Publicado na Nature
Traduzido por Caio Cavalcante
Duas décadas atrás, a Nature escreveu um artigo avisando cientistas sobre o que poderia acontecer com seus computadores quando o novo milênio chegasse. Claro, as preocupações sobre aeronaves caindo dos céus quando os relógios digitais marcassem 1 de Janeiro de 2000 foram provadas injustificadas, e a frase “lembrem-se do bug do milênio” virou um argumento popular para inação perante alguma preocupação crescente.
A frase está sendo utilizada novamente — por defensores de uma moção controversa para alterar como os Estados Unidos governam o uso de Internet. Previsões pessimistas de uma Internet de duas camadas vulnerável à censura, segundo zombam os defensores, são muito exageradas. Esqueça o bug do milênio. Agora, o fim da ‘neutralidade da rede’ nos Estados Unidos deve causar problemas a pesquisadores: o potencial para problemas é real.
No dia 14 de Dezembro, a Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC) reverteu sua ação de 2015 que classificava provedores de banda larga como ‘operadoras comuns’. Pela primeira vez, isso permite que provedores de serviço de Internet (ISPs) possam bloquear ou reduzir a velocidade de certos tipos de conteúdo, e cobrar usuários por acesso ao que essas companhias classificam como conteúdo premium. Defensores alegam que essa é uma maneira mais eficiente e lucrativa de alocar largura de banda que com a neutralidade da rede atual. Informações como comunicação por vídeo podem ser colocadas em uma via mais rápida e ultrapassando informações menos urgentes, como tráfego de e-mail.
O debate acadêmico sobre o assunto tem sido amargo. Alguns pesquisadores que estudaram os possíveis efeitos de tal mudança concordam que a FCC e seus defensores podem, teoricamente, estar corretos. Neutralidade total da rede pode ser mostrada, em modelos econômicos de tráfego de Internet, como socialmente ineficiente. E oferecer um canal de tráfego mais rápido pode ajudar alguns usuários. O presidente da FCC, Ajit Pai, utilizou o exemplo da telemedicina, que disse estar sendo prejudicada. (Opositores contra-argumentam que a telemedicina pode ser oferecida dentro das regras de neutralidade da rede; grupos de saúde como a Academia Americana de Pediatria temem que grandes companhias dominariam.)
Esse temor de grandes companhias e sua perseguição por lucro aparece em muitas das brechas previstas em uma rede menos neutra. Provedores, por exemplo, podem ser pagos por empresas de tecnologia para direcionar usuários para seus produtos.
Como esta mudança pode afetar a ciência e os cientistas não está claro — e isto é provavelmente uma razão pela qual ainda não há uma resposta para o debate por parte de organizações de pesquisa. Uma notável exceção é a Biblioteca Pública de Ciência, que apontou que várias vezes esse ano que dar aos provedores de serviço de Internet poder de separar o tráfego com base no conteúdo, remetente e destinatário é uma ameaça às revistas acadêmicas e pesquisas.
As mudanças podem afetar o tráfego que passa pelos Estados Unidos, que inclui boa parte da América do Sul, Central e o Caribe. Assim, em teoria, terabytes de dados enviados de telescópios no Chile a físicos na Europa podem ficar engarrafados em canais digitais lentos, porque provedores priorizam anúncios em redes sociais. Ou universidades e estudantes, especialmente em países pobres, podem dar de cara com taxas de acesso e download proibitivas.
Muitos críticos da moção da FCC argumentam que é o princípio de acesso igualitário que realmente conta — e que vai ser perdido. Certamente, essa é uma das razões pelas quais outras regiões, como Europa e Canadá, lutaram para manter e proteger a neutralidade da rede. A Comissão Europeia, por exemplo, consagra em lei o direito do usuário de ser “livre para acessar e distribuir informação e conteúdo, rodar aplicações e usar serviços de sua escolha”. (Isso se aplica a Portugal — logo, apesar da afirmação do contrário, há neutralidade de rede na nação.)
A ciência deu grandes passos para abrir os jardins de muitos campos de pesquisa e propagar dados e experiência. A Internet — uma ferramenta científica, diga-se de passagem — tem movido essa revolução. Enquanto as implicações da mudança nos Estados Unidos permanecem desconhecidas, pesquisadores e seus representantes devem se preparar para proteger esse progresso crucial.