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O perigo de se encantar pela tecnologia e as Estradas Solares

Com a tecnologia realizando feitos cada vez mas incríveis e promissores, nos envolvendo cada vez mais, não é inesperado o encanto que ela causa, uma noção de altíssima capacidade de realização. Chega até a criar uma noção de magia e de super-poder, como se tudo com a tecnologia fosse possível, como se a sofisticação de todos sistemas com mais tecnologia fosse sempre vantajoso.

A tecnologia torna possíveis inúmeras diferentes soluções para diferentes problemas, porém, há de se ser realista e crítico ao se escolher uma solução para um problema em uma sociedade fervilhante de transformações, que não pode parar a nenhum momento, inclusive criando vários problemas quanto à manutenção da mesma, pois esta há de sempre acompanhar seu regime de funcionamento.

Por mais que um projeto seja possível de ser implementado – e mesmo que seja plenamente viável – fazê-lo dependerá de suas vantagens sobre os outros projetos nos quais pode se investir para obter resultados semelhantes.

Certos projetos, pelo encanto que causam em suas propostas, podem parecer idéias magníficas, viáveis, e até mesmo vantajosas sobre todas outras, e ao usar da tecnologia e da sofisticação, somam ao seu encanto esta noção exagerada de capacidade extraordinária da tecnologia moderna.

Talvez vocês já tenham ouvido falar do projeto estadunidense que pretende transformar estradas, ruas, calçadas, estacionamentos, praças e quadras em gigantescos arranjos de painéis solares inteligentes, que ficou conhecido como o projeto das Estradas Solares.

Seu conceito é magnífico e muito engenhoso, mas quem entende de gestão de projetos, logística, engenharia material, estradas, sistemas informatizados (e a manutenção destes), deve ter ficado com um pé atrás (e com razão).

O projeto inclui muitas funções em um mesmo sistema, e talvez de forma exageradamente sofisticada, além de requerer uma mudança muito grande e custosa no sistema atual. Além disso, na divulgação do projeto, há aparentemente uma certa falta de realismo, e um certo exagero nas considerações ao mesmo, como se fosse a solução pra maioria problemas atuais das cidades, deixando evidente o como ele usa desse encanto com a tecnologia, com sua sofisticação e engenhosidade como um dos seus pontos fortes ao conseguir apoio, ao invés de uma análise crítica e conclusão de suas vantagens em um cenário realista de implementação.

Há de haver muita seriedade e realismo quando se fala de projetos que pretendem mudar radicalmente a infraestrutura de cidades, movimentar economias inteiras, gerar empregos em massa, principalmente se visando um futuro bem próximo.

Eu escolhi esse projeto como um exemplo de como projetos podem encantar na sua apresentação, mas podem parecer terríveis  ao analisar a fundo todas suas implicações em um cenário realista – considerando sua real escala, em um país gigantesco, onde não há como contar com cenários ideais para a implementação do mesmo, e onde esta há de garantir segurança, estabilidade, e baixo transtorno nas atividades vitais da sociedade, havendo muitas complicações técnicas e humanas envolvidas, além da existência de outros projetos que também podem prover as mesmas soluções (mesmo que separadamente).

Então, já leram sobre o projeto, vamos começar?

  • Custo e viabilidade econômica

Vamos lembrar como são feitas as estradas de asfalto? Então, as estradas de asfalto usam muito material reciclado – como a borracha de pneus, o asfalto de outras estradas etc –  e aproveitado – como restos de refinarias de petróleo, restos de pedreiras e restos de construções – , enfim, muitos materiais são reciclados e aproveitados, são abundantes e de baixo custo. Elas ajudam a reciclar muito material, além de seres recicláveis elas mesmas.

Apesar do maquinário que opera nas estradas de asfalto ser grande e parecer lento, se bem feitas, as operações de manutenção e recondicionamento são esporádicas, e andam em um passo bem rápido na verdade, principalmente em estradas, em áreas urbanas tem algumas complicações com a infraestrutura que anda junto com ruas de asfalto (Circuitos hidráulicos, elétricos, etc).

