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O que todos deveriam considerar sobre o aborto

Por Tiago Carneiro

UPDATE NO FINAL. Frente a algumas críticas, adicionei mais alguns questionamentos filosóficos e contra-argumentos logo abaixo do texto original. Mudei também algumas frases do original para que sejam mais cientificamente precisas (sinalizadas com asterisco).


Numa questão tão debatida como o aborto, é válido, se não até essencial, saber o que a ciência tem a dizer sobre o assunto. E como em qualquer assunto, há sempre fatos desconhecidos pelo público geral, contradições culturais e mitos populares que podem influenciar a sua posição. Neste texto, tentarei isolar certos argumentos e desenvolver o assunto usando o que sabemos cientificamente.

Antes de tudo, é interessante que estipulemos a definição de ‘vida’. Na biologia, tanto organismos pluricelulares (animais, plantas…) quanto organismos unicelulares (bactérias, fungos, algas, protozoários…) são considerados seres vivos, mesmo não possuindo consciência de que estão vivos. No debate sobre o aborto, é muito falado que é imoral acabarmos com uma vida. Porém, se formos classificar ‘vida’ do mesmo modo que a biologia classifica, podemos concluir que todos nós somos exterminadores de vida: Quando nos alimentamos tanto de carne quanto de plantas, ou quando matamos fungos e bactérias ao lavar as mãos, estamos aniquilando milhões e milhões de seres vivos. Obviamente, qualquer pessoa sã não consideraria esses atos como imorais, mas ao mesmo tempo estamos acabando com vidas. Portanto, usar o critério ‘vida’ por si só no assunto não é um fator decisivo na questão.

Muitos argumentam então que após a fecundação, o ser possui todos os genes que um humano adulto possui, logo já é um ser humano vivo. A questão é: a vida desse ser passa a ser mais importante do que a de outros seres simplesmente por sua composição genética inicial, e não pelo que os genes já produziram? No estado em que o feto se encontra em boa parte da gestação, ele não possui nenhuma função cognitiva que qualquer ser vivo do reino animal completamente formado tem.* Ele apenas possui a tendência de se tornar um humano “completo” no futuro. Será que esse potencial por si só deve ser a justificativa para não podermos mais impedir o resultado deste ser atingido? Faz sentido o argumento de que ‘se algo começou, logo é errado interromper’? Quantas vezes você parou de fazer algo porque percebeu que se continuasse as consequências seriam piores do que se interrompesse? Em outros casos podemos interromper, mas nesse não? O critério ‘potencial’ por si só não parece ser suficiente também.

Para podermos visualizar melhor as características que o feto possui e sua relevância, é válido compararmos com outros animais. Por exemplo,  é difícil dizer a diferença entre um feto humano e o de um porco 8 semanas após a fecundação. 1  Ainda assim, no Brasil é legal tirar vidas de porcos adultos, mas ilegal tirar a vida de um feto humano de 8 semanas. Até mesmo um blastocisto humano de 14 dias que é do tamanho do pingo deste “i” possui mais direitos que um porco adulto, que é capaz de pensar e sentir. 1 Estamos mesmo usando algum critério consistente ao implementar essas leis? Não entremos na questão do vegetarianismo; questão aqui é a contradição de critérios. Sem contar que, se algum humano sofrer algum dano cerebral grave a ponto de ficar com a atividade cerebral parecida com a de um embrião de 8 semanas, este seria considerado morto e viraria candidato a doação de órgãos! 1

No debate, há muito apelo ao emocional. Muitas pessoas têm mostrado vídeos de fetos abortados e dizendo que eles estão se revirando de dor. À primeira vista e sem conhecimento, realmente são imagens chocantes e parece mesmo que o feto está sofrendo. Porém, na idade em que o feto se encontra nos vídeos, de aproximadamente 3 meses, os movimentos que ele faz são puramente reflexos. 1 Como diz o neurocientista Michael S. Gazzaniga em seu renomado livro The Ethical Brain,  nessa idade o cérebro está num estado tão primitivo que pode ser comparado ao cérebro de uma lesma-do-mar. Na verdade, a maioria dos neurocientistas acredita que o feto só é capaz de sentir dor à partir de pelo menos 20 semanas após a fecundação. 1  Segundo um artigo da Scientific American, suspeita-se também que a possibilidade do feto ter consciência como a conhecemos, emerge entre a 24ª e a 28ª semana de gestação, quando o complexo tálamo-cortical se forma. 2

