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Por que a ciência precisa de metafísica?

Por Roger Trigg
Publicado na Nautilus Magazine

A tecnologia não mantém o ritmo das previsões teóricas sobre a realidade subatômica provindas da física. O mesmo aplica-se à nossa capacidade de observar os confins do universo. A teoria pode superar os dados e torná-la extravagante com certas afirmações sobre o caráter da realidade. Algumas teorias são subdeterminadas, mas os cientistas ficam relutantes em admitir que os argumentos por elas propostos são filosóficos e metafísicos. Suas teorias fornecem um quadro no qual eles podem operar, mas se eles forem removendo não apenas observações reais, mas pelo o que, em princípio, pode ser acessível para nós, nossos descendentes, ou mesmo qualquer observador possível em nosso universo, é difícil ver que eles são outra coisa senão o produto da razão pura. Só porque os cientistas usam tal raciocínio não significa que seja ciência.

Então, como tem que ser no caso em questão para que seja possível ser uma ciência genuína? Está é uma questão fora da ciência e é, por definição, uma pergunta filosófica — até mesmo metafísica. Aqueles que dizem que a ciência pode responder todas as perguntas estão eles próprios fora da ciência ao fazerem essa reivindicação. É por isso que o naturalismo — a versão moderna do materialismo —, vê a realidade tal como definido pelo que está ao alcance da ciência — torna-se uma teoria metafísica, quando desvia-se para algo além da metodologia, argumentando sobre o que pode existir. Negar a metafísica e defender o materialismo em si é um movimento dentro da metafísica. Trata-se de discussão sobre o que está do lado de fora da prática da ciência e de seu âmbito de estudo. A afirmação de que a ciência pode explicar tudo não pode vir de dentro da própria ciência. É sempre uma declaração sobre a ciência.

Da mesma forma, na filosofia, a questão deve ser pressionada sobre o que o verificacionista — quem acredita que uma proposição só tem sentido se, e somente se, puder ser verificada como verdadeira ou falsa —, está pensando a fim de negar a possibilidade da metafísica. O dilema pode, por vezes, ser expresso pelo desafio constante sobre a forma como a tese do verificacionismo pode ser verificada. À luz dela mesma, ela suspeitamente aparenta ser uma metafísica que, ao verificá-la através de meios científicos, comete uma petição de princípio.  Uma resposta (dada uma vez por A. J. Ayer) é que o princípio de verificação é um “axioma”. Isso, porém, não resolve a questão do por que devemos escolher como um axioma. Parece um pouco arbitrário e deixa em aberto a possibilidade de que outros possam apenas escolher um ponto de partida diferente, sem medo da crítica racional. Então, nada ainda foi resolvido.

Alguns filósofos, particularmente de persuasão pragmatista, falaram da impossibilidade de uma “visão do olho de Deus”. Nenhum de nós poderia ficar fora de toda a compreensão humana, esquemas conceituais e falar do que lá está, ou poderia estar. Todos estão ancorados onde estamos. Isso é um truísmo, mas pode rapidamente resultar em um questionamento sobre a possibilidade de qualquer raciocínio independente. Levando-nos muito rapidamente para um relativismo filosófico como destino, segundo a qual somos as criaturas do tempo e lugar. Que embora não basta para demolir a possibilidade de filosofia e de metafísica. Isso prejudica a autocompreensão da ciência empírica. Esta última depende da ideia de uma razão desinteressada e objetiva que pode ser compartilhada por todos os seres humanos em todos os lugares. É acima de tudo preocupada com a verdade, em efeito, o valor final, orientado pela prática da ciência, que deve ser respeitada por todos os cientistas. É por isso que falsificar ou exagerar os resultados das experiências fere o cerne da ciência. A verdade científica não é respeitosa com pessoas ou culturas, e certamente não é dependente de nenhuma.

A ciência tem um alcance universal. Uma descoberta científica sobre o caráter do universo deve ser aquela que os cientistas nacionais em galáxias distantes poderiam compartilhar. As leis físicas, pelo menos, do nosso próprio universo permanecem constantes e inteligíveis em qualquer lugar. Isso dá uma pista para um fato básico sobre a ciência que muitas vezes é tida como certa por cientistas que trabalham. A ciência investiga uma realidade objetiva independente da mente e aberta à todos.

A matemática, no entanto, poderia ser reivindicada como uma ferramenta criada pela mente humana. Por que, então, devemos assumir que ela pode expressar em forma compreensível o funcionamento da realidade física? Aqueles que, como Max Tegmark, que assumem que a natureza da realidade é matemática estão fazendo um salto entre símbolos que parecem ser a criação de espírito e uma realidade que não só existe independentemente de nosso conhecimento, mas também ultrapassa qualquer conhecimento possível. Tegmark explica a utilidade da matemática para descrever o mundo físico como “uma consequência natural do fato de que o último é uma estrutura matemática, e estamos simplesmente descobrindo isso pouco a pouco”. [1] No entanto, esta é em si uma afirmação metafísica sobre a natureza da realidade, logicamente anterior à realização da física.

