Por Sam Harris
Procure em sua mente, ou preste atenção às conversas que você tem com outras pessoas, e você vai descobrir que não há limites reais entre ciência e filosofia — ou entre estas disciplinas e qualquer outra que tente fazer afirmações válidas sobre o mundo com base em evidência e lógica. Quando tais alegações e seus métodos de verificação admitem a experiência e/ou descrição matemática, tendemos a dizer que as nossas preocupações são “científicas”; quando elas se relacionam com questões mais abstratas, ou até com a consistência de nosso próprio pensamento, muitas vezes dizemos que estamos sendo “filosóficos”; quando apenas queremos saber como as pessoas se comportaram no passado, rotulamos os nossos interesses como “históricos” ou “jornalísticos”; e quando o compromisso de uma pessoa com a evidência e a lógica torna-se perigosamente superficial ou simplesmente se dobra sob o peso do medo, pensamento positivo, tribalismo, ou êxtase, reconhecemos que ela está sendo “religiosa”.
As fronteiras entre as verdadeiras disciplinas intelectuais são atualmente impostas por pouco mais que orçamentos das universidades e arquitetura. O Sudário de Turim é uma falsificação medieval? Esta é uma questão de história, é claro, e de arqueologia, mas as técnicas de datação por radiocarbono tornaram-na uma questão de química e física também. A distinção real que devemos nos preocupar — a observação da qual é condição sine qua non da atitude científica — é entre exigir boas razões para o que se acredita e estar satisfeito com as más.
A atitude científica pode lidar com o que vier a ser o caso. De fato, se a evidência para a infalibilidade da Bíblia e da ressurreição de Jesus Cristo fosse boa, poderia-se adotar cientificamente a doutrina do cristianismo fundamentalista. O problema, claro, é que a evidência é ou terrível ou inexistente — daí a partição que construímos (na prática, nunca em princípio) entre ciência e religião.
Confusão sobre esta questão gerou muitas ideias estranhas sobre a natureza do conhecimento humano e os limites da “ciência”. Pessoas que temem o avanço da atitude científica — especialmente aqueles que insistem na dignidade de acreditar em um ou outro deus da Idade do Ferro — muitas vezes fará uso pejorativo de palavras tais como materialismo, neo-darwinismo e reducionismo, como se essas doutrinas tivessem alguma ligação necessária com a própria ciência.
Há, é claro, boas razões para os cientistas serem materialistas, neo-darwinistas, e reducionistas. No entanto, a ciência não implica qualquer um desses compromissos, nem qualquer um deles implica o outro. Se houvesse evidência de dualismo (almas imateriais, reencarnação), poderia-se ser um cientista sem ser um materialista. Em realidade, a evidência aqui é extremamente fraca, então praticamente todos os cientistas são materialistas de algum tipo. Se houvesse evidência contra a evolução por seleção natural, poderia-se ser um materialista científico sem ser um neo-darwinista. Mas na realidade, o quadro geral apresentado por Darwin está tão bem estabelecido quanto qualquer outro na ciência. Se houvesse evidência de que sistemas complexos produzissem fenômenos que não pudessem ser entendidos em termos das suas partes constituintes, seria possível ser um neodarwinista sem ser um reducionista. Para todos os efeitos práticos, é aqui onde a maioria dos cientistas se encontra, porque todos os ramos da ciência além da física devem recorrer a conceitos que não podem ser entendidos apenas em termos de partículas e campos. Muitos de nós já tivemos debates “filosóficos” sobre o que fazer com este impasse explicativo. Será que o fato de que não podemos prever o comportamento das galinhas ou democracias incipientes com base na mecânica quântica significa que esses fenômenos de nível superior são algo diferente da sua física subjacente? Eu votaria “não” aqui, mas isso não significa que preveja um momento em que vamos usar apenas os substantivos e verbos da física para descrever o mundo.
Mas, mesmo quando se pensa que a mente humana é totalmente o produto da física, a realidade da consciência se torna não menos maravilhosa, e a diferença entre a felicidade e o sofrimento não menos importante. Esse ponto de vista também não sugere que um dia iremos considerar o surgimento da mente a partir da matéria como totalmente inteligível; a consciência pode parecer eternamente como um milagre. Em círculos filosóficos, isto é conhecido como “o problema difícil da consciência” — alguns de nós concordam que este problema existe, alguns de nós não. Caso a consciência prove ser conceitualmente irredutível, permanecendo como a fonte misteriosa de tudo o que podemos conseguir experimentar ou valorizar, o resto da visão de mundo científica permaneceria intacto.
O remédio para toda essa confusão é simples: devemos abandonar a ideia de que a ciência é distinta do resto da racionalidade humana. Quando você está aderindo aos mais elevados padrões de lógica e evidência, você está pensando cientificamente. E quando você não está, não está.