Por Mario Bunge
Publicado no Cien Ideas
De Aristóteles em diante, quase todos os pensadores têm argumentado que os seres humanos são racionais. Em particular, os economistas pressupõem que os consumidores são racionais, no sentido de que eles atuam de modo a maximizar sua utilidade ou prazer. Afirmam, ainda, que essa racionalidade individual assegura a racionalidade coletiva do mercado, isto é, o seu equilíbrio (um estado em que a oferta é igual à demanda). Segundo eles, viveríamos no melhor dos mundos possíveis. Mas, será que o postulado da racionalidade econômica é verdadeiro?
Consideremos, em primeiro lugar, o consumo de alimentos em um país desenvolvido. Basta espiar o conteúdo de um carrinho de supermercado para perceber que a grande maioria das pessoas consome pão branco em vez de pão integral; bebidas gasosas ou alcoólicas em vez de água; queijos processados em vez de queijos naturais; mais carne vermelha do que de aves ou peixes; mais gordura do que azeite do bom; muitos alimentos enlatados; poucos legumes e, ainda menos, frutas frescas.
Em segundo lugar, em alguns países avançados, há um médico para cada 300 habitantes, enquanto que em muitas regiões do Terceiro Mundo há apenas um por cada 3000 ou ainda 30000 habitantes. Se o mercado internacional de médicos fosse racional, haveria um forte fluxo de excedentes médicos, do Primeiro Mundo ao Terceiro. No entanto, ocorre justamente o contrário: o Terceiro Mundo exporta médicos ao primeiro.
Em alguns casos, esse fluxo de migração é tal que provoca o encerramento de clínicas e hospitais em países pobres. Onde está o famoso equilíbrio do mercado de trabalho? E onde está o benefício da globalização?
Em terceiro lugar, consideremos o consumo de produtos políticos. Quantas vezes nos decepcionamos pelo partido que, normalmente, votamos, apesar do qual retornamos a votá-lo por lealdade ideológica ou pessoal? Quantas vezes temos votado por uma cara simpática sem averiguar o que havia por trás dela? Quantas vezes nos convenceram de que há necessidade de se fazer guerra contra a barbárie, como se a agressão militar não fosse um ato bárbaro?
Em quarto lugar, recentes estatísticas e estimativas publicadas pelas Nações Unidas nos dizem o seguinte, entre muitas outras coisas:
- Educação básica para todos: 6000*.
- Consumo de cosméticos nos Estados Unidos: 8000.
- Água potável e esgotos para todos: 9000*.
- Consumo de sorvetes na Europa: 11000.
- Saúde reprodutiva para todas as mulheres: 12000*.
- Consumo de perfumes na Europa e Estados Unidos: 12000.
- Saúde básica e nutrição para todos: 13000*.
- Comida para animais domésticos na Europa e Estados Unidos: 17000.
- Consumo de cigarros na Europa: 50000.
- Consumo de bebidas alcoólicas na Europa: 105000.
- Consumo de narcóticos no mundo: 400000.
- Gastos militares mundiais: 780000.
As cifras com asteriscos são os custos adicionais, em milhões de dólares, dos serviços sociais básicos nos países em desenvolvimento, que se deveriam pagar para satisfazer as necessidade básicas.
Onde está a racionalidade? O que há de racional no que 10% da população mundial faz com 86% dos gastos? Por que é racional gastar mais em “agentes cancerígenos” (popularmente, chamados de cigarros) do que em avaliar a desnutrição, a doença e o analfabetismo do povo do Terceiro Mundo? Por que é mais racional gastar mais em preparações para a guerra do que para arrancar suas raízes? E, por que é racional seguir ensinando a doutrina econômica padrão, que postula a racionalidade do consumidor, que, na verdade, é manipulado desde a infância pela publicidade comercial e política?
Evidentemente, todas as perguntas anteriores são retóricas: a resposta a cada uma delas é nula. O postulado da racionalidade do consumidor é um mito do livro didático. No máximo, pode-se falar de racionalidade (instrumental) do produtor, desde que esse seja bem sucedido. Mas, então, a afirmação é uma mera definição: “Produtor racional é aquele que tem êxito”. A definição, como qualquer outra, não se refere ao mundo, mas decreta o significado da expressão “produtor racional”. Ou seja, é uma convenção, não uma lei objetiva.
Parece, portanto, que não costumamos atuar racionalmente em assuntos práticos, tais como fazer compras e votar. Nesses conflitos, costumamos ser tão irracionais como escritores que, como Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger e os pós-modernos, denigrem a razão e outros que exaltam a Gianni Vattimo, um tipo de pós-moderno, chamado de «Pensamento débil».
Parece que a razão acabou sendo confinada a tarefas puramente intelectuais, tais como as científicas e técnicas. Ou será que os pós-modernos não se ajustam à definição dada por Aristóteles de um ser humano como animal racional?
Felizmente, nem todos se comportam de maneira irracional. De fato, vemos uma e outra vez os consumidores alertados por grupos de defesa do consumidor, ou do ambiente, boicotarem produtos ruins ou empresas que destroem os recursos naturais. Vemos que, quando fornecem a informação honesta e o debate aberto, o eleitorado castiga os políticos mentirosos ou ladrões. E que, ao propor uma obra pública ou um programa social que promete melhorar a qualidade de vida, o povo contribui voluntariamente em direção a elas, em vez de resmungar contra os impostos.
Em resumo, nem sempre somos animais racionais, como acreditava Aristóteles: às vezes, nos deixamos levar por paixões, medos irracionais ou mentiras. Somos, portanto, meio-racionais. Somos racionais quando nos convém ou quando refletimos com base em informações suficientes ou verídicas. Não somos quando nos enganamos a nós mesmos, quando somos presas do medo ou da ganância, ou quando nos cega a publicidade comercial, política ou ideológica.
Para que sejamos mais racionais do que irracionais, depende não apenas das circunstâncias, mas também do esforço que colocamos para alcançar a máxima racionalidade, que é a máxima da humanidade. Não tenho razão?