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Os humanos têm o kit de ferramentas biológicas para desenvolver saliva venenosa, revela estudo

Por Stephanie Pappas
Publicado na Live Science

Os humanos poderiam desenvolver veneno? É altamente improvável que as pessoas se juntem a cascavéis e ornitorrincos na lista de animais peçonhentos, mas uma nova pesquisa revela que os humanos têm o kit de ferramentas para produzir veneno – na verdade, todos os répteis e mamíferos têm.

Essa coleção de genes flexíveis, particularmente associados às glândulas salivares em humanos, explica como o veneno evoluiu independentemente de ancestrais não-venenosos mais de 100 vezes no reino animal.

“Essencialmente, temos todos os blocos de construção no lugar”, disse o coautor do estudo Agneesh Barua, estudante de doutorado em genética evolutiva no Instituto de Ciência e Tecnologia de Okinawa, no Japão. “Agora cabe à evolução nos levar até lá”.

O veneno oral é comum em todo o reino animal, presente em criaturas tão diversas como aranhas, cobras e lóris-lentos, a única espécie venenosa conhecida de primatas. Os biólogos sabiam que as glândulas de veneno oral são glândulas salivares modificadas, mas a nova pesquisa revela a mecânica molecular por trás dessa modificação.

“Será um verdadeiro marco na área”, disse Bryan Fry, bioquímico e especialista em veneno da Universidade de Queensland, na Austrália, que não esteve envolvido na pesquisa. “Eles fizeram um trabalho absolutamente sensacional em alguns estudos extraordinariamente complexos”.

Uma arma flexível

O veneno é o exemplo definitivo da flexibilidade da natureza. Muitas das toxinas de veneno são comuns em animais muito diferentes; alguns componentes do veneno de lacraia, por exemplo, também são encontrados no veneno de cobra, disse Ronald Jenner, um pesquisador de veneno do Museu de História Natural de Londres que não esteve envolvido na pesquisa.

O novo estudo não se concentra nas próprias toxinas, já que elas evoluem rapidamente e são uma mistura complexa de compostos, disse Barua ao Live Science.

Em vez disso, Barua e o coautor do estudo Alexander Mikheyev, biólogo evolutivo da Universidade Nacional da Austrália, foca nos chamados genes “domésticos”, os genes que estão associados ao veneno, mas não são responsáveis ​​pela criação das toxinas. Esses genes reguladores formam a base de todo o sistema de veneno.

Os pesquisadores começaram com o genoma da habu de Taiwan (Trimeresurus mucrosquamatus), uma víbora marrom que é bem estudada, em parte por ser uma espécie invasora em Okinawa.

“Uma vez que conhecemos a função de todos os genes que estavam presentes no animal, pudemos ver a quais os genes do veneno estão associados”, disse Barua.

A equipe encontrou uma constelação de genes que são comuns em vários tecidos do corpo em todos os amniotas. (Amniotas são animais que fertilizam seus ovos internamente ou colocam ovos na terra; eles incluem répteis, pássaros e alguns mamíferos.)

Muitos desses genes estão envolvidos no enovelamento de proteínas, disse Barua, o que faz sentido, porque os animais peçonhentos devem fabricar uma grande quantidade de toxinas, que são feitas de proteínas.

“Um tecido como esse realmente precisa ter certeza de que a proteína que está produzindo é de alta qualidade”, disse ele.

Não é novidade que os mesmos tipos de genes reguladores domésticos são encontrados em abundância na glândula salivar humana, que também produz um importante ensopado de proteínas – encontradas na saliva – em grandes quantidades. Essa base genética é o que permite a grande variedade de venenos desenvolvidos de forma independente em todo o reino animal.

Os pesquisadores estudaram o genoma da habu de Taiwan, uma víbora marrom venenosa. Crédito: Alexander Mikheyev.

De não-venenoso a venenoso

Em outras palavras, todo mamífero ou réptil tem a estrutura genética sobre a qual um sistema de veneno oral é construído. E os humanos (junto com os camundongos) também já produzem uma proteína-chave usada em muitos sistemas de veneno. As calicreínas, proteínas que digerem outras proteínas, são secretadas na saliva; elas também são uma parte essencial de muitos venenos.

