A maioria das pessoas contrárias ao autoritarismo político já escutou em certas discussões que é um equívoco, quando não um exagero, comparar figuras como Marine Le Pen, Donald Trump ou Jair Bolsonaro – para citar apenas os mais conhecidos – com os ditadores fascistas do século passado. O principal argumento em defesa do uso restrito do termo fascismo adverte que ele retrata um momento muito específico da primeira metade do século XX, sendo, portanto, descabido atribuí-lo às tendências autoritárias de alguns governantes do século XXI. Afinal, Trump não construiu câmaras de gás para exterminar negros e mexicanos, Le Pen não ergueu campos de concentração para aprisionar imigrantes, e tampouco Bolsonaro decretou o extermínio de gays em escala industrial; tais atrocidades, e tantas outras ainda piores, foram cometidas por facínoras da estirpe de Mussolini, Hitler, Stálin e demais ditadores que se entregaram às trevas do totalitarismo. Entretanto, veremos ao longo deste texto que o fascismo não se define, a princípio, pelo número de mortes que causa – embora todos os seus partidários, sem dúvida, tenham suas mãos sujas de sangue –, mas sim por um conjunto de condições históricas e valores como sacralização do nacionalismo, crises que levam à descrença na democracia, difusão do pânico contra uma ameaça externa e interna (que pode ser exacerbada, verdadeira ou fabricada) e o mais importante de tudo: escolhas humanas.
Para melhor analisar essa questão, tomarei como exemplo a ascensão do fascismo na Itália e, na tentativa de abrir as portas e as janelas para o debate, confrontarei suas semelhanças e diferenças com a possibilidade, remota ou não, de estarmos vivenciando um fenômeno similar. De antemão, reconheço que aceitar esse desafio requer manobras intelectuais extremamente arriscadas, mas nada é mais arriscado do que me omitir diante da gravidade de nosso cenário atual. Até mesmo os críticos mais ferrenhos de Jair Bolsonaro se dividem ao decidir se ele e seus eleitores merecem ser tratados, em termos acadêmicos e teóricos, como fascistas confessos ou apenas como um bando de lambe-botas de ditadores militares. O mero levantamento dessa discussão já é preocupante por si mesmo porque ele nos impõe o dever indispensável de compreender como o fascismo se desenvolveu no passado para aprimorar nossa capacidade crítica de reconhecê-lo caso ele ouse ressurgir no presente ou no futuro. Um livro recomendado aos interessados em entender as raízes desse problema, e que será a minha referência daqui até o término da leitura, chama-se A Anatomia do Fascismo, de Robert O. Paxton, historiador norte-americano e renomado especialista na área. Nesse livro, Paxton faz uma autópsia muito precisa dos primeiros movimentos fascistas da história, com enfoque para o fascismo italiano de Benito Mussolini e o nazismo alemão de Adolf Hitler, esclarecendo, ainda, o processo de ascensão e declínio de ambos os regimes. Dentro das devidas proporções e ciente de todas as ressalvas, meu objetivo será descobrir se é possível interpretar Jair Bolsonaro sob o enigmático e obscuro prisma do fascismo italiano, a fim de concluir se existe um suposto “fascismo brasileiro” em curso. Antes de prosseguirmos, deixo o alerta de que minha intenção não é fazer uma equiparação moral entre Mussolini e Bolsonaro, muito menos insinuar que o capitão reformado foi possuído pelo espírito maligno do Dulce, pois é evidente que ambos pertencem a contextos e universos extremamente distintos.
