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Os anjos bons da nossa natureza – Resenha Crítica

O nosso Pálido Ponto Azul, como foi a Terra apelidada por Carl Sagan, se transformou em um lugar pior do que era séculos atrás? Se antenarmos a nossa televisão nos jornais policiescos, veremos matérias de crimes como homicídios cruentos, estupros e extorsões mediante sequestro. O sangue de vidas inocentes, que todos o dias escorre pelos noticiários, nos dá a sensação de que o mundo é um péssimo lugar para quem almeja a paz. Steven Pinker, psicólogo evolucionista de destaque na ciência contemporânea e diretor do Centro de Neurociência Cognitiva do MIT, defende em seu livro Os anjos bons da nossa natureza que a atual geração, desde a queda do Muro de Berlim, tornou-se a mais pacífica da história da humanidade.

A ideia parece conclusivamente absurda, mas, por trás das nossas percepções superficiais sobre a violência, existe um coquetel de sensacionalismo midiático, ignorância científica e histórica. Ou seja, uma visão de mundo baseada no que a televisão informa é, de modo geral, um engodo. Se julgamos o Brasil ou todo o planeta como um purgatório infestado de demônios e “hitleres”, é porque as cenas de crimes de sangue são mais difíceis de apagar da memória. A criança estuprada e esquartejada pelo padrasto cria em nós uma perplexidade explosiva e, por mais execrável que esse ato de brutalidade seja, em um planeta habitado por 7 bilhões de pessoas, são pouquíssimas as que teriam disposição neurológica ou moral para praticá-lo ou sequer aprová-lo. No âmbito psicológico, o que pensamos sobre a violência é constituído por um senso comum incompatível com as estatísticas.

Qualquer pessoa se sentiria capaz de rechaçar a tese de um mundo menos conflituoso invocando as Grandes Guerras Mundiais, que afogaram o século XX em um mar de cadáveres, o Holocausto nazista em toda a sua crueldade sem precedentes, ou somente afirmando o que nossos pais e avós não cansam de repetir: “No meu tempo, as coisas eram melhores”. Decerto, as experiências pessoais de quem nasceu na década de 40 possuem o seu valor, mas, para pendurar as pesquisas de Steven Pinker no mural da vergonha acadêmica, precisaríamos de informações mais sofisticadas e filtradas pelo rigor científico. Os anjos bons da nossa natureza é a obra que desvenda a história da violência em meio ao universo humano.

Começando pela Idade da Pedra, quando nossos ancestrais praticavam a arte rupestre, as medidas mais recorrentes para solucionar problemas entre tribos rivais e conflitos entre indivíduos não eram a diplomacia ou o diálogo. Aquele que empunhasse um porrete e rachasse o crânio do seu oponente venceria o debate. Ao menos é isso o que os pesquisadores e antropólogos constataram em perícias de ossadas humanas encontradas na África e em outros locais primitivos, a maioria delas relacionadas a mortes violentas. Nessa época, as chances de alguém ser vítima de um crime sangrento eram extremamente maiores do que as chances atuais. Para medir essa probabilidade, Pinker utiliza uma fórmula tradicional que calcula quantas pessoas, em cem mil, morreram por razões violentas no período de um ano. Isso põe em xeque a compreensão que temos da humanidade em seu estado natural, contrariando o caráter rousseauniano da nossa espécie, embora nem tudo se resuma à máxima hobessiana de que o homem é o lobo do homem.