Apesar de não podermos ter 100% de certeza sobre o feto ser capaz de ter uma consciência a partir do 6º mês de gestação, a probabilidade de ser antes disso é bem baixa, e mesmo se houver, o ambiente intra-uterino induz o feto a um estado inconsciente. 2 O útero oferece baixíssimos níveis de oxigênio (equivalentes ao do topo do Monte Everest) e abastece o feto com várias substâncias neuroinibidoras e sedativas (adenosina; dois anestésicos esteroidais: alopregnanolona e pregnanolona; um hormônio potente: prostaglandina D2). 2 Calcula-se também que, mesmo se o feto estiver em estado avançado de desenvolvimento, ele permanece 95% do tempo em um de dois estados de sono (REM ou sono profundo). 2

Agora vamos às consequências físicas de um aborto. É comum ouvir o argumento de que mães sofrem danos psicológicos pós-aborto, mas não é tão simples assim. Segundo a American Psychological Association, foram examinados vários estudos publicados em jornais científicos de revisão de pares desde 1989, e chegou-se a várias conclusões interessantes. Uma das mais importantes é que foi visto que o risco de danos psicológicos em mulheres com gravidez indesejada que abortaram no primeiro trimestre de gestação é o mesmo das mulheres que deram à luz! 3 O estudo foi feito nos EUA, mas não há razão para ser diferente aqui.

Outro dos argumentos “pró-vida” mais comuns é que se formos legalizar o aborto, pessoas vão parar de usar contraceptivos, já que o aborto é legalizado. Porém, apesar de não haver evidências de que o aborto per se cause danos psicológicos ou outros danos permanentes (se o aborto for feito da maneira correta), há sim efeitos colaterais comuns bem desagradáveis que duram de 2 a 4 semanas, como nausea, vômito, diarréia, dores abdominais e sangramento. 4 Sem contar que é possível que abortos multiplos gerem mais complicações. 4 Não seria muito inteligente alguém preferir isso ao método contraceptivo. Podemos ver um certo reflexo disso numa pesquisa feita pelo instituto Guttmacher, que mostra que o número de pessoas que não usa contraceptivos nos EUA tem diminuído, mesmo que lá o ato seja legalizado. Ou seja, não há uma tendência crescente de se substituir o método contraceptivo pelo aborto. 5  6

Outro estudo do instituto sugere que cerca de 47% das pessoas que abortaram nos Estados Unidos abortaram mais de uma vez num período de 20 anos (de 1973 até 1993, quando o nível se manteve estável). 7 É um número bem grande, mas ainda assim, a maioria das pessoas não aborta de novo, e as que abortam na segunda/terceira vez engravidaram durante o período em que usavam pílulas. Infelizmente, humanos tem a tendência de não usar medicamentos do modo apropriado, mesmo se a vida deles mesmos dependesse disso, como é o caso dos hipertensos, que se estima que apenas 25% dos pacientes tomam os remédios segundo a prescrição médica. 8 Pelo mesmo mecanismo, as chances de se engravidar usando pílulas vão de 0,1% para 10%! 8 Por causa dos efeitos colaterais, que afetam o bem-estar da mulher, e das questões econômicas, é claro que o aborto não é equivalente a um método contraceptivo, então de um jeito ou de outro, é claro que é melhor diminuir os casos de gravidez indesejada. Então o que fazer?

Dados da World Health Organization mostram que os métodos contraceptivos mais eficientes são aqueles em que não há muitos riscos de esquecermos de usar, que é o caso dos Larcs (anticoncepcionais de longa duração).9 O custo? Bom, dependendo do caso, a longo prazo pode sair até mais barato do que as pílulas, então talvez seja algo interessante para o governo investir.