FASCISMO NA ITÁLIA
Na transição do século XIX para o XX, a polarização política da Europa e dos EUA se dividia em três principais correntes filosóficas, ideológicas e partidárias: liberalismo, socialismo e conservadorismo. Com o advento da Primeira Guerra Mundial, em 1914, uma quarta tendência se impôs entre as demais, fundada em 23 de março de 1919, numa sala de reuniões situada na Piazza di san Sepolcro, em Milão, cuja repercussão imediatamente contagiou diversos movimentos radicais por quase todo o mundo: o Fasci italiani di combattimento. Criado pelo jornalista e combatente militar Benito Mussolini, expulso do Partido Socialista Italiano por defender que a Itália deveria ingressar na Primeira Guerra junto aos Aliados, o fascismo foi ganhando notoriedade à medida que se alimentava do medo e do desespero de cidadãos comuns ante duas grandes ameaças iminentes: o agravamento da crise econômica, que dilacerava a Europa no período entre guerras, bem como o terremoto que a Revolução Russa causou em muitos países europeus. Ao romper com os socialistas italianos, Mussolini iniciou sua campanha rumo ao poder. Uma de suas estratégias foi culpá-los pelo declínio político, cultural e moral da nação, se apresentando como uma alternativa forte, revolucionária e radical para unir tanto os socialistas e sindicalistas desiludidos quanto a burguesia tradicional e os veteranos da Primeira Guerra. Os grupos radicais que se aliaram a Mussolini começaram a perceber que os parlamentaristas italianos – liberais, socialistas reformistas e conservadores – eram incapazes de resgatar o país do abismo caótico legado pela guerra, principalmente porque muita desconfiança havia sido lançada sobre as instituições legais e democráticas desde então. Pouco a pouco, o fascismo arregimentou um amplo apoio popular em resposta a essa suposta incapacidade de os sistemas tradicionais superarem o problema; logo, optar pelas vias radicais e extralegais de mudança social foi sendo cogitado como solução final para a Itália. Esse radicalismo se inflamou ainda mais após a eclosão da Revolução Bolchevique, levando Mussolini, que havia se tornado um antissocialista visceral (embora tenha incorporado certas reivindicações sindicalistas em seu governo, como a jornada de trabalho de oito horas diárias), a convencer o povo da necessidade de extirpar toda ameaça socialista interna e externa. Após muitos assassinatos e atentados violentos contra grupos de esquerda, acusados de conspirarem contra os interesses soberanos da nação, Mussolini ascendeu até ser nomeado primeiro-ministro da Itália pelo rei Vítor Emanoel III, em 1922, assumindo plenos poderes sobre o governo e as Forças Armadas, sob o título de Dulce II. Para termos uma prévia do que o fascismo apregoava, o Partido Nacional Fascista italiano, já no auge de seu poder, parecia, em tese, mais uma mistura de antiesquerdismo com antiliberalismo (entendido aqui como uma forma de capitalismo financeiro internacional), regado a um forte impulso ao nacionalismo, à militarização da política e a outros elementos que veremos a seguir. Na prática, entretanto, Mussolini deixou de cumprir suas ameaças aos capitalistas, que se tornaram grandes aliados contra o socialismo.
Por ora, o resumo acima sobre o nascimento do fascismo, que reconheço não ter sido detalhado o suficiente, permite-nos extrair alguns elementos fomentadores (mas não determinantes) dessa ameaça comumente percebida nos crescentes movimentos de extrema-direita contemporâneos. Para Paxton, tais elementos despertam o que ele chama de “paixões mobilizadoras”, as quais sintetizo nos seguintes estágios:
1) O terreno mais propício para a semente do fascismo germinar são as democracias relativamente desenvolvidas que, devido a uma suposta incapacidade de solucionar crises internas, perdem a credibilidade e o respeito dos cidadãos. No caso específico da Itália, os impactos sofridos ao término da Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, da Grande Depressão de 1929 levaram ao que muitos historiadores consideram uma condição sine qua non do fascismo: um sintoma de paralisia e de adoecimento crônico das democracias modernas. Aliás, uma diferença crucial entre um governo fascista e um regime militar e autoritário é que o primeiro depende da existência de uma democracia em crise, enquanto o segundo pode vigorar sem a necessidade de haver sistema democrático prévio;
