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O amanhã é das estrelas

Frequentemente alguém me faz aquela capciosa pergunta: por que você decidiu estudar física? Quando foi que você começou a gostar? Essa é uma pergunta um tanto complicada…é quase como se alguém perguntasse a você quando foi que você começou a gostar de chocolate por exemplo, ou em que idade começou a gostar de garotos (as). Eu me divirto dando uma resposta diferente sempre que me perguntam. Vou tentar dar a resposta mais completa possível, e quem sabe, no processo, eu posso convencer alguém por ai a juntar-se a nós.

Eu gostaria de convidá-lo a estudar comigo essa imagem.

Uma pequena amostra do espaço, cortesia do telescópio Hubble
Uma pequena amostra do espaço, cortesia do telescópio Hubble

Ela foi produzida pelo satélite Hubble, enviado para o espaço para estudar o universo nas frequências da luz visível. E é uma das imagens mais espetacularmente belas já produzidas pelo telescópio. Nessa imagem existem cerca de 10 mil galáxias, e no entanto, ela não representa mais do que uma pequena fatia do universo.

Vamos situar as ordens de grandeza: uma galáxia é um objeto que tem centenas de milhares de anos-luz de tamanho (um ano-luz é a distância que a luz, que caminha a meros 300 mil quilômetros por SEGUNDO, percorre durante um ano), e centenas de BILHÕES de estrelas. Há mais estrelas nessa imagem do que grãos de areia numa praia. Cada uma dessas estrelas pode conter seus próprios planetas, e os planetas, seus satélites. Há, além disso, outra imensidão de objetos: buracos negros, regiões do espaço-tempo com uma gravidade tão intensa que nem mesmo a luz consegue escapar de seu abraço gravitacional; magnetars, estrelas formadas apenas de nêutrons que geram um campo magnético que poderia arruinar toda a nossa infraestrutura de telecomunicações, se passássemos há centenas de quilômetros do objeto; nebulosas e asteroides dos mais diversos tipos. Além da exótica e misteriosa matéria escura (um tipo de matéria que não interage com a luz). Todas essas coisas estão ali, em algum lugar. Se você nunca se impressionou com esses números e com essa complexidade, eu só posso pensar em duas explicações: ou você realmente não entendeu as dimensões que estamos lidando, ou você acha que esses números são tão incomensuravelmente grandes que eles tornaram-se abstratos. São dígitos flutuantes na tela, vazios de qualquer significação. Coisa meramente acadêmica, distante demais do mundo real para ter uma importância na sua vida. Mas a questão é, e isso eu lhe garanto: eles são bem reais, nós temos as melhores razões do mundo para pensar que o sejam. Elas pintam um retrato, e uma realidade que está aí pra ser desvelada toda noite quando você sai de sua casa e olha para o céu.

Existe uma outra realidade de números grandes, essa talvez uma que o leitor esteja mais habituado, e menos indisposto a considerar uma realidade.  Eu novamente gostaria de convidá-lo a estudar uma outra imagem,

Crescimento da dívida interna norte-americana.
Crescimento da dívida interna norte-americana.

dessa vez um pouco mais técnica, mas não se preocupe! Não vou aborrecê-lo com detalhes matemáticos. O gráfico em questão representa o aumento da dívida pública norte-americana, e está presente aqui apenas para que você tenha ideia de como ela aumenta.  No Brasil, grande parte do orçamento aprovado pelo o Congresso é para fins de amortização dos juros dessa dívida, e nunca ouve uma auditoria da mesma. A dívida pública atual dos Estados Unidos é de cerca de 17 trilhões de dólares. Vamos recapitular: o número de estrelas em uma galáxia é da ordem de centenas de bilhões, numericamente menor que a dívida pública, portanto. Essa foi uma das razões que levou o físico Richard Feynman a cunhar o termo “números econômicos”, para indicar que estamos em uma escala de números maior que a astronômica! Esses números abstratos subitamente deixam de parecer assim tão distantes.

Bem, nós não vivemos nos Estados Unidos. Mas vivemos em uma sociedade muito dependente da americana, e sentimos diretamente o impacto da maioria dos eventos que lá acontecem. Aqui, não estamos assim tão diferentes também: o PIB brasileiro é da ordem de trilhões de reais.  Agora sim entendemos quão enorme são esses números! Nos descabelamos e brigamos tentando eleger os melhores representantes afim de que esses números permaneçam altos. Um aumento anual pequeno desse número é razão de calamidade.  Jornais publicam reportagens de capa  com flutuações desse número, e previsões de economistas sobre ele. Tentamos desprender um tempo enorme tentando entender o que eles significam, porque entendemos que a nossa vida está de uma certa forma muito ligada a eles. Se a economia vai bem, eu vou bem. Com números tão vastos, é de se esperar que uma grande fração dele seja dispensada para entender aqueles outros números enormes, que também tem algum impacto sobre as nossas vidas, certo? Afinal de contas, eles nos contam como chegamos aqui, e em que tipo de mundo vivemos. Eles nos contam sobre as estruturas que existem por ai, o que podemos esperar de nosso futuro enquanto espécie. Infelizmente, eu preciso lhe apresentar ainda uma terceira imagem, essa representando o orçamento anual da NASA em relação

Orçamento da NASA, relativamente ao orçamento total do governo americano.
Orçamento da NASA, relativamente ao orçamento total do governo americano.

ao orçamento anual total do governo americano. Nos “gloriosos” tempos da década de 60, quando a raça humana foi finalmente colocada para caminhar na lua, o orçamento da NASA não ultrapassava 4.5% do orçamento total do governo. Você vê aonde quero chegar?