Voltando ao aborto em si… Para muitas pessoas, tirar a vida de um ser é algo imoral. Mas como podemos saber então se o que estamos fazendo é moral? Bom, vejo muito sentido na definição de ‘moral’ que Sam Harris, neurocientista e filósofo, usa em seu livro The Moral Landscape: um ato moral é algo que melhora, ou que mantém um estado de bem-estar dos indivíduos de uma sociedade. Se aplicarmos esse conceito ao julgar a ilegalização do aborto, podemos ver que o bem-estar tanto da mãe, quanto o do futuro filho, e o da sociedade em geral são afetados, principalmente quando a família é de baixa renda.7 Quando elas são obrigadas a continuar a gravidez, por conta da ilegalização do aborto, muitas mulheres precisam parar de estudar, e para piorar, não são qualificadas para empregos com bons salários que poderiam ajudar a sustentar o filho, além de não se sentirem preparadas para educar uma criança.  10 11 12 Já existem estudos mostrando uma correlação de algumas tendencias negativas psicológicas, econômicas e físicas tanto em mães quanto em filhos provenientes de gravidez indesejada. Algumas dessas pesquisas podem ser lidas nos links da bibliografia (10, 11 e 12). É bem provável também que o número de casos de gravidez indesejada esteja causalmente relacionado ao trabalho infantil e ao abandono de crianças.

Outro efeito negativo da ilegalização é que muitas mulheres vão à clínicas clandestinas para abortar, o que aumenta o risco de complicações e até de morte da mãe. Estima-se que, no mundo inteiro, 47 mil mulheres morrem por conta desses abortos em condições inseguras. 13 Só no Brasil, centenas de milhares de pessoas abortam todos os anos independentemente de ser legal ou não (estimativas variam de 100 mil a mais de 1 milhão, por conta da dificuldade em encontrar um multiplicador que determine precisamente o número real). 14 15 * Se um estudo da Unb estiver correto, 50% das mulheres que abortaram ilegalmente em clínicas clandestinas tiveram de ser internadas, sendo que a taxa de internações em países onde o aborto é legal é de 3%.16 * É moral termos uma lei que possa acarretar tantos danos ao bem-estar da sociedade como a lei que impede o aborto?

Obviamente, este texto não é uma apologia ao aborto, já que este é um procedimento muito desagradável para a mãe e custa mais caro do que métodos contraceptivos. Porém, pelo que os estudos mostram, não é o feto quem sofre com o aborto, e sim a mãe, e se a gravidez prosseguir, provavelmente a mãe, o filho e a sociedade vão ter seu bem-estar afetado. Então acredito que faça sentido darmos o direito a mãe dizer se ela está preparada para educar um filho ou não, e se ela não estiver, que se dê o direito de ela abortar. Afinal, tirar esse direito dela e da sociedade, ao meu ver, é onde está a crueldade, e não tirar vidas de seres inconscientes, como fazemos todo dia. O que acham?


UPDATE – Como não abordei muito a questão filosófica ética sobre o assunto, resolvi adicionar alguns argumentos a mais e uns contra-argumentos a algumas críticas feitas ao texto. Estão enumerados nos seguintes tópicos:

1 – A premissa filosófica básica para a abordagem do texto se aproxima mais do ‘utilitarismo preferencial’, que basicamente preza pelo bem-estar e interesses (preferências) de seres conscientes. Para entender melhor essa filosofia, falo um pouco mais sobre no meu texto “Ética sem religião”.

2 – Como o feto nunca experienciou e nunca sentiu nada até pelo menos a 20ª semana de gestação, não há como violar nenhum interesse dele, nem causa-lo dor. Da perspectiva dele, ele nunca existiu – assim como era antes mesmo de o óvulo ser fecundado. A cada segundo, estamos decidindo que uma pessoa não venha a vida – o filho em potencial que você teria se tivesse relações sexuais hoje seria diferente de outro filho em potencial que você teria amanhã, e assim por diante. Deveríamos condenar o ato dessa decisão? Seríamos pessoas ruins ao não nos reproduzirmos na maior parte do tempo, pois estaríamos decidindo que potenciais humanos não existam?