2) Uma das premissas mais importantes do fascismo é que ele não pode existir sem que haja uma política de participação direta e espontânea das massas, que sacrifica, por meio do consentimento ou da coação, suas liberdades individuais no altar do grande líder em prol do bem-estar coletivo de toda a nação. (Mussolini, por exemplo, defendia o voto a partir dos 18 anos de idade e o sufrágio feminino, diferente do voto censitário peculiar às democracias liberais e conservadoras);
3) Encontrar bodes expiatórios e acusá-los de provocar a decadência cultural, moral e a perda de identidade nacional de um povo ou grupo. “A crença de que esse próprio grupo é uma vítima”, segundo Paxton, “serve como justificativa para qualquer ação, sem limites morais ou legais, contra seus inimigos” internos ou externos. Os inimigos a serem exterminados variam de acordo com o tempo, a geografia, a cultura e o tipo de regime em vigor, sendo em geral judeus, estrangeiros, ciganos, gays, esquerdistas, capitalistas gananciosos, dissidentes políticos, entre outros. O fascismo, inclusive, não empreendeu campanhas antissemitas na mesma escala que o nazismo, já que seu alvo principal era combater as tendências internacionalistas e cosmopolitas do socialismo;
4) Os apelos aos valores tradicionais e patrióticos, ao ethos do militarismo, bem como à violência radical como principal meio de estabelecer a ordem permitiram que os primeiros fascistas evoluíssem de meros movimentos clandestinos para o patamar de partido único à frente do governo. Isso também implica a intensa personalização de um líder carismático e merecedor de devoção quase mítica, que se demonstre capaz de esmagar seus opositores e unir o povo em torno dos propósitos soberanos da nação;
5) O apoio quase incondicional das elites financeiras e conservadoras que, em vez de tentar restaurar as instituições democráticas para a solução legal dos conflitos, se associam aos líderes fascistas para preservar seus privilégios e combater o inimigo em comum;
6) A ascensão e a tomada do poder seguidas do colapso total do regime (decidi não me aprofundar no estágio 6 porque o Brasil ainda pode estar prestes a vivenciá-lo – ou não).
Qualquer país que atravessasse um cenário catastrófico que reunisse todas essas fragilidades estaria sujeito à toda sorte de tiranos lunáticos e inescrupulosos, decididos a despertar as paixões mais extremistas dos cidadãos, sob discursos legitimadores da violência, e a questionar a validade dos preceitos democráticos a fim de assumir o poder. Isso não soa um pouco familiar?
SEMELHANÇAS
A partir de cada um desses elementos é possível estabelecer uma breve análise, ainda que muito movediça e arriscada, sobre a probabilidade de o Brasil estar experienciando algo relativamente próximo ao fascismo. Como prova de que valorizo a inteligência do leitor, deixarei que ele ou ela examine se já atravessamos algum dos 6 estágios, desde que estejam cientes das proporções cabíveis. O primeiro passo é concordar que de fato temos uma crise econômica e política muito grave. Obviamente que, para os padrões do período entre guerras, nossas dificuldades não são nada se comparadas à destruição e aos escombros deixados por toda a Europa depois da Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão de 1929. Mesmo assim, temos diante de nós alguns vetores que colocaram a democracia brasileira em xeque, como a crise financeira de 2008, os erros e crimes cometidos dentro dos governos Lula e Dilma, os protestos de junho de 2013, os desdobramentos da Operação Lava-Jato, que, com todos os seus defeitos e qualidades, descortinou um grande esquema de corrupção pluripartidário que envolvia as maiores empresas públicas e privadas do país e, por fim, o golpe contra Dilma (chamem de impeachment, se preferirem). Ainda que nossa crise seja muito mais amena para os parâmetros do século passado, é inegável que ela existe e esteve vulnerável às manipulações de grupos oportunistas que forjaram, com o apoio da grande imprensa, um quadro apocalíptico para impor o ódio e o medo sobre os cidadãos. É exatamente isso o que as democracias em declínio fazem. O resultado foi a criação de ameaças internas (gays, esquerdistas, petistas etc.) que precisavam ser apontadas como as únicas causadoras da crise. Parte numerosa da população, por sua vez, já saturada de toda suposta ineficiência do sistema democrático, aderiu a esse discurso e caiu na armadilha de escolher um líder de perfil militar, “nacionalista”, defensor de valores tradicionais e disposto a promover mudanças extremas, mesmo que para isso ele considere legítimo o uso brutal da tortura e da violência.