Se não, eu quero convidá-lo a estudar ainda uma última imagem. A sonda Voyager foi lançada em uma missão ambiciosa da NASA: a de lançar um objeto humano para fora do nosso sistema solar. Mas quando ela estava passando por Netuno, a pedido do astrônomo Carl Sagan, ela virou suas câmeras para a Terra e cumpriu a sua última missão, tirando essa foto.

Foto tirada pela sonda Voyager nas imediações de Netuno.
Foto tirada pela sonda Voyager nas imediações de Netuno.

Enquanto escrevo esse texto, essa sonda é o primeiro aparato humano a deixar as cercanias do sistema solar. O ponto no meio do círculo azul, é a Terra.  Aquele “pálido ponto azul”, nas palavras do astrônomo, foi o lar de todo ser humano, vivo ou morto. Foi o palco de todas as batalhas, de todos os dramas e tragédias. Foi onde reis foram coroados e destronados. Onde empresas criaram impérios e foram a falência. Onde todo aquele que você ama e todo aquele que você odeia vive ou viveu, e há de morrer. É onde você talvez encontre o amor de sua vida. Foi o berço e sepulcro de todos os profetas de todas as religiões. O lar de cada um dos filósofos e cada uma de suas metafísicas. E é onde todos aqueles trilhões de dólares estão circulando. E mesmo assim, ela não representa mais do que uma sugestão, um suspiro flutuando no cosmos, dispersa em sua própria efemeridade, quase que invisível na foto.

E esse é o ponto onde eu preciso, desesperadamente, que você entenda que isso é REAL. Isso não é uma tentativa de impressioná-lo com divulgação científica, embelezando um fato “banal”. Essa foto existe, ela não é uma invenção, e foi realmente tirada de um satélite muito longe de nosso planeta. Esse espaço existe e está lá, e ele continua lá enquanto você lê esse texto, e vai continuar lá bem depois que eu e você estivermos mortos e sepultados.  Todas aquelas galáxias que o telescópio Hubble registrou não são de mentira. Será que os recursos que alocamos para entender esses objetos, esses números, essas estruturas, fazem jus a grandeza deles? Será que essas coisas não tem muito mais a nos dizer sobre nosso futuro e nosso passado enquanto espécie? Se o dinheiro é uma representação do valor, o que significa a nação mais poderosa do mundo não desprender nem mesmo 1% de seu orçamento para esses fins? Significa que não nos importamos com essas coisas enquanto sociedade, o que por sua vez significa que muito poucos de nós entendem e se importam com isso. Claro, parte desses recursos tem fins que não podem e nem devem ser evitados: são usados na educação de nossos jovens e crianças, na providência de uma infraestrutura adequada para a sociedade, para fins de sistema de saúde, entre outros. Além disso, pesquisas em física (e mesmo sobre questões espaciais) acontecem em outros órgãos diferentes da NASA. Mas ainda sim, será que a nação mais poderosa do mundo não pode desprender mais de 0.5% de seu orçamento para essses fins?

O século passado quase foi palco de uma guerra nuclear, uma guerra que quase certamente teria extinto a raça humana. Onde nós estivemos no universo até então? O quanto de seus segredos desvelamos? Se há algum sentido para nós enquanto espécie, ele está no alto, olhem pra cima! Se fôssemos crianças em um parque de diversão, seria quase a hora de partirmos, e não teríamos saído sequer do guichê de ingressos. Nossos pais ficariam perplexos com a nossa falta de curiosidade, e perguntariam, sem entender muito bem, porque não paramos de brigar uns com os outros e fomos visitar os brinquedos. Mas esse parque de diversões é bem maior do que qualquer um que você já viu. E mais cheio de mistérios que qualquer outro. E certamente tem espaço mais do que suficiente para que todos nós nos acomodemos bem. O universo está na nossa frente oferecendo-nos um banquete, mas nós viramos-lhe a cara e preferimos comer macarrão instantâneo.

Essa é a parte difícil de ser um físico. Entender esses números, entender essa grandeza e ter ainda que uma pálida noção do está à espreita na realidade, e continuar observando a sociedade se autodestruindo, incapaz até hoje de lidar com problemas como a miséria, poluindo o ambiente e caminhando para seu esquecimento. Você terá vontade de ir ao Congresso e gritar “parem tudo e revisemos nossas prioridades!”. Sentira-se triste ao pensar no amanhã nas estrelas, e pensar que morrerá antes dessa alvorada, porque nossos colegas estão muito ocupados brincando de cassino com a sociedade ou se matando por conta de livros velhos e pessoas mortas há milhares de anos. Na nossa analogia do parque, você seria um coitado que tentaria sem sucesso fazer seus irmãos pararem de brigar e olhar o que realmente importa. Mas essa é também uma das razões do porquê eu acreditar que é bom ser um físico: é apenas entendendo e anunciando ao mundo tudo isso é que podemos rever nossas escalas de valores. Não é preciso ser um físico para se apaixonar pela natureza, mas é necessário ser apaixonado pela natureza para ser um físico. Eu vejo nessa profissão mais do que uma ciência, mas um ofício de arauto: somos nós que carregamos a tarefa de lembrar a nossos conterrâneos que todas as nossas paixões estão aqui, nesse pálido ponto azul, e que o amanhã será das estrelas. Resta saber se nós queremos estar nele.

Guilherme Tomishiyo

Guilherme Tomishiyo

Formado no Bacharelado em Física pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).