Muitas pessoas argumentaram que a dissertação de mestrado que critiquei em meu último texto tinha o seu valor, e que nós apenas não percebemos o valor porque ou 1) não somos da área ou 2) seu valor ainda não foi achado ou totalmente compreendido.
A esperança dessas pessoas é que possamos estar “diante de um novo gênio”, alguém que “fuja dos padrões criticando o sistema que nos é imposto”, ou algo parecido, esperança esta que se baseia num suposto rigor por parte da banca avaliadora da área em que a dissertação-artística-e-nada-ou-pouco-científica foi aprovada, especialmente porque há “amplo rigor” por parte desses acadêmicos e inclusive há “revisão por pares”.
O que esquecem, porém, é que uma revisão por pares que dá ampla margem para anarquismo epistemológico e subjetivismo de qualquer tipo, desde que faça críticas à “normose científica”, é pouco válida em termos de objetividade. Basta tomarmos como exemplo o recente “retorno de Sokal”, em que os filósofos Peter Borghossian e o matemático James Lindsay colocam o “pênis como causa das mudanças climáticas“, em uma publicação intencionalmente fraudulenta publicada na revista Cogent Social Sciences, famosa por aplicar revisão por pares na área, sendo uma revista de estudos de gênero.
Se a base para aceitarmos potencial valor em algo, e nesse sentido defendermos seu financiamento público, se dá em termos de que esse algo seja incompreendido, devemos todos aceitar que o recente caso do desaparecimento do jovem Bruno Borges, acreano que deixou 14 livros codificados escritos à mão, junto à estátua do filósofo renascentista Giordano Bruno em seu quarto com milhares de mensagens por todas as paredes, é um caso potencialmente grandioso, que possivelmente cumprirá o que se propõe (“mudar a humanidade”), mesmo que princípios científicos de análise da realidade, como a navalha de ockham, digam que é mais possível, além de preferível aceitar, que todo esse grandioso trabalho seja um grande hoax do blogueiro Cid, do site de humor Não Salvo, dado seu histórico comprovado e grandioso de intervenções humorísticas.
Mas embora a crítica de que não sejamos da área seja acertada, e por isso é possível que erremos em nossos julgamentos, ainda assim não quer dizer que estamos menos certos apenas por não termos uma credencial que nos autorize a dar opiniões especializadas. O mérito da crítica independe de credenciais e de créditos que tenhamos com nossos pares, e qualquer epistemólogo deve de saber disso.
Nesse sentido resta a preocupação com o segundo ponto levantado, de que (ainda) não achamos o real valor da “obra” criada, a recentemente famosa dissertação ‘esquizoanalítica‘ de um agora mestre em educação pela UFJF.
Discuti amplamente sobre o assunto com alguns que levantaram a importância de “deixarmos o tempo falar” ou de que “devemos interpretar a dissertação em seus meandros para descobrirmos o seu real valor”, e aqui vão minhas considerações.
Por mais incrível que algo pareça, dado que o acontecimento sobressai-se comparado aos eventos de nosso cotidiano, chamando nossa atenção, é justamente pelo fator da sua incompreensão que pouco podemos afirmar sobre o mérito de sua obra. Alguns podem alegar que, pelo mesmo motivo, pouco podemos afirmar sobre o desmérito de sua obra, e por isso sustentam um “ceticismo otimista até prova em contrário”. O que ocorre, no entanto, é que eventos questionadores como o mictório de Marcel Duchamp, posto em uma galeria de arte como forma de romper com as expectativas e causar espanto, são históricos na medida em que são raros, e sua raridade dialoga diretamente com o tipo de agência que é empregada na sua construção. Duchamp, como bem sabemos, foi um artista, e o que fez foi arte. Tarcísio, nosso mestre em educação aqui criticado, pode bem ter suas vinculações artísticas, amar a encenação da vida e os dramas que nos acometem, mas foge de tal forma da proposição de sua agência, que é o fazer científico da Educação, que a máxima consideração a ser feita é que sua criação é, sim, arte, mas que não é científica. Pode-se invocar as mudanças paradigmáticas de Thomas Kuhn, criticando os consensos da comunidade científica, ou o anarquismo epistemológico de Paul Feyerabend para defendê-lo, mas suspeita-se do porquê nem filósofos da ciência ousaram tanto em suas próprias criações.
Como diz o filósofo e físico Mario Bunge:
“Se tomamos a sério o anarquismo epistemológico (“tudo vale”), não seríamos superiores a nossos rivais. Mas nenhum pensador o tomou a sério, pois isso equivale a dizer que o “jogo” intelectual não tem regras. Todo mundo poderia dizer com segurança o que desejaríamos, que as evidências empíricas não contariam e, acima de tudo, que a lógica não contaria; de modo que teríamos de tolerar a contradição non sequitur. Ou seja, o ser humano seria indistinguível pela racionalidade.”
Nesse sentido, a posição correta a ser empregada sobre o caso, ao que me parece, não é a do “ceticismo esperançoso ou otimista”, que eu mesmo apliquei sobre o caso de Bruno Borges, adorando a ideia de que tantas promessas poderiam ser positivas para a humanidade. O correto a fazer, me parece, é o emprego do principio do ônus da prova, que coloca como obrigação do indivíduo, em uma disputa epistêmica, o fornecimento de garantias suficientes para sustentar a sua posição (“o ônus da prova é do acusador/de quem alega”). Especialmente porque a função de um trabalho acadêmico é informar ao público as ideias do pesquisador, e não fazer com que o público se debruce em interpretações para descobrir algum valor no meio da confusão intencionalmente criada.
