Não existe UMA doença autoimune. Na verdade, assim como o câncer, existem vários tipos de doenças colocadas em um único grupo e,há muito tempo, intrigam médicos e tomam a curiosidade de muitas pessoas. Alguns exemplos delas são anemia hemolítica autoimune , púrpura trombocitopênica idiopática, artrite reumatoide, doença de Crohn, Tireoidite de Hashimoto, vitiligo, diabetes do tipo I, esclerose múltipla, lúpus eritematosa sistêmica, doença de Graves, psoríase, hepatite autoimune, Síndrome de Guillain-barré, granulomatose de Wegener, miastenia grave, cirrose biliar primária e doença celíaca.
A classe de tais doenças inclui mais de 100 tipos de patologias diferentes, cada uma com sua peculiaridade. No entanto, embora possuam sua especificidade, há características comuns a todas elas, podendo variar no que diz respeito à localização (sistêmicas ou específicas a um órgão) e ter a diversificação de mecanismos efetores responsáveis por lesões teciduais, cronicidade, autoperpetuação e a tendência a progredir cada vez mais.
Quanto à epidemiologia, é difícil ter dados exatos, uma vez que, como supracitado, há vários tipos de doenças autoimunes, cada qual com características próprias. Mesmo assim, estima-se uma incidência total de 90 a cada 100.000 pessoas por ano e uma prevalência de ≈3%, sendo que esses dados não podem ser levados como conservativos, pelo motivo citado anteriormente. Além disso, sabe-se que as mulheres são mais afetadas que os homens, tendo doenças autoimunes o título de uma das 10 principais causas de morte em mulheres com menos de 65 anos.
Doença |
Incidência / |
Prevalência / 100.000 pessoas |
Sexo feminino em percentagem |
Doença de Addison (a) | 0,6 | 14,0 | 93 |
Hepatite auto-imune (a) | 0,4 | 0,4 | 88 |
Doença celíaca (c) | 50-300 | 500-1200 | |
Diabetes mellitus (Tipo 1) Idade < 20 (a) |
12,2 | 192,0 | 48 |
Lúpus induzido por fármacos | 5-7 | Sem dados | |
Glomerulonefrite (a) | 3,6 | 40,0 | 32 |
Doença de Graves (a) | 13,9 | 1151,5 | 88 |
Tiroidite de Hashimoto (a) | 21,8 | 791,7 | 95 |
Poliangeíte microscópica | 0,2-7 | ||
Cirrose biliar primária (a) | 0,9 | 3,5 | 89 |
Anemia perniciosa (a) | Sem dados | 150,9 | 67 |
Polimiosite/Dermatomiosite (a) (b) |
1,8 0,2-1 |
5,1 | 67 60 |
Artrite reumatóide (a) | 24 | 860 | 75 |
Esclerodermia (a) (b) |
1,4 0,5-1,9 |
4,4 1,3-9 |
92 84-93 |
Síndrome de Sjögren (a) (b) |
3,9 | 14,4 1,3-9 |
92 84-93 |
LED (a) (b) |
7,3 3,3-4,8 |
23,8 15-50 |
88 84-90 |
Vasculite, sistémica primária (a) | 2,0 | 14,5 | 43 |
Glomerulonefrite com Poliangeíte (GPA), anteriormente denominada granulomatose de Wegener (a) | 1,0 | 3,0 | 51 |
Fonte: http://www.nedai.org/doencas-auto-imunes/
No entanto, para compreender a autoimunidade, necessita-se, primeiramente, entender como se dá um mecanismo denominado de tolerância imunológica.
Tolerância imunológica
A tolerância imunológica consiste na “filtração” de linfócitos autorreativos, ou seja, que promovem uma reação imunológica contra substâncias ou células do próprio corpo (chamadas de auto-antígenos). Ela acontece nos chamados órgãos linfoides e é, em grande parte, regulada pelo complexo de genes AIRE. Exemplos de órgãos linfoides são o baço, a medula óssea e os linfonodos (distribuídos ao longo de todo o corpo).
Os órgãos linfoides podem, ainda, serem divididos em primários e secundários. Os primários são, basicamente, onde os linfócitos (células do nosso sistema imunológico responsáveis pela ativação de uma parte do sistema imune e pela produção de anticorpos) são formados. De lá, eles encaminham-se aos órgãos linfoides secundários, onde aguardam por algum estímulo.