3 – Uma crítica amplamente usada contra o texto é a minha comparação de humanos com animais. Primeiramente, notem que eu comparei um feto humano, que nunca foi capaz de sentir, pensar, nem nada, com animais sencientes e autoconscientes. Em que é baseado o julgamento de que ter genoma humano faz com que ele tenha maior importância do que outros animais, mesmo que esses outros animais sejam capaz de sentir, pensar, ter interesses, sendo que e o humano em questão não? Até agora não vi nenhuma tentativa de justificativa por parte de quem fez essa crítica.

4 – Algumas pessoas usaram a falácia naturalista. Para quem não sabe, é quando a pessoa supõe que se algo é natural, esse algo é bom. Posso citar vários exemplos de coisas naturais que podem fazer mal: inúmeras espécies venenosas de plantas e fungos, asteroides, o instinto da raiva, doenças, egoísmo, etc. Ou seja, o argumento de que “aborto não é algo natural” não quer dizer que seja algo bom ou ruim. Sem contar que muitos desconsideram o fato de que não somos destacados da natureza: somos parte dela.

5 – Um argumento muito usado pelos “pró-vida” é que a mulher deve “responsabilizar-se pelos seus atos”. Porém, alguém deve responsabilizar-se pelos seus atos mesmo quando esses atos não afetam nenhuma outra pessoa, e mesmo quando ela pode fazer algo para conserta-los? Casos com essas mesmas características são doenças como diabetes, hipertensão e AIDs, as quais muitas vezes são causadas por maus hábitos. Devemos proibir o tratamento dessas doenças porque essas pessoas devem responsabilizar-se por seus maus hábitos? Não acho o argumento da responsabilidade importante quando se pode consertar o ato e quando esse ato não afeta ninguém (lembrando que o feto nunca sentiu, nem pensou, nem nunca teve interesses)

6 – Muitos ainda insistem que este texto é uma apologia ao aborto e tendencioso. Respondo que não é apologia ao aborto, pois não incentivo a prática deste como método contraceptivo, pois sei que comparativamente, prevenir é melhor do que remediar. Incentivo, porém, a decisão de quem está sendo atingido pela situação: os pais e o possível filho. Se os pais acharem que não tem boas condições de cuidar do filho e que não estariam em condições de criá-lo, acredito ser o correto abortar. O feto em si, não é afetado com o aborto. E para concluir, foram os fatos e a base filosófica que mencionei antes que me levaram a essa postura abordada no texto, e não ideologias pré-estabelecidas – estou disposto a mudar de opinião frente a novos argumentos, ou refutação das evidências.

Bibliografia

[1] http://www.dana.org/Cerebrum/Default.aspx?id=39141

[2] http://www.scientificamerican.com/article/when-does-consciousness-arise/

[3] http://www.apa.org/pi/women/programs/abortion/index.aspxhttp://americanpregnancy.org/unplanned-pregnancy/abortion-side-effects/

[4] http://americanpregnancy.org/unplanned-pregnancy/abortion-side-effects/

[5] http://www.guttmacher.org/pubs/journals/psrh.46e0414.pdf

[6] http://www.cdc.gov/mmwr/preview/mmwrhtml/ss6311a1.htm?s_cid=ss6311a1_w

[7] https://www.guttmacher.org/pubs/2006/11/21/or29.pdf

[8] http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/01/19/contra-a-gravidez-indesejada/

[9] http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44529/1/9789241501118_eng.pdf

[10] http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/9871381

[11] http://www.brookings.edu/research/papers/2011/07/unintended-pregnancy-thomas-monea

[12] http://www.popcouncil.org/uploads/pdfs/2013STEPUP_AskewIUSSP_UnmetNeed.pdf

[13] http://www.who.int/reproductivehealth/topics/unsafe_abortion/magnitude/en/

[14] http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_252.pdf

[15] http://oglobo.globo.com/brasil/tabu-nas-campanhas-eleitorais-aborto-feito-por-850-mil-mulheres-cada-ano-13981968

[16] http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2013/09/PNA.pdf

Tiago Carneiro

Tiago Carneiro

Um amante da filosofia e da ciência. Me interesso muito na ética, na epistemologia (mais especificamente, na justificação), na filosofia da ciência, e na ciência em geral (psicologia, ciências sociais e astronomia, principalmente). No momento, estou cursando filosofia na UFRJ, e me especializando em epistemologia.