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O multiverso faz sentido?

Por Marcelo Gleiser
Publicado na National Public Radio

É bom começar explicando o título, já que, para a maioria das pessoas, a palavra “multiverso” sequer existe. A ideia é que o nosso Universo (com “U” maiúsculo) é apenas um entre uma miríade de outros universos possíveis, todos partes de um único multiverso.

O multiverso, por sua vez, poderia ser uma entidade eterna e atemporal. Assim, o que chamamos de Big Bang seria o evento que marcou o início da nossa narrativa cósmica; outros universos teriam seus próprios big bangs e narrativas cósmicas. A questão de um “começo” seria então varrida para baixo do tapete, por assim dizer, já que o multiverso não tem história.

Isso faz lembrar da antiga teoria do “universo estacionário”, uma alternativa ao modelo do Big Bang proposta em 1948 por um trio de cosmólogos britânicos, incluindo o único e inimitável Fred Hoyle. No modelo estacionário, o Universo era eterno; para compensar a expansão cósmica e a consequente perda de densidade da matéria, mais matéria seria criada na medida exata de forma a manter a densidade média constante: pensem em uma banheira na qual a mesma quantidade de água que entra pela torneira sai pelo ralo.

De certa forma, o multiverso é uma extrapolação do modelo estático, abrangendo um número enorme de universos possíveis em vez de um só. Não se trata só de matéria sendo criada em um único universo, mas de universos sendo criados em um único universo.

Com o passar dos anos, cosmólogos têm proposto diferentes tipos de multiverso. Em alguns deles, as leis da Natureza poderiam variar de região para região do multiverso, de forma que universos diferentes teriam leis da física diferentes. Atualmente, tais ideias são mais metafísicas do que físicas. Em outros, universos diferentes têm as mesmas leis, mas as constantes da Natureza (por exemplo, a massa e a carga do elétron, a massa do bóson de Higgs, a força da gravidade, etc.) pode variar de universo para universo. Essa noção é consistente com a teoria das supercordas, a tentativa atual de se construir uma teoria que unifique todas as forças da Natureza (quatro no total — por enquanto), a chamada teoria de tudo, ou TDT.

Hoje em dia, não sabemos se o multiverso existe. Ou, caso exista, se algum dia descobriremos isso. É possível que o nosso Universo seja tudo o que existe. Contudo, se esse for o caso, precisamos explicar porque este Universo, com suas propriedades, existe, e não outro. Especialmente se levarmos a teoria das supercordas a sério e concluirmos que o multiverso existe e que cada universo teria constantes físicas diferentes e, consequentemente, física diferente. Seria nosso Universo a exceção à regra entre todos os universos possíveis? Como determinar isso? Alguns físicos estão tentando desenvolver uma estatística de universos, uma medida de probabilidade para aplicar ao multiverso de forma a determinar as chances de um Universo como o nosso existir.

Uma resposta óbvia seria “que diferença faz?”. Estamos aqui, nosso universo obviamente existe e é isso. Mas é difícil aceitar esse tipo de resposta. Somos culturalmente programados para procurar explicações definitivas, para forjar narrativas com um começo, meio e fim. Para nós, é bem difícil aceitar que algo possa não ter tido um início. Mais difícil ainda é imaginar que algo poderia ter simplesmente passado a existir sem uma causa, o famoso creatio ex nihilo da teologia.

Em última análise, a existência do multiverso, caso seja uma questão científica, precisa ser determinada experimentalmente. No momento, alguns cientistas estão tentando descobrir quais possíveis assinaturas outros universos poderiam ter deixado impressas no nosso. Por exemplo, se algum outro universo “colidiu” com o nosso no passado, ele pode ter causado perturbações no fundo cósmico de micro-ondas, o depósito de radiação que sobrou da época em que os primeiros átomos foram feitos, apenas 400 mil anos após nosso Bang. Pensem nas vibrações de dois balões batendo um no outro. Infelizmente, até agora os modelos são simplistas e nenhuma assinatura óbvia foi encontrada nos céus. Além disso, mesmo que pudéssemos detectar a assinatura inequívoca de outros universos, ainda não poderíamos afirmar com certeza que ela teria vindo de um multiverso.

Um dos problemas que a ciência enfrenta ao confrontar esses tipos de questões é a noção da infinitude. Como podemos testar uma teoria que prevê um universo que existirá para sempre? Para testar empiricamente tal previsão precisaríamos de um experimento que também fosse eterno, uma impossibilidade. Mesmo que pudéssemos provar que o multiverso existe, não poderíamos provar que ele é eterno. Testemunhamos a colisão de dois reinos: um, o reino teorizador das ideias, que, com impunidade platônica, pode sonhar com o tempo infinito; o outro, o reino humano demais da ciência, no qual a passagem do tempo e as nossas limitações como seres finitos estabeleceram um contrato inflexível com a história.

Marcelo Gleiser

Marcelo Gleiser

Appleton Professor of Natural Philosophy at Dartmouth College, USA. Professor of Physics and Astronomy at Dartmouth College, USA. Writer, blogger, public lecturer.