Bolsonaro ainda conta com outro elemento que esteve presente na Itália de Mussolini, o apoio espontâneo e natural das massas, as quais o investiram com o manto de grande líder, conferindo-lhe poderes quase absolutos para agir em nome do povo supostamente oprimido. Outro exemplo pitoresco de devoção a Bolsonaro, e que mais parece ser um abrasileiramento tosco das saudações “Viva el Dulce” e “Heil mein Führer”, é o título de Mito que seus seguidores lhe atribuíram, título este impregnado de uma vil e repugnante idolatria política. Quanto aos inimigos responsáveis pelo desastre da nação, são eles os esquerdistas, comunistas e toda a base de apoio social do Partido dos Trabalhadores. Isso fica explícito no programa de governo intitulado Projeto Fênix, de Bolsonaro, em que ele, sem nenhum critério lógico, insinua que os elevados índices de homicídio no Brasil têm relação causal com as reuniões do Foro de São Paulo, declarando, no mesmo documento, que a crise econômica é “legado de ineficiência e corrupção do PT”. Além disso, por mais que a ameaça de uma marcha comunista fosse real aos italianos e demais povos europeus no começo do século XX, Bolsonaro age como se a mesma ameaça estivesse à nossa espreita. Imprimindo essa retórica em seus discursos, ele apenas contribui com a difusão de Fake News e de delírios conspiratórios que teriam feito qualquer bolchevique sisudo morrer de rir, embora as consequências instantâneas desses discursos não tenham a menor graça.
Quanto às centenas de declarações autoritárias que o capitão reformado já proferiu durante sua campanha eleitoral, temos esta: “Não existe essa historinha de Estado laico, não! É Estado cristão […] Vamos fazer um Brasil para as maiorias”, e prosseguiu: “as minorias que se adequem ou simplesmente desapareçam”. Lembremos que não se trata de uma verborragia gratuita, e sim de um candidato a Presidente da República assumindo sua completa incapacidade de estabelecer diálogos e mediar os conflitos do povo, e sendo tolerado apesar disso. Em momentos de crise, quanto maior a passividade de certos órgãos fiscalizadores diante de flagrantes ataques à Constituição Federal, maior o incentivo ao trabalho sujo de políticos raivosos, que em troca recebem 49 milhões de votos no primeiro turno de eleições presidenciais. Quando se perde a oportunidade de pará-los antes, é difícil pará-los depois. Além de um apoio expressivo das massas, Bolsonaro recebeu também um vasto patrocínio das elites econômicas tradicionais (agronegócio), dos políticos conservadores, das igrejas evangélicas e de muitos componentes das Forças Armadas, militares e milicianas do país. Mussolini também obteve regalias similares em sua ascensão ao poder, e o fato mais emblemático é que, naquele período, as elites tradicionais, a ala conservadora do parlamento italiano e o próprio Papa Pio XI se aliaram ao Dulce por enxergá-lo como um instrumento poderoso de combate ao comunismo. Para as elites, provavelmente Bolsonaro seja visto não apenas como um mero instrumento, mas também como um fantoche do establishment. Seja como for, sabemos que quais inimigos eles tem em comum.
