Traduzido por Julio Batista
Original de David Nield para o ScienceAlert
Um estudo recém-publicado redescobriu um dos casos mais singulares e estranhos de lesão cerebral da história: o caso do paciente M, que, após levar um tiro na cabeça em 1938 durante a Guerra Civil Espanhola, acordou vendo o mundo ao contrário.
Para o paciente M, pessoas e objetos pareciam vir do lado oposto de onde realmente estavam, algo que também se estendia à audição e ao tato.
Ele podia ler letras e números impressos normalmente e de trás para a frente, sem que seu cérebro fosse capaz de ver qualquer diferença entre os dois.
O mundo também às vezes parecia estar de cabeça para baixo para o paciente M, assim como ao contrário: ele ficaria confuso com homens trabalhando de cabeça para baixo em andaimes, por exemplo.
O paciente M também foi capaz de ver as horas em um relógio de pulso de qualquer ângulo.
É um conjunto de sintomas verdadeiramente bizarro, mas havia outros também. Eles incluíam ver cores descoladas de seus objetos, objetos aparecendo triplicados e daltonismo.
No entanto, é relatado que o paciente M lidou com tudo isso com bastante calma.
O paciente M foi estudado por quase 50 anos pelo neurocientista espanhol Justo Gonzalo, e sua análise levou a uma mudança significativa na forma como vemos o cérebro – não sendo nem de longe a única vez que uma lesão estranha ajudou os cientistas a entender melhor o cérebro.
Durante a década de 1940, Gonzalo propôs que o cérebro não era uma coleção de seções distintas, mas tinha suas várias funções distribuídas em gradientes pelo órgão – uma ideia que ia contra a sabedoria convencional da época.
“O cérebro era visto como caixinhas”, disse ao El País o neuropsicólogo Alberto García Molina, do Institut Guttmann, na Espanha .
“Quando você alterava uma caixa, supostamente havia um déficit concreto. Para o Dr. Gonzalo, as teorias modulares não conseguiam explicar as questões que surgiam com o paciente M, então ele começou a criar sua teoria da dinâmica cerebral, rompendo com a visão hegemônica sobre como o cérebro funciona.”
Ao estudar o paciente M e outros com lesões cerebrais, Gonzalo propôs que os efeitos do dano cerebral dependiam do tamanho e da posição da lesão.
Ele também mostrou que essas lesões não destroem funções específicas, mas afetam o equilíbrio de uma variedade de funções – como foi o caso do paciente M.
Gonzalo identificou três síndromes: central (interrupções em vários sentidos), paracentral (que é como a central, mas com efeitos que não são distribuídos uniformemente) e marginal (afetando vias cerebrais para sentidos específicos).
Foi um trabalho pioneiro baseado em um caso incrível, mas não é tão conhecido quanto deveria ser – e agora a filha de Gonzalo, Isabel Gonzalo-Fonrodona, trabalhou com García Molina no novo paper, abordando a pesquisa envolvendo o paciente M.
Como diz o estudo, estudos de caso único nos ensinaram sobre a função cerebral por centenas de anos, fornecendo uma fonte alternativa valiosa de evidência científica para as meta-análises e grandes ensaios clínicos de hoje.
O fato de que ideais sobre o cérebro semelhantes às de Gonzalo permanecem proeminentes é evidência de que ele estava certo em sua interpretação dos ferimentos e da visão invertida do paciente M.
A pesquisa foi publicada na revista Neurologia.