas em minha palavra: não é fácil encontrar uma teoria consistente para universos dentro de átomos. O que importa é a espantosa demonstração de ignorância – para não falar da arrogância -, demonstrada pela crença de que para a física da escala de Planck vale tudo. Ei, talvez haja civilizações minúsculas por aí. Faremos uma palestra TED sobre isso. Para alguém que, como eu, realmente trabalha com a física da escala de Planck, isso é muito doloroso.

Para ser justo, na entrevista, Wolfram também explica que não acredita na hipótese da simulação, no sentido de que não há nenhum programador e nenhuma inteligência superior rindo de nossas tentativas de localizar evidências de sua existência. Tenho a impressão de que ele simplesmente gosta da ideia de que o universo é um computador. (Nota adicionada: como um comentarista aponta, sim, ele gosta da ideia de que o universo pode ser descrito como um computador.)

Em resumo, não é fácil desenvolver teorias que explicam o universo como o vemos. Nossas melhores teorias atualmente são o modelo padrão e a relatividade geral, e qualquer outra explicação que você tenha para nossas observações deve primeiro ser capaz de reproduzir as realizações dessas teorias. “O programador fez” não é ciência. Não é nem pseudociência. São apenas palavras.

Toda essa conversa sobre como podemos estar vivendo em uma simulação de computador me irrita, não porque eu tenha medo que as pessoas realmente acreditem nisso. Não, acho que a maioria das pessoas é muito mais inteligente do que muitos intelectuais autodeclarados gostam de admitir. Em vez disso, a maioria dos leitores concluirá corretamente que o debate intelectual de hoje está repleto de merdas. E não posso nem culpá-los por isso.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.