DIFERENÇAS
Depois que a retórica da ameaça comunista uniu Mussolini às elites conservadores e aos liberais italianos, os desdobramentos dessa aliança imediatamente se fizeram sentir. Inúmeros atos de violência irromperam na Itália como prova de que mesmo as sociedades mais civilizadas da Europa não eram imunes ao vírus do extremismo genocida. Felizmente, ao menos em tese, é difícil imaginar que algo comparável possa ocorrer no Brasil, embora os impactos de políticas autoritárias deixem sempre rastros indeléveis de intolerância, perseguição e, em último caso, morte. Um dos rastros mais sangrentos até agora foi o assassinato do baiano e mestre capoeirista Moa do Katendê, que, ao se posicionar contra Bolsonaro e ter declarado seu voto ao petista Fernando Haddad, foi brutalmente esfaqueado pelo bolsonarista fanático Paulo Sérgio Ferreira de Santana. Em menos de uma semana após o primeiro turno, outras dezenas de casos de violência contra antibolsonaristas (não necessariamente pessoas de esquerda) foram registrados em todo o Brasil. Entretanto, é bastante improvável – mas não posso dizer impossível – que atentados em escala industrial se desencadeiem por aqui. De qualquer maneira, é imprescindível permanecer atento e trabalhar para impedir que uma escalada violenta saia totalmente de controle.
Como eu já disse, o fascismo de Mussolini era carregado de discursos antiesquerdistas, anticapitalistas, seguidos de inúmeros falatórios enaltecedores do nacionalismo militarizado, somados a uma forte obsessão pela guerra imperialista. Na prática, entretanto, o Dulce expropriou apenas uns poucos capitalistas estrangeiros por não atenderem aos propósitos de bem-estar da nação. Já os capitalistas italianos, estes participaram ativamente do regime e gozaram de muitos privilégios, desde que dedicassem uma soma razoável de recursos financeiros para impulsionar o crescimento econômico da Itália. Em contrapartida, se os quase 30 anos de vida pública de Bolsonaro fossem vasculhados nos mínimos detalhes, encontraríamos uma sequência infindável de contradições que não nos permitiriam traçar nenhum posicionamento lógico sobre economia. Sabe-se que, numa entrevista à Revista Veja, em 1999, ele considerou o líder venezuelano Hugo Chávez como uma figura “ímpar” e uma “esperança para a América Latina”, dizendo ainda que desejaria reproduzir sua filosofia no Brasil. Acontece que, em ocasiões anteriores, Bolsonaro já havia defendido, por dezenas de vezes, a ditadura militar de 1964, que certamente teria se contraposto à Venezuela em qualquer circunstância imaginável. Seja como for, após abjurar de seu flerte irrefletido com o chavismo, Bolsonaro se autoafirmou um “crítico ferrenho do comunismo”, o que não impediu que seus posicionamentos permanecessem marcados por diversas distorções. Exemplo típico: um presidente não pode ser nacionalista nem patriota se defende as privatizações de empresas estatais e escancara seu país ao livre comércio estrangeiro. Nisso ele difere não apenas de Mussolini, mas de quase todos os demais candidatos a neofascistas contemporâneos. Donald Trump, que vem realizando um governo altamente protecionista nos EUA, deflagrou uma intensa guerra comercial contra a China e impôs uma série de embargos alfandegários a pretexto de proteger a indústria norte-americana das pressões competitivas globais. Bolsonaro sequer sabe o que isso significa. Dizer-se nacionalista ou patriota e, em pose de continência militar, uivar as siglas USA de um país comprovadamente mais poderoso, faria um fascista clássico sair do caixão e condená-lo à pena de morte.