Isso porque as calicreínas são proteínas muito estáveis, disse Fry, e elas simplesmente não param de funcionar quando submetidas à mutação. Portanto, é fácil obter mutações benéficas das calicreínas que tornam o veneno mais doloroso e mais mortal (um dos efeitos das calicreínas é uma queda abrupta da pressão arterial).

“Não é coincidência que a calicreína seja o tipo de componente mais amplamente secretado em venenos de todo o reino animal, porque de qualquer forma, é uma enzima muito ativa e ela passa a fazer alguns estragos”, disse Fry.

Calicreínas são, portanto, um ponto de partida natural para humanos teoricamente venenosos.

Se depois de todo o caos que vimos em 2020, brincou Barua, “as pessoas precisarem ser venenosas para sobreviver, poderemos começar a observar doses crescentes de calicreína”.

Mas isso não é tão provável – a menos que as estratégias atualmente bem-sucedidas dos humanos de adquirir comida e escolher parceiros comecem a falhar. O veneno mais comumente evolui como um método de defesa ou como uma forma de subjugar a presa, disse Jenner ao Live Science. O tipo exato de veneno que evolui depende muito de como o animal vive.

A evolução pode essencialmente adaptar o veneno às necessidades de um animal por meio da seleção natural, disse Fry.

Existem algumas cobras do deserto, por exemplo, que possuem venenos diferentes apesar de serem da mesma espécie, pois são adaptadas para o local onde vivem: no solo do deserto, onde as cobras caçam principalmente camundongos, o veneno atua principalmente no sistema circulatório, porque não é difícil para uma cobra rastrear um camundongo errante em uma curta distância num terreno plano. Nas montanhas rochosas próximas, onde as cobras caçam principalmente lagartos, o veneno é uma neurotoxina potente, porque se a presa não for imediatamente imobilizada, ela pode facilmente entrar em uma fenda e desaparecer para sempre.

Alguns mamíferos têm veneno. Os morcegos-vampiros, que possuem uma saliva tóxica que impede a formação de coágulos sanguíneos, usam sua arma química para se alimentar de feridas de maneira mais eficaz. Musaranhos peçonhentos e solenodontes parecidos com musaranhos (pequenos mamíferos escavadores) podem superar sua classe de peso usando seu veneno para subjugar presas maiores que poderiam facilmente matá-los.

Os musaranhos às vezes usam seu veneno para paralisar presas (normalmente insetos e outros invertebrados) e armazená-las, servindo de lanchinho posterior. Enquanto isso, os ornitorrincos, que não têm uma mordida venenosa, mas têm um esporão venenoso nas patas traseiras, usam seu veneno principalmente em brigas com outros ornitorrincos por parceiros ou território, disse Jenner.

Os humanos, é claro, inventaram ferramentas, armas e estruturas sociais que realizam a maioria dessas tarefas sem a necessidade de presas venenosas. E o veneno também custa caro, disse Fry. Construir e enovelar todas essas proteínas consome energia. Por esse motivo, o veneno se perde facilmente quando não é usado.

Existem espécies de cobras marinhas, disse Fry, que têm glândulas de veneno vestigiais, mas não são mais venenosas, porque elas deixaram de se alimentar de peixes para se alimentar de ovos de peixe, que não requerem uma mordida tóxica.

A nova pesquisa pode não levantar muitas esperanças de novos superpoderes para os humanos, mas compreender a genética por trás do controle do veneno pode ser fundamental para a medicina, acrescentou Fry.

Se o cérebro de uma cobra começasse a expressar os genes que são expressos por suas glândulas de veneno, a cobra morreria imediatamente de autotoxicidade. Aprender como os genes controlam a expressão em diferentes tecidos pode ser útil para compreender doenças como o câncer, que causa danos e morte em grande parte porque os tecidos começam a crescer descontroladamente e a secretar produtos em locais do corpo onde não deveriam.

“A importância deste estudo vai além deste campo de estudo, porque fornece uma plataforma inicial para todos esses tipos de questões interessantes”, disse Fry.

A pesquisa foi publicada online na segunda-feira (29 de março) na Proceedings of the National Academy of Sciences.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.