Por Marcus V. Soares de Lara*
Existem maneiras objetivas de avaliar e julgar a literatura? Se sim, em quais aspectos? Parece ao menos improvável que possamos medir os profundos efeitos e relações entre o impacto intelectual e emocional que leituras podem nos causar. Esse texto objetiva trazer evidências neurocientíficas sobre o assunto, refletindo sobre quais novas perspectivas a neurociência pode trazer em nosso entendimento de literatura.
Além do objetivo, é importante esclarecer o que este texto não tem por finalidade: primeiro, não serão discutidos dados de pesquisas com evidências relacionadas simplesmente à linguagem do ponto de vista sensorial e motor, já que estamos tratando de efeitos que vão além destas. Segundo, não existe pretensão de classificar a qualidade de um estilo em relação à outro com base nos achados.
Em um trabalho de 2013, Keidel e colaboradores, no Reino Unido, demonstraram que a leitura de obras consideradas mais desafiadoras, como os trabalhos de Shakespeare e a poesia de Ted Hughes, podem causar diferentes efeitos – através da ativação de outras áreas do cérebro – do que ideias idênticas sendo transmitidas por uma linguagem mais simples e cotidiana, desprovida de efeitos utilizados pelos autores. Para demonstrar tal efeito, 17 leitores voluntários foram submetidos à ressonância magnética funcional para avaliar as áreas do cérebro ativadas em textos originais e modificados.
Nos textos originais (especialmente os de Shakespeare), muitas palavras são inseridas em contextos inusitados para gerar uma diversidade de respostas no leitor. O estudo em questão focou-se no uso de “mudanças funcionais” (em inglês functional shift –FS), uma ferramenta de retórica onde se utiliza uma palavra no seu contexto semântico apropriado, porém inapropriada sintaticamente. Um exemplo seria o uso de um verbo na função de substantivo (apesar do significado adequado). Outros exemplos de ferramentas – embora mais simples e mais comumente utilizadas – são a metáfora e a ironia. Os textos modificados criados pelos pesquisadores do estudo excluem o uso de tais ferramentas, deixando o texto mais simples, considerando que é de linguagem habitual. Os resultados se mostraram bastante expressivos: os textos originais de Shakespeare ativaram áreas no cérebro além das classicamente percebidas em testes de linguagem, como o núcleo caudado esquerdo, o giro frontal inferior direito e o giro temporal inferior direito.
Este conjunto de achados sugere maior nível de processamento linguístico na leitura dos textos originais, e as áreas envolvidas também sugerem uma espécie de acesso ao conhecimento conceitual pessoal para o processamento e entendimento de significado e contexto quando FS é utilizado. Por consequência, essa ativação das próprias memórias pelo leitor causa uma reflexão em suas experiências pessoais, o que supostamente foi utilizado pelos acadêmicos desenvolvedores do trabalho como uma razão para se cogitar a possibilidade de que a leitura dos clássicos pode ser mais eficiente para o desenvolvimento pessoal do que livros de autoajuda.
Em um trabalho relacionado, produzido em 2007 por Mashal e colaboradores, foi comparada a leitura (também com resultados de ressonância magnética funcional) de textos com o uso de metáforas ou com expressões de significado literal. A leitura de metáforas aumentou a ativação de algumas áreas cerebrais – especialmente no hemisfério direito – como o sulco temporal superior posterior direito, o giro frontal inferior direito e o giro frontal medial esquerdo. Novamente, o que se evidencia é que o processamento da linguagem que utiliza ferramentas de retórica transcende as áreas tradicionalmente ligadas à linguagem no sistema nervoso, possivelmente fazendo com que o leitor tenha um papel mais ativo no significado dos textos. Em relação à maior mudança de atividade encontrada no lobo direito, outros trabalhos já descrevem que as áreas deste hemisfério homólogas às áreas clássicas de linguagem do hemisfério esquerdo são mais ativadas com a interpretação de idiomas, de humor e de relações semânticas incomuns.
Os valores e os efeitos da leitura de materiais expressivos e não apenas transmissores de informação são ainda parcialmente entendidos, mas é inquestionável o seu profundo impacto em nossas vidas e em nossa cultura. Como disse Millôr Fernandes, “Em ciências leia sempre os livros mais novos. Em literatura, os mais velhos”. Os resultados mais recentes discutidos aqui, adicionam evidências científicas para a autorreflexão a partir da leitura, o que em si, não é uma ideia nova, como percebemos na frase de Máximo Gorky: “A tarefa da literatura é ajudar o homem a compreender-se a si mesmo”.
Referências:
- Bartolo A, Benuzzi F, Nocetti L, Baraldi P, Nichelli P. Humor comprehension and appreciation: An fMRI study. Journal of Cognitive Neuroscience, 18(11): 1789-1798, 2006.
- Keidel JL, Davis PM, Gonzalez-Dias V, Martin CD, Thierry G. How Shakespeare tempests the brain: Neuroimaging insights. Cortex, 49: 913-919, 2013.
- Mashal N, Faust M, Hendler T, Jung-Beeman M. An fMRI investigation of the neural correlates underlying the processing of novel metaphoric expressions. Brain and Language, 100(2): 115-126, 2007.
- Mashal N, Faust M, Hendler T, Jung-Beeman M. Hemispheric differences in processing the literal interpretation of idioms: Converging evidence from behavioral and fMRI studies. Cortex, 44(7): 848-860, 2008.
- Seger CA, Desmond JE, Glover GH, Gabrieli JDE. Functional magnetic resonance imaging evidence for right-hemisphere involvement in processing unusual semantic relationships. Neuropsychology, 14(3): 361-369, 2000.