E os painéis solares? Bem, se você viu o projeto, deve ter visto que eles não são nada, nada simples. Usam um vidro especial que supostamente suporta altíssimas pressões (caminhões podem impor uma pressão de mais de 100 PSI no solo), tem um sistema eletrônico um tanto complexo, com microprocessador, controle microprocessado de energia, capacidade de comunicação com os outros painéis (o que envolve todo um sistema de endereçamento e proteção contra invasão), e controle de vários LED’s que ficam em sua superfície, e que junto com os outros, transformariam todo o chão em uma tela gigante.

Além disso, eles ainda tem sistema de aquecimento para derreter a neve, e tem uma grande infraestrutura abaixo, com canais para escoamento de água, além de toda a rede elétrica e rede de comunicação. Haveria uma grande infraestrutura, o que significaria cavar fundo nas estradas atuais, criando uma base mais funda ainda, para sobre ela construir estes canais e a base dos painéis, para ainda por cima destes, instalar o sistema de painéis.

Wow! Such engenhosidade! Não há dúvidas de quão útil e genial isso tudo seria. Mas e o preço disso tudo? Bem, tenho péssimas notícias.

Cálculos revelaram que só o preço da implantação, nos Estados Unidos inteiro, seria de mais de um trilhão de dólares no mínimo, alguns calculando em cerca de 60 trilhões. Péssima notícia. Mas, a substituição não poderia ser gradual, usando o economizado para alimentar o processo aos poucos? Sim, poderia, mas ainda sim, cálculos e análises mostram que, possivelmente, o custo de operação e manutenção fariam com que o economizado não fosse suficiente para continuar com o projeto, ou fosse muito pouco, fazendo o processo se tornar lento demais, e acabando por ficar ultrapassado antes que tomasse proporções consideráveis.

Mesmo que isso não ocorresse, essas desvantagens econômicas com certeza fariam o projeto não mostrar vantajem sobre outros projetos de energia renovável (somados a outros projetos para as demais questões) menos complexos e de mais simples implantação, operação e manutenção.

Mas, além da questão de dinheiro, e se todos botassem a mão na massa pra fazer, e se começassem a implantar agora, com mão de obra voluntária e disponibilidade de recursos?

Viabilidade técnica e problemas na manutenção e operação

Com grande sofisticação, complexidade e número de funções, vem grande problemas e muitas adversidades. Não é desejável tornar um sistema mais complicado do que precisa ser, nunca é.

Como citou um crítico da sofisticação exagerada de sistemas informatizados, existe uma tendência de querer sempre sofisticar mais e mais estes sistemas, usando computadores embutidos com sistemas operacionais completos, na maioria das vezes um Linux adaptado.

Em vários destes, daria para substituir os computadores por sistemas muitíssimo mais simples, como microcontroladores, e criar um simples programa em Assembly para controlá-lo. Dessa forma, apesar de tornar um pouco mais complexo o código do programa, não haveria sequer uma instrução sendo executada no sistema sem ser as que estão no código, e o programa também não recorreria de funções de software externas que podem apresentar falhas. O sistema seria completamente estável, e qualquer erro haveria de estar ou no código ou no hardware (com uma pequena chance de ser no firmware, mas nestes sistemas simples, ele apenas inicia o microcontrolador e carrega o programa, muito difícil de ter algum problema).

As placas solares do projeto usam de uma tecnologia bem sofisticada e complexa, incluindo um sistema de comunicação que permite torná-las em uma gigante tela de LED’s. Isso é muito legal, até que alguém invada o sistema e jogue o trânsito de uma pista contra outra. Tornar esse intrincado sistema seguro iria requerer ainda mais processamento por parte das placas, mais artifícios de software, dando ainda mais espaço pra falhas, tanto de software quanto de hardware,  corroborando para uma alta demanda de manutenção.

