1. Apresentação
“Cogito, ergo sum” significa “penso, logo sou” [1]. Essa frase é de autoria do filósofo e matemático francês René Descartes (1596 – 1650). Na quarta parte da versão francesa de Discurso do Método (1637), essa sentença é formulada como “je pense, donc je suis” [2]; nesse sentido, “cogito ergo sum” é a sua versão latina.
Descartes alcança essa conclusão após duvidar da verdade de todas as coisas. A seu ver, mesmo que ele duvidasse de tudo, não poderia duvidar de que ele mesmo existe pelo menos enquanto “coisa que pensa” (2005, p. 46). Entretanto, na meditação segunda de Meditações Metafísicas (1641), essa conclusão aparece como “Eu sou, eu existo” (2005, p. 46) – “Je suis, j’existe” [3].[4]
2. A Demonstração do Cogito
A demonstração do Cogito se dá de maneira bastante breve no Discurso do Método, mas é muito mais extensa e detalhada nas Meditações Metafísicas. Para chegar ao “cogito ergo sum”, Descartes estabelece dois movimentos: primeiro, demonstrar as razões que o levam à dúvida hiperbólica; e segundo, demonstrar como a dúvida hiperbólica leva à certeza indubitável de que ele mesmo existe enquanto coisa que pensa. Delineemos, a seguir, esses dois movimentos meditativos que o levam ao cogito[5].
2.1. Meditação Primeira
Descartes deixa claro que o propósito de suas meditações é estabelecer o conhecimento sob bases sólidas e seguras (2005, p. 29) (2013, p. 63). Nesse sentido, ele rejeita – como se fosse totalmente falso – tudo aquilo que pudesse supor a menor dúvida (2005, p. 30) (2013, p. 63).
Em seguida, ele estabelece três pontos[6][7] para especificar como esse processo de rejeição ocorrerá, que são:
I. Negação daquilo que se baseia nos sentidos, já que é claro que os sentidos às vezes nos enganam e que não é prudente confiar naqueles que um dia nos enganaram (2013, p. 63) (2005, p. 31).
II. Negação das coisas que se apresenta em um sonho, já que não há indícios concludentes de que podemos distinguir a vigília do sono e, portanto, não podemos saber se estamos sonhando agora ou se estamos acordados (2013, p. 63) (2005, p. 32-33).
III. Negação dos paradigmas matemáticos. Esse é um ponto mais complicado, pois parece que, acordando ou dormindo, 2 + 3 = 5; que, mesmo em sonho, 2 + 3 nunca será igual a 7 (2005, p. 35). Para negar essa objeção, Descartes apontará para o fato de que raciocinamos errado em relação às demonstrações mais simples da matemática (2013, p. 63). Entretanto, ele irá se concentrar principalmente no apontamento da possível existência de um “gênio maligno” que poderia fazê-lo crer que 1 + 1 = 2, mesmo que isso não fosse verdadeiro (2005, p. 35-36). Nesse sentido, a suposição do gênio maligno parece promover a negação não só de suas crenças matemáticas, mas também de o restante de suas opiniões (2005, p. 36-37).
Diante desses pontos, Descartes conclui que deve rejeitar tudo aquilo que recebera em sua crença como verdadeiro e considerar todas as suas antigas opiniões como falsas. Esse é momento em que ele assume a suspensão do juízo (2005, p. 36-38) e a dúvida hiperbólica.
2.2. Meditação Segunda
Descartes percebe que, ao duvidar de tudo, ele não poderia negar que há a própria dúvida. Então ele admite que “penso, logo sou” deve ser o seu primeiro princípio firme e indubitável que sustentará o fundamento do conhecimento (2013, p. 64). Em outras palavras, tentando negar tudo como falso, acabava-se afirmando a existência do pensamento. Descartes duvidava e isso era indubitável, isto é, que Descartes duvidava era aquilo que conseguia resistir ao gênio maligno, pois o próprio Descartes precisaria, para ser enganado pelo gênio maligno, existir enquanto aquele que é enganado (ou aquele que pensa) (2005, p. 42-43).
Assim, “cogito ergo sum” se torna o primeiro princípio firme e indubitável de sua jornada meditativa (2013, p. 64). Ele é o ponto arquimediano de sua filosofia[8]. De sua própria existência enquanto coisa que pensa, então, Descartes não pode duvidar, já que, enquanto pode pensar, ele próprio é uma coisa que pensa (2005, p. 46). Essa “coisa que pensa” é aquilo “que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (2005, p. 47-48). Em contrapartida, ele só pode afirmar que é uma coisa que pensa enquanto pensa. Se cessar o seu pensar, cessa-se simultaneamente o seu existir (2005, p. 46).