A tolerância imunológica é, então, dividida de acordo com o local em que acontece: em central (nos órgãos linfoides primários) e em periférica (nos secundários). Sua ocorrência está relacionada ao aniquilamento de linfócitos que possam ser danosos ao próprio corpo, em outras palavras, para impedir uma doença auto-imune.
Logo, vê-se que o corpo, por si só, tenta inibir a existência de linfócitos que possam desencadear alguma reação exacerbada, atenuada ou contra suas próprias células. Entretanto, isso pode não ser feito de forma satisfatória e, com relação à última situação, os leucócitos identificam determinadas células ou moléculas do corpo como estranhas e iniciam uma reação imunológica desnecessária, causando vários reflexos clínicos no indivíduo.
Causas
Suas causas ainda não são tão definidas, mas é provável que possam ser ocasionadas por fatores de suscetibilidade genética, infecções e lesões locais do tecido, pois esses predispõem a anormalidades imunológicas. Ainda, supõe-se que a epigenética, infecções, influências hormonais e alteração da microbiota também possam exercer um grande papel nisso.
Dentre todos os fatores supracitados, é relevante notar que a suscetibilidade genética é o fator mais determinante para a presença de doenças autoimunes, uma vez que a maioria delas está relacionada a isso, principalmente, no que tange ao complexo MHC (HLA, em humanos), que é basicamente o responsável pela “identidade” da célula. Se o corpo não consegue reconhecer que uma célula é pertencente sua, é provável que a identidade dela esteja alterada, fazendo-a ser identificada como estranha e, assim, desencadeando uma resposta imunológica.
Dos genes relacionados a doenças autoimunes, 20 a 30 já foram identificados. Deles, o complexo HLA contribui, sozinho, para metade ou mais da suscetibilidade genética. No entanto, ele não possui contribuição única, uma vez que foram encontrados alelos desse complexo que levariam a doenças em indivíduos saudáveis. Portanto, é necessário atribuir uma interação entre vários genes, o que leva à caracterização de poligenicidade.
Os genes frequentemente envolvidos com doenças autoimunes são polimórficos – o que significa que variações genéticas deles são bastante comuns -, e cada polimorfismo pode juntar-se um com o outro e gerar a característica de autoimunidade.
Porém, além do fator genético, podemos citar a insurgência de doenças autoimunes em associação a infecções ou sendo precedidas pelas mesmas. É como se a resposta ao microrganismo fosse tão intensa ou falha que o corpo, a partir disso, começasse a responder a si mesmo, como é o caso da tão falada Síndrome de Guillain-Barré. Pode-se ver isso na resposta bystander activation, na qual células apresentadoras de antígenos expressam coestimuladores e secretam citocinas que provocam um colapso de autotolerância na célula T auxiliar. Ademais, micorganismos podem ativar linfócitos B autorreativos (que não se manifestavam antes da infecção por não terem sido ativadas).
É possível ver, também, relação da autoimunidade com infecções quando se remete à reação do sistema imunológico a autoantígenos pelo fato dos antígenos do microrganismos possuírem a capacidade de mimetizar molecularmente os autoantígenos, tornando suas estruturas semelhantes e “enganando” a resposta imunológica. A exemplo disso, temos o depósito de anticorpos no miocárdio em função de uma infecção por Streptococcus pyogenes.
Pode-se citar, ainda, a relação da microbiota com a autoimunidade, uma vez que ela é bastante influente no desenvolvimento do sistema imunológico e seria intuitivo pensar que uma alteração nela também poderia alterá-lo. Outrossim, é relevante notar que alterações anatômicas em tecidos causadas por inflamação, lesão isquêmica ou trauma podem levar à exposição de autoantígenos normalmente ocultos do sistema imunológico, como proteínas intraoculares e esperma, o que faz pensar que uveíte e orquite pós-traumáticas sejam respostas autoimunes. Por último, supõe-se que as influências hormonais tenham influência em tais doenças, pelo fato de que a prevalência delas é maior em mulheres, mas as evidências ainda não estão completas para afirmar isso com certeza.
Referências
ABBAS, A. K.; LICHTMAN, A. H.; PILLAI, S. H. I. V. Imunologia celular e molecular. 8. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.
Epidemiologia de Doenças auto-imunes. Disponível em: <http://www.phadia.com/pt-PT/3/Doencas/Marcadores-Auto-imunesAuto-anticorpos1/>. Acesso em: 08 Dez. 2016.
A epidemiologia das doenças auto-imunes. Disponível em: <http://wikimuno.med.up.pt/tiki-index.php?page=Epidemiologia>. Acesso em: 08 Dez. 2016.