Mas a ideia central do livro está posta: apesar de não existir uma garantia da paz, a violência está diminuindo em todo o mundo, e mais rápido ainda nas regiões onde a democracia, a diplomacia e o comércio encontraram solo fértil para assentar suas raízes. Hoje, por exemplo, são raras as pessoas que apreciam um espetáculo de tortura de hereges, bruxas, indígenas e homossexuais. A escravidão, de algo sancionado pelo cristianismo medieval e pelas monarquias absolutistas, passou a ser condenada por todas as pessoas dotadas de um pingo de civilidade. Maridos não mais podem tratar suas esposas como bonecas infláveis, espancando-as em troca de sexo compulsório sob o amparo da lei, tampouco podem surrar os próprios filhos alegando o pretexto do castigo. Ditaduras e autocracias foram fraturadas e substituídas por repúblicas democráticas que, embora em sua imperfeição, ainda são alternativas melhores do que o retorno indesejável de reis e imperadores napoleônicos. E mesmo que a tecnologia tenha nos dado o poder da destruição global, nem as Grandes Guerras Mundiais foram piores que certas guerras do passado.

Os números apontados no livro levam em conta a população de cada época tomada como objeto de estudo, descobrindo-se que, caso a Segunda Guerra Mundial ocorresse com a mesma taxa de homicídios das guerras tribais entre caçadores-coletores, o massacre que veríamos seria não de 15 ou 30 milhões de mortes, mas sim de, proporcionalmente, 2 bilhões de mortes, ou mais. Isto porque, se morreram mais pessoas no século XX, é porque o contingente demográfico era mais elevado. O mesmo cálculo é utilizado para responder a seguinte questão: quais as chances de você sofrer uma agressão no século XXI e no século XII? Estatisticamente, agradeça por ter nascido nesta época, e não em outra.

Muita coisa mudou e, em cada canto onde os nossos olhos podem ver, há uma transição notável da barbárie entre grandes Estados, com suas ameaças de dinamitar o mundo com bombas nucleares, para a diplomacia e soluções pacíficas, envolvendo, inclusive, o surgimento de entidades internacionais, como a ONU e seus diversos setores.

O cardápio de atos cruéis realizados por seres humanos é quase infindável. Poderíamos elaborar uma longa lista de épocas, lugares e situações onde o predomínio da maldade se edificou, como no terrorismo das potências ocidentais contra o Oriente Médio e vice-versa. No entanto, na maioria desses espaços houve um processo de pacificação e de civilização que tirou as pessoas do belicismo e deu-lhes mais paciência e educação. Entre os impulsos que colocam o ser humano no caminho da truculência, destacam-se a predção, a dominação, a vingança, o sadismo e ideologias controladas por facínoras; e, em sentido oposto, temos o autocontrole, os tabus e a moralidade, o senso de justiça e a empatia, que inibem nossas tendências à agressão desenfreada. Cada um desses elementos, ora ocultos e ora arreganhados, formam uma mistura que nos aproxima, passo a passo, de uma definição para a natureza humana.

Existe também uma soma de outros fatores que empurram para baixo os índices de violência: a divulgação científica, a alfabetização, a revolução histórica dos direitos humanos, e também o feminismo, o comércio internacional, o contato com diferentes culturas e o movimento dos direitos dos animais são exemplos substanciais. Tal como foi estudado, mulheres mais participativas na política, quando começaram a reivindicar um tratamento mais justo, contribuíram com o advento de sociedades menos turbulentas. O desconforto de muitos críticos começa a borbulhar quando somos forçados a encarar os números relacionados à religião, e descobrimos que ela, seja qual for, nem de longe pode ser tratada como um forte redutor da violência mundial.

Ainda é cedo para fazer prognósticos, mas podemos dar como certo que, ainda que o fantasma da insegurança assombre a nossa vida, o mundo é um lugar menos hostil para se viver. Não é o ideal, porém já foi muito pior nas eras em que povos inteiros eram esmagados em batalhas e mulheres tomadas como espólio de guerra. O lado ruim é que a violência pode perdurar até o último capítulo da nossa história; o lado bom, entretanto, é que  bilhões de pessoas estão cada vez mais inclinadas à paz, e não à guerra. Saiba de que lado você quer estar.

Ricardo Silas

Ricardo Silas

Estudante de História (UFRB), 25 anos.