Há muito trabalho filosófico a ser feito antes das afirmações abrangentes sobre o caráter da realidade poder ser feitas. Jim Baggott, escrevendo sobre ciência, faz afirmações que parecem banais para muitos cientistas. Começando com a observação de que “a realidade é um conceito metafísico e, como tal, fora do alcance da ciência”, ele ressalta que “realistas científicos assumem que a realidade (e suas entidades) existem objetivamente e independentemente da percepção ou medição”. [2] Ele ainda assegura que “a realidade é racional, previsível e acessível à razão humana”. Estas declarações podem ser — e têm sido — desafiadoras, mas as hipóteses são cruciais para permitir que a ciência seja praticada.

A realidade dá à ciência um objetivo e um propósito. Tomar parte na prática da ciência sem qualquer ideia de uma verdade que, às vezes, está além do nosso alcance é como jogar futebol sem ter qualquer meta para alcançar. O jogo vai se tornar inútil, assim como a ciência. A ciência tem que estar no negócio da descoberta. Só porque a realidade inclui seres humanos, ela não está centrada neles mais do que a Terra no centro do universo. Ela muitas vezes transcende o conhecimento humano real e possível.

A independência lógica da realidade física da mente e da compreensão dá à ciência seu ponto. O problema, como salientaram os filósofos ao longo dos séculos, é que isso pode abrir toda a porta para o ceticismo. Se nós estamos incorporados em uma realidade que pode estar além do nosso alcance, como podemos esperar alcançar qualquer conhecimento em tudo? Talvez Kant esteja certo, e o que pensamos que sabemos pode simplesmente refletir as categorias da mente humana. Podemos, talvez, estar lidando apenas com a aparência das coisas. Como as coisas são em si podem estar além de nosso alcance. Alternativamente, a realidade que buscamos entender não pode mesmo ser sujeita a compreensão racional. Pode ser suficientemente caótica e desordenada em ser ininteligível. Se nos dizem que isso é impossível porque a ciência funciona, estaremos voltando para uma justificação pragmática em vez de uma metafísica. Pode parecer convincente, mas não é nenhuma defesa para a preocupação de que poderíamos viver em um compartimento acidental de ordem sobre a periferia de um grande oceano de desordem.

Como podemos em ciência generalizar daqui para lá, quando “lá” pode estar muito além do nosso alcance, ou a partir de agora para as origens do universo, ou para o futuro distante, isso pode representar um desafio semelhante? Este é o problema filosófico venerável da indução. David Hume, como um filósofo empirista, no século XVIII, tentou remover a necessidade metafísica dizendo que que o nosso raciocínio sobre a uniformidade da natureza não foi fundamentado no caráter da realidade. “It is”, ele diz, “not reason, which is the guide of life, but custom”. [3] Apenas esperamos que o futuro assemelhe-se com o passado, por exemplo. Tal postura, que reconhece as limitações do que pode ser comprovado a partir da experiência humana, pode levar a um profundo ceticismo. Ele pode não dar nenhum fundamento racional para a ciência em si. A ciência torna-se mais a expressão da natureza humana e a nossa preferência para o familiar do que uma busca pelo conhecimento. Assim, descrevemos o que acontece e desistimos da procura por qualquer explicação mais profunda sobre a realidade.

Há uma coisa como o progresso científico, e isso acontece através da tentativa e erro sistemático ou, na terminologia de Karl Popper, conjecturando e refutando. Um “realista científico” tem que ser cauteloso, porém, sobre como esse realismo é definido. Um realismo que faz da realidade o que a ciência contemporânea diz é a realidade lógica para as mentes humanas nos dias de hoje. A ciência é então apenas um produto humano, enraizado no tempo e lugar. Trazer isso para a ciência futura — ou ciência ideal — pode parecer mais plausível, mas, mesmo assim, há uma distinção entre a ciência refletir (ou corresponder) a natureza da realidade e dizer simplesmente que ela é uma construção humana. Uma vez que a independência lógica da realidade da ciência é aceita, a questão é porque a realidade tem um personagem que lhe permite ser entendida cientificamente. A inteligibilidade e racionalidade intrínseca da realidade não pode ser tomada como garantida. Mesmo os maiores cientistas, como Einstein, viram que a inteligibilidade do mundo é um mistério. Ele famosamente observou que “a coisa eternamente incompreensível sobre o mundo é a sua compreensibilidade”. [4] Assim como a maneira em que a matemática parece mapear a estrutura racional intrínseca do mundo físico, isso é um pressuposto dentro da ciência e não pode ser dada uma explicação científica. Parece ser um fato metafísico, e a explicação para o qual, se não pode haver um, deve vir além da ciência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Tegmark, M. Our Mathematical Universe. Knopf, New York, NY (2014).
  2. Baggott, J. Farewell to Reality. Pegasus Books, New York, NY (2013).
  3. Abstract of Hume, D. “Treatise Concerning Human Nature” in McNabb, D.G.C. (ed.) David
 Hume. Fontana Press, London (1962).
  4. French, A.P. Einstein: A Centenary Volume. Harvard University Press, Cambridge, MA (1979).
Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.