Traduzido por Julio Batista
Original de Jessica Wang para a The Conversation
Em 1855, o Brooklyn Daily Eagle noticiou o horrível assassinato de uma noiva por seu novo marido. A história veio do interior da França, onde os pais da mulher haviam inicialmente impedido o noivado do casal “por causa da estranheza da conduta, às vezes, observada no jovem”, embora ele “fora isso fosse um bom partido”.
Os pais finalmente consentiram e o casamento aconteceu. Pouco depois dos recém-casados passarem a lua-de-mel, “gritos de medo” vieram de seus aposentos. As pessoas chegaram rapidamente encontrando “a pobre moça… agonizando na morte – com um de seus seios rasgado e dilacerado da maneira mais horrível, e o miserável marido em um ataque de loucura delirante e coberto de sangue, tendo de fato devorado uma parte do seio da infeliz moça.”
A noiva morreu pouco tempo depois. Seu marido, depois de “uma resistência muito violenta”, também faleceu.
O que poderia ter causado esse terrível incidente? “Foi então lembrado, em resposta a perguntas minuciosas de um médico”, que o noivo havia “sido mordido por um cachorro estranho”. A passagem da raiva de cachorro para humano parecia ser a única razão possível para a terrível reviravolta nos acontecimentos.
O Eagle descreveu o episódio com naturalidade como “um caso triste e angustiante de hidrofobia” ou, na linguagem de hoje, raiva.
Mas o relato parecia uma história de terror gótica. Era essencialmente uma narrativa de lobisomem: a mordida do cachorro louco causou uma metamorfose hedionda, que transformou sua vítima humana em um monstro nefasto cujos impulsos sexuais perversos levaram a uma violência obscena e repugnante.
Meu novo livro, “Mad Dogs and Other New Yorkers: Rabies, Medicine, and Society in an American Metropolis, 1840-1920”, explora os significados ocultos por trás das formas como as pessoas lidam com a raiva. Variantes da história do noivo raivoso foram contadas e recontadas em jornais de língua inglesa na América do Norte desde pelo menos o início do século 18, e continuaram a aparecer até a década de 1890.
O relato do Eagle era, em essência, um conto popular sobre cães raivosos e a tênue linha divisória entre humanos e animais selvagens. A raiva criava medo porque era uma doença que parecia capaz de transformar as pessoas em feras furiosas.
Uma doença terrível e fatal
O historiador Eugen Weber certa vez observou que os camponeses franceses do século 19 temiam “acima de tudo lobos, cães raivosos e incêndios [que devastavam suas colheitas]”. A loucura canina – ou a doença que conhecemos hoje como raiva – evocou os terrores selvagens que formaram pesadelos durante séculos.
Outras doenças infecciosas – incluindo cólera, febre tifoide e difteria – mataram muito mais pessoas no século XIX e início do século XX. O grito de “cachorro louco!” no entanto, provocou uma sensação imediata de terror, porque uma simples mordida de cachorro pode significar uma provação prolongada de sintomas extenuantes, seguidos de morte certa.
A medicina moderna sabe que a raiva é causada por um vírus. Uma vez que entra no corpo, viaja para o cérebro através do sistema nervoso. O atraso típico de semanas ou meses entre a exposição inicial e o início dos sintomas significa que a raiva não é mais uma sentença de morte se um paciente receber rapidamente injeções de anticorpos imunológicos e vacina, a fim de construir imunidade logo após encontrar um animal suspeito. Embora seja raro as pessoas morrerem de raiva nos Estados Unidos, a doença ainda mata dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo todos os anos.
De acordo com fontes do século XIX, após um período de incubação de quatro a 12 semanas, os sintomas podem começar com uma vaga sensação de agitação ou inquietação. Eles então progrediram para os episódios espasmódicos característicos da raiva, juntamente com insônia, excitabilidade, febre, pulso rápido, salivação e dificuldades na respiração. As vítimas frequentemente exibiam alucinações ou outras perturbações mentais também.
Esforços para mitigar surtos violentos com medicamentos muitas vezes falhavam, e os médicos podiam fazer pouco mais do que ficar parados e testemunhar. O resultado final disso se dava apenas depois que a doença seguia seu curso inevitavelmente fatal, geralmente durante um período de dois a quatro dias. Ainda hoje, a raiva permanece essencialmente incurável uma vez que os sinais clínicos aparecem.
Séculos atrás, a perda do controle corporal e da racionalidade desencadeada pela raiva parecia ir contra a humanidade básica das vítimas. De uma terrível doença transmitida por animais surgiram visões assustadoras de forças sobrenaturais que transferiam poderes de animais malévolos e transformavam pessoas em monstros.
Mordidas que transformam pessoas em animais
Os relatos estadunidenses do século XIX nunca invocavam o sobrenatural diretamente. Mas as descrições dos sintomas indicavam suposições tácitas sobre como a doença transmitia a essência do animal para o sofrimento humano.
Os jornais frequentemente descreviam aqueles que contraíam raiva por mordidas de cachorro como selvagens latindo e rosnando como cachorros, enquanto as vítimas de mordidas de felinos se coçavam, cuspiam e sibilavam. Alucinações, espasmos respiratórios e convulsões descontroladas produziam impressões assustadoras da marca maligna do animal raivoso.
As medidas preventivas tradicionais também mostraram como os estadunidenses silenciosamente marcaram uma fronteira tênue entre a humanidade e a animalidade. Os remédios populares sustentavam que as vítimas de mordida de cachorro poderiam se proteger da raiva matando o cachorro que já as havia mordido, colocando o pelo do cachorro agressor na ferida ou cortando seu rabo.
Tais medidas preventivas implicavam a necessidade de cortar um laço invisível e sobrenatural entre um animal perigoso e sua presa humana.
Às vezes, a doença deixava vestígios sinistros. Quando um morador do Brooklyn morreu de raiva em 1886, o New York Herald registrou uma ocorrência bizarra: poucos minutos após o último suspiro do homem, “o círculo azulado em sua mão – a marca da mordida fatal do cachorro terra-nova… desapareceu”. Para eles, só a morte quebrou o domínio pernicioso do cão raivoso.
As origens dos vampiros em cães raivosos
É possível que, junto com os lobisomens, as histórias de vampiros também tenham se originado da raiva.
O médico Juan Gómez-Alonso apontou uma correlação entre vampirismo e raiva nos sintomas sinistros da doença – os sons distorcidos, aparências faciais exageradas, inquietação e, às vezes, comportamentos selvagens e agressivos que faziam os sofredores parecerem mais monstruosos do que humanos.
A hipersensibilidade extrema a estímulos, que desencadeiam os tortuosos episódios espasmódicos associados à raiva, pode ter um efeito particularmente estranho. Uma olhada no espelho pode desencadear uma reação violenta, em um paralelo arrepiante com a incapacidade do vampiro morto-vivo de projetar um reflexo.
Além disso, em diferentes tradições folclóricas da Europa Oriental, os vampiros não se transformavam em morcegos, mas em lobos ou cães, os principais vetores da raiva.
Então, enquanto aspirantes a lobisomens, vampiros e outras assombrações saem às ruas no Halloween, lembre-se de que, por trás do ritual anual de doces e diversão fantasiada, estão os períodos mais sombrios da imaginação. Aqui os animais selvagens, a doença e o medo se misturam, e os monstros se materializam no cruzamento entre a animalidade e a humanidade.