Falando nisso, e a manutenção? Bem, as placas poderiam ser trocadas facilmente, porém reparos na infraestrutura inferior necessitariam de pessoas debaixo da estrada. Reparos muito provavelmente seriam mais frequentes do que em estradas de asfalto, mais caros, e gastariam um bom tempo. Para reduzir a interrupção, poderiam botar os funcionários para trabalhar debaixo da estrada sem parar o trânsito, o que aumentaria bastante os riscos da função, além de deixá-los mais estressados com as vibrações dos veículos logo acima.

Isso tudo ainda considerando que estas placas aguentarão o castigo das vibrações e do peso dos veículos. Como citou um dos críticos, ao parar ao lado de uma rodovia nos Estados Unidos, ele ficou abismado com o estado da estrada. Naquela parte, haviam placas de concreto de ao menos 10 polegadas (25.4cm) de espessura no chão, todas profundamente rachadas.

As placas de vidro que protegem os delicados painéis solares dos veículos logo acima tem de 0,5 a 1 polegada apenas. Mesmo se elas suportarem bem, de qualquer forma, vale lembrar que no seu design, elas tem pequenas protuberâncias cilíndricas na superfície, dispostas a uma distância de aproximadamente uma polegada uma da outra. Em um carro de passeio a aproximadamente 90km/h, você ouviria um tom agoniante de 1kHz (não exatamente igual a este, porém). Dependendo do veículo, esse som pode ficar abafado, porém em um carro de passeio, seria provavelmente notável.

É necessário lembrar que, motoristas mais estressados causam mais acidentes, não é uma boa idéia fazer uma estrada barulhenta. Além disto, esta vibração mais as outras vibrações dos veículos aceleram muito o desgaste de equipamentos eletrônicos.

  • Conclusão

Apesar do quanto encantadora é essa ideia, ela não parece ser muito viável, e parece criar toda uma gama de problemas práticos, técnicos, humanos, etc.

Não querendo desmerecer a ideia, porém ela parece tentar solucionar muitos problemas em um só sistema, tornando-o complexo demais, além de usar de uma sofisticação desnecessária, fazendo-o perder a competitividade contra outros projetos também muito úteis, engenhosos e fáceis de implementar, como fazer coberturas de panéis solares para telhados, estacionamentos e outras áreas, que não usam vidros especiais, nem microprocessadores, LED’s, nem nenhuma eletrônica avançada, são baratíssimos, produzidos em massa, e ajudam a suprir a demanda local dos lugares, alguns podendo usar somente a energia gerada por eles.

Até agora, esse projeto conseguiu mais de 1.4 milhões de dólares em financiamento colaborativo, porém isso ainda está muito longe de fazer uma grande transformação com ele, enquanto, se usado para painéis solares simples em coberturas, poderia já ter coberto centenas de lugares, produzindo bastante energia, reduzindo a demanda de energia da rede elétrica convencional destes lugares.

Devemos sempre ser críticos e nunca nos deixar levar pelo encanto, que pode ser prejudicial tanto individualmente, fazendo-nos pagar mais caro por sofisticação desnecessária (como geladeiras que acessam a internet), quanto coletivamente, fazendo projetos pouco viáveis e pouco (ou não-)vantajosos ganharem um apoio demasiado, enquanto outros projetos poderiam recebê-lo e trazer resultados melhores e mais rapidamente.

Fontes:

  • http://www.solarroadways.com/
  • http://jalopnik.com/why-the-solar-roadway-is-a-terrible-idea-1582519375
  • http://www.tecmundo.com.br/energia-solar/4616-estrada-solar-o-asfalto-da-vez-a-tecnologia.htm
  • http://www.extremetech.com/extreme/183130-solar-roadways-passes-1-4-million-in-crowdfunding-just-short-of-the-56-trillion-required-but-not-bad-for-a-crazy-idea
Guilherme Ferreira Franco

Guilherme Ferreira Franco

Adepto do ceticismo científico e divulgador da ciência pela UR e pelo Clube de Astronomia Louis Cruls (CALC). Faz licenciatura em física, e desenvolve atividades com eletricidade, eletrônica, informática e outras tecnologias desde 2008.