Nesse sentido um ceticismo mais próximo do bem acertado sobre casos em que temos incerteza sobre a relevância de um trabalho acadêmico, especialmente quando envolvem financiamentos públicos, seria um ceticismo pessimista, que “reaja negativamente até prova em contrário”, na medida em que cabe ao defensor de tais ideias confusas provar por que elas são relevantes e merecem algum crédito.
Vale destacar, aqui, um trecho de um artigo da filósofa americana Martha Nussbaum, sobre “A Moda do Derrotismo em Judith Butler“, que faz bastante alusão ao fato de tantas pessoas depositarem, esperançosamente, algum valor em trabalhos confusos e com linguagem complexa demais para serem objetivados:
“[…] a obscuridade cria uma aura de importância. E também serve para outro propósito relacionado. Intimida o leitor a admitir que, já que ninguém consegue compreender o que está se passando, então deve haver algo significativo acontecendo, alguma complexidade de pensamento, onde, na realidade, há noções familiares ou até surradas sendo muitas vezes tratadas de um modo simplório e casual demais para adicionar qualquer nova dimensão de entendimento. Quando os leitores intimidados pela obra de Butler reunirem a ousadia para pensar assim, eles verão que as ideias desses livros são magras. Quando as noções de Butler são demonstradas de forma clara e sucinta, percebe-se que, sem mais distinções e argumentos adicionais, elas não vão longe nem são especialmente novas. Assim, a obscuridade preenche o vácuo deixado pela ausência de uma complexidade real de pensamento e argumento.”
Outros autores, além do próprio Peter Borghossian, fazem referências ao obscurantismo acadêmico que credita vozes aleatórias desde que sirvam a propósitos ideológicos, como Helen Pluckrose, em seu ensaio sobre pós-modernismo e seus impactos:
“(…) a ciência como uma metodologia não está indo a lugar algum. Ela não pode ser “adaptada” para incluir o relativismo e “saberes alternativos”. Pode, no entanto, perder a confiança do público, e assim o financiamento estatal – e isso não é uma ameaça que deve ser subestimada. Ademais, numa época em que os líderes mundiais duvidam da mudança climática, os pais acreditam em falsas afirmações sobre vacinas causarem autismo e as pessoas se voltam para homeopatas e naturopatas como soluções para doenças graves, é perigoso num nível de ameaça à nossa existência destruir ainda mais a confiança das pessoas nas ciências empíricas.”
O que vemos na dissertação de mestrado aqui referenciada, no entanto, é justamente uma constante menção à ciência como algo a ser relativizado, desde seus questionamentos durante o texto até o seu próprio “método” (supondo que há algum) empregado na escrita. Como podemos ver nos trechos abaixo:
“Desconfio da eficácia do método científico e não tenho dúvidas a respeito de seus objetivos. Afinal, que ciência?”
“Devemos lembrar somente que não existe esta neutralidade científica.”
“Se já não somos científicos, pois não atendemos aos desejos dogmáticos de uma ciência muitas vezes aliciada ou alucinada por conceitos filosóficos, que nos resta? Quando nada resta, resta ainda o corpo.”
Entre outros trechos, vemos uma forte preocupação para com o método científico, objeto de desconfiança na medida em que, pelo que dá a entender o autor, tenta alocar a realidade para sua análise e compreensão. Essa preocupação vem de modo tão ardente que, nas palavras do próprio autor, há na UFJF “um movimento por parte dos cursos humanos em negar a submissão de seus projetos ao Conselho de Ética da instituição formado e regrado hegemonicamente por pesquisadores das ditas Ciências Exatas e Biomédicas, pouquíssimo Humanas.”
Essa afirmação demonstra uma tendência acadêmica, por parte desses profissionais das Ciências Humanas, em se afastar não apenas do método científico, como também se afastar da própria nomenclatura “Ciências Humanas”, dado a auto-imposta ânsia por combater a “necessidade de afirmar o valor científico de tais áreas”. Sem falar, claro, da consequente desmoralização dos próprios trabalhos na medida em que relativiza-se a importância de conselhos de ética.
O que vemos, no geral, é uma tendência anti-científica, que não busca reavaliar a ciência para melhorá-la mas, antes, deseja correr para fora dela, se aproximando apenas dos aspectos sensitivos da vida, do conhecimento por contato que é o próprio corpo (hipervalorizado em teorias estruturalistas/pós-modernas).
Independente das intenções, esta tendência – que relativiza o que há de mais objetivo nos seres humanos e, portanto, mais fielmente dialoga com a realidade – é perigosa, parece servir apenas a vieses de confirmação e pouco parece preocupada em progresso real, adaptado às urgentes necessidades de um mundo mais justo e capaz de contemplar o que há de melhor na humanidade – como a própria ciência, fruto de nossa capacidade para ir além.
Esta tendência, que cria exércitos de pessoas complacentes a “ideologias da moda”, apenas busca correr da ciência, descreditá-la de confiança, apontá-la como dogmática, alucinada e parcial, evidenciando não apenas um apreço pelo anarquismo epistemológico mas, sobretudo, um desprezo pelo rigor e pelas dificuldades que um cientista precisa superar para que seus títulos sejam fruto de seu mérito e dignidade.
Escrito por Alysson Augusto em 22 de maio de 2017.