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Neurociência revela uma das poucas coisas que Nietzsche estava certo: algumas pessoas são naturalmente mais espontâneas

Traduzido por Julio Batista
Original de Parashkev Nachev para a The Conversation

“Por que você não pode simplesmente relaxar?” é uma pergunta que muitos de nós temos feito em frustração com nós mesmos ou com os outros – seja na pista de dança, no campo esportivo ou em circunstâncias mais particulares. A tarefa normalmente exige que respondamos espontaneamente a eventos externos, sem nenhuma deliberação. Deveria ser fácil – tudo o que você precisa fazer é deixar que aconteça naturalmente – mas pode ser irritantemente difícil.

“Pare de pensar nisso!” é o conselho padrão, embora cancelar um pensamento com outro pensamento seja uma espécie de paradoxo. A réplica, “estou tentando!”, é igualmente intrigante, pois a intenção deliberada é precisamente o que estamos lutando para evitar. Então, o que é esse ato de escolher não escolher, de renunciar conscientemente ao controle de nossas ações? Nosso novo estudo, publicado na Communications Biology, finalmente forneceu perspectivas sobre como essa capacidade é expressada pelo cérebro.

Surpreendentemente, esse fenômeno humano fundamental não tem nome. Poderia ter escapado inteiramente do reconhecimento acadêmico se o filósofo alemão Friedrich Nietzsche não tivesse abordado em seu primeiro livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, em si uma obra paradoxal de filosofia ao encorajar tacitamente o leitor a parar de ler e tomar uma bebida. Enquanto outros pensadores viam a cultura em um único continuum, evoluindo para um refinamento, ordem e racionalidade cada vez maiores, Nietzsche a via distribuída em dois planos radicalmente diferentes, mas igualmente importantes.

Eu te disse. (Créditos: Wikipedia, CC BY-SA)

Perpendicular à dimensão convencional “apolínea” da cultura, ele introduziu a dimensão “dionisíaca”: caótica, espontânea, vigorosa e descuidada das exigências austeras da racionalidade. Nenhum aspecto foi considerado superior, cada um pode ser bem ou mal feito, e ambos são necessários para que uma civilização encontre sua expressão criativa mais profunda. Todo Batman precisa de um Coringa, ele poderia ter dito, se tivesse vivido em uma época mais atual.

É claro que Nietzsche não foi o primeiro a observar que os seres humanos às vezes se comportam com abandono arbitrário. Sua inovação consistiu em perceber que é uma característica constitucional que poderíamos e deveríamos desenvolver. E como acontece com qualquer característica comportamental, a facilidade para adquiri-la varia de uma pessoa para outra.

Vendo luzes

Como Dionísio e os neurocientistas são em sua maioria estranhos, não deveria ser surpresa que a capacidade de “meta-volição” – para dar a ela um nome que capte a noção de escolher não escolher suas ações – tenha até agora passado despercebida pelo estudo experimental. Para descobrir como nosso cérebro nos permite abrir mão do controle e explicar por que alguns de nós são melhores nisso do que outros, meus colegas e eu queríamos desenvolver um teste comportamental e examinar os padrões de atividade cerebral que acompanham menor ou maior habilidade.

A maioria dos testes em neurociência comportamental compara ações conscientes, deliberadas e complexas contra suas ações opostas, medindo o poder de suprimi-las. Um exemplo clássico é a tarefa anti-sacadas, que supostamente mede o “controle cognitivo”. Os participantes são instruídos a não olhar para a luz quando virem um breve flash em seu campo periférico visual, mas sim para o lado oposto. Isso é difícil de fazer porque olhar para a luz é a inclinação natural. Diz-se que as pessoas que são melhores nisso têm maior controle cognitivo.

Para medir o quanto as pessoas são boas em abrir mão do controle, não podemos simplesmente inverter uma tarefa. Se as pessoas são solicitadas a olhar para a luz, a vontade e o instinto são colocados em perfeita concordância. Para colocar os dois em oposição, devemos tornar a tarefa automática inconsciente para que a vontade seja apenas um obstáculo.

Acontece que isso é fácil de fazer piscando duas luzes em lados opostos do campo periférico visual quase simultaneamente e pedindo ao sujeito que se oriente o mais rápido possível para o que vê primeiro. Se um flash ocorre algumas dezenas de milissegundos antes do próximo, as pessoas normalmente obtêm um viés automático para o primeiro flash. Você precisa pelo menos dobrar esse tempo para atingir o limite para detectar conscientemente qual deles vem primeiro. Pensar no que veio primeiro só poderia prejudicar seu desempenho porque seu instinto opera bem abaixo do limiar no qual o consciente consegue ter maior influência.

Surpreendentemente, para uma tarefa tão simples, as pessoas variam drasticamente em suas habilidades. Alguns – os dionisíacos, por assim dizer – relaxam sem esforço para se deixarem guiar pela primeira luz, exigindo não mais do que alguns milissegundos entre os flashes. Outros – os apolíneos – não conseguem se manter relaxados, mesmo quando os flashes estão muitas vezes mais distantes. Como tentar mais não ajuda, as diferenças não são uma questão de esforço, mas parecem fazer parte de quem somos.

Mapa da substância branca do cérebro (renderização traçada por raios), com a área correlacionada com a espontaneidade em vermelho. (Créditos: Parashkev Nachev)

Usamos imagens de ressonância magnética para investigar o cérebro das pessoas que executam a tarefa, focando na substância branca – a rede do cérebro. Surgiu uma imagem impressionante. Extensas seções da rede do lobo pré-frontal direito, uma região fortemente implicada na tomada de decisões complexas, revelaram-se mais fortes naqueles que eram piores na tarefa: os apolíneos. Quanto mais desenvolvidos os substratos neurais da vontade, ao que parece, mais difícil desligá-los.

Em contraste, nenhuma parte do cérebro dionisíaco mostrou evidência de uma rede mais forte. A supressão da vontade parece depender menos de um “centro meta-volitivo” mais bem desenvolvido do que da interação entre ações espontâneas e deliberadas. Podemos pensar nisso como duas coalizões de células cerebrais em competição, com o resultado dependente da força relativa das equipes, não das qualidades de qualquer árbitro.

O cérebro competitivo

Os resultados demonstram como o cérebro opera tanto pela competição quanto pela cooperação. Pode falhar em uma tarefa não porque não tenha o poder, mas porque outro poder mais dominante está em oposição. Nossas decisões refletem os resultados das batalhas entre facções em guerra que diferem em suas características e linhagem evolutiva, batalhas que pouco podemos fazer para influenciar porque nós mesmos somos seus produtos.

As pessoas também diferem amplamente em suas qualidades, incluindo a espontaneidade, não porque a evolução ainda não tenha chegado a uma otimização, mas porque procura diversificar o campo tanto quanto possível. É por isso que cria indivíduos sintonizados para responder ao seu ambiente de maneiras muito diferentes. A tarefa da evolução é menos otimizar uma espécie para o presente do que prepará-la para uma multiplicidade de futuros desconhecidos.

O fato de nossas vidas serem agora dominadas por uma ordem apolínea racional não significa que um dia não desceremos a um caos instintivo e dionisíaco. Nossos cérebros estão prontos para isso – nossa cultura também deveria estar.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.