Notas
[1] Na maioria das vezes, se traduz “Cogito ergo sum” como “Penso, logo existo”, mas a tradução que escolhi foi “Penso, logo sou”. Em História da Filosofia, existe um debate quanto a qual tradução seria a mais correta. Por um lado, defendem que é indiferente, que tanto faz “ser” ou “existir”, que Descartes não diferencia uma noção da outra. Por outro, há quem defenda que “ser” e “existir” possuem estatutos ontológicos distintos. Na verdade, o debate é mais complexo que isso, ainda mais considerando a caracterização que Descartes faz de Deus em sua filosofia (i. e., em Descartes, Deus existe ou Deus é?). Em todo caso, não entrarei em tal debate. Só devo salientar que escolhi “Penso, logo sou”, porque parece ser a tradução que acarreta menos problemas, apesar de ser menos utilizada. Para saber mais sobre isso, Cf.: GONÇALVES, Angela. “A diferença entre o cogito do Discurso do Método e o cogito das Meditações Metafísicas”. In: Verdade e Método em René Descartes. Porto Alegre: Editora Fi, 2015. Disponível em: < https://issuu.com/lucasmargoni/docs/60_-_angela >. Consultado em 23. Jul. 2017. p. 112-124.
[2] DESCARTES, René. Discours de La Méthode (PDF). Consultado em 23. Jul. 2017. p. 23.
[3] DESCARTES, René. Méditations Métaphysiques (PDF). Consultado em 23. Jul. 2017. p. 9.
[4] Também atribui-se erroneamente a Descartes uma frase semelhante, que é “puisque je doute, je pense; puisque je pense, j’existe”; em latim, “dubito, ergo cogito, ergo sum”; em português: “porque eu duvido, eu penso; porque eu penso, eu existo”. Embora essa frase pareça sintetizar bem a proposta cartesiana, ela é de Antoine Léonard Thomas e está em seu Éloge de René Descartes. Cf.: THOMAS, Antoine Léonard. Éloge de René Descartes. Consultado em 23. Jul. 2017. p. 32.
[5] O primeiro movimento corresponde sua Meditação Primeira e o segundo, a sua Meditação Segunda. Ambos são etapas das Meditações Metafísicas, que são resumidas em seu Discurso do Método.
[6] Também pode-se considerar o argumento do gênio maligno como um quarto ponto, embora nas Meditações Metafísicas ele surja como um contraponto em relação a resistência dos paradigmas matemáticos ao argumento do sonho.
[7] No Discurso do Método, Descartes estabelece o ponto III antes do II, mas nas Meditações Metafísicas essa ordem é invertida, i. é, primeiro ele utiliza o argumento dos sonhos e, em seguida, nega os paradigmas matemáticos. Isso ocorre porque ele utiliza argumentos diferentes nas duas obras para chegar à suspensão do juízo. Na verdade, no Discurso do Método essa ordem não importa, mas nas Meditações Metafísicas, em que Descartes elabora mais amarradamente o argumento do cogito, a ordem dos argumentos passa a importar.
[8] “Arquimedes, para tirar o globo terrestre de sua posição e transportá-lo para outro lugar, nada pedia senão um ponto que fosse fixo e assegurado. Assim, terei direito de conceber altas esperanças, se for feliz o bastante para encontrar uma coisa que seja certa e indubitável”. Cf.: DESCARTES, René (2005). Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes. p. 41–42.
Bibliografia
DESCARTES, René. Discurso do Método. Porto Alegre: L&PM, 2013.
DESCARTES, René. Discours de La Méthode. Consultado em 23. Jul. 2017.
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DESCARTES, René. Méditations Métaphysiques. Consultado em 23. Jul. 2017.
Atenção! Esse texto é disponibilizado nos termos da licença Creative Commons – Atribuição – Compartilha Igual 3.0 Não Adaptad (CC BY-SA 3.0), pois consiste em uma adaptação de um verbete que eu, Elan Marinho, escrevi por completo para o Wikipédia em 16h51min de 21 de junho de 2017 (Acesse: aqui). Embora eu tenha adicionado mais informações e procurado suavizar um pouco a tecnicidade do meu verbete original nesse artigo, o conteúdo dele é praticamente o mesmo.