NEOFASCISMO
Primeiramente, concordo com Paxton quando ele argumenta que é impossível encontrar uma essência única do fascismo que possa existir de forma idêntica em todos os lugares. O fascismo, assim como o liberalismo, está sujeito a alterações que atendem a diferentes fronteiras, símbolos e tradições culturais de cada sociedade. Na América Latina, o mais próximo de um movimento fascista clássico que já existiu foi a Ação Integralista Brasileira, com os camisas verdes de Plínio Salgado correspondendo aos Camisas Negras italianos. Se Bolsonaro está munido de todo o aparato necessário para criar um movimento equivalente, alcançar o estágio 6 e converter seu regime numa nova espécie de governo fascista, isso é algo difícil de prever. De qualquer forma, alguém que afirma que os portugueses nunca pisaram os pés na África durante o período colonial possui um baixíssimo QI para ler, estudar, compreender ou sequer assimilar os elementos genuínos de um fascista. Tanto isso é verdade que os bolsonaristas chegaram ao cúmulo de empurrar as ideias fascistas para o espectro político de esquerda, assim como o fizeram com o nazismo em resposta desengonçada a um vídeo didático divulgado pela Embaixada Alemã sobre como ensinar o Terceiro Reich nas escolas. Por um lado, isso pode nos tranquilizar em alguma medida, pois se nenhum bolsonarista tiver a menor ideia do que o fascismo significa, talvez estejamos relativamente seguros enquanto eles não desenvolvem um fetiche consciente pelo sistema. Por outro lado, é assustador constatar que, mesmo estando totalmente desinformados sobre o tema, eles conseguem repetir experiências muito comuns aos primeiros movimentos fascistas da história. Isso evidencia que ninguém, nem mesmo o militante político mais desinformado de todos, está protegido do contágio silencioso e assustadoramente espontâneo da conduta fascista.
Resta-nos, por fim, emitir um veredito parcial sobre o problema levantado no início deste texto. Bolsonaro e seus seguidores são fascistas? Se entendermos o fascismo como uma injúria gratuita e vazia, então qualquer um que discorde de você poderá sê-lo. Entretanto, se o que estiver em jogo for o conceito histórico do fascismo, então é preciso ter em mente que, nos moldes do regime italiano e do nazifascismo alemão, a resposta será não. Talvez os historiadores do futuro saibam definir o atual momento com uma precisão mais acurada do que a nossa, mas a princípio é mais apropriado tratar o fenômeno brasileiro, a nível parcialmente teórico, como um caso de neofascismo em curso, abrangendo também o ressurgimento outros movimentos de extrema-direita na Europa e nos EUA. A explicação é que o neofascismo reúne elementos específicos que vigoraram no fascismo clássico, estando aberto, todavia, a novos fatores que não existiam anteriormente. Hoje em dia, por exemplo, nenhum europeu simpatizante do modus operandi fascista e partidário da extrema-direita tem uma inclinação à anexação de novos territórios por meio de guerras expansionistas. O que define os partidos de extrema-direita neofascista hoje é exatamente o inverso, por exemplo, as propostas radicais de secessão feitas por movimentos favoráveis ao Brexit, ou ainda, no caso do Brasil, a reivindicação dos separatistas radicados na região Sul, onde se concentra o maior número de neonazistas.
O termo protofascismo também seria apropriado, mas ele ainda é bastante problemático, pois pressupõe que qualquer sinal de fascismo tende a se desenvolver e seguir um padrão cronológico idêntico ao do Partido Nacional Fascista italiano, sendo que as condições existentes na Europa de quase um século atrás não mais se fazem presentes no cotidiano dos europeus de hoje. Se um movimento inspirado nos Camisas Negras eclodisse na Bélgica ou no Brasil, ele poderia receber, portanto, outra definição, já que, por mais que um país desenvolva o ambiente ideal para fazer germinar a semente do fascismo, nada determina que ele nascerá e sobreviverá até conquistar o poder, muito menos seguindo os mesmos precedentes históricos aqui observados. Muitos movimentos de inspiração fascista foram natimortos ou de baixíssima adesão ao longo do século XX, mas agora eles parecem, por razões diversas, apontar uma estranha e nova direção.
Embora seja impossível controlar o ritmo dos recentes desdobramentos políticos do Brasil, é importante acatar os pedidos de cautela não só para conceitos complexos como fascismo, mas também para temas igualmente controversos, como liberalismo, socialismo, comunismo e outros ismos que se vulgarizaram nos debates contemporâneos. Também compreendo, por outro lado, que às vezes o momento presente demanda respostas firmes para defender a democracia e os direitos humanos ameaçados pelos tiranos de nossa geração. Se quisermos estar atentos a essas ameaças, é imprescindível saber reconhecer um “fascista” onde houver um, antes que ele possa reconhecer você.