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Pós-modernismo e política científica na psicologia contemporânea: uma revisão crítica

Por Gustavo Arja Castañon
Publicado no Trends in Psychology

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Este artigo vem complementar a análise crítica sobre a influência do pós-modernismo na Psicologia Contemporânea elaborada em artigo anterior (Castañon, 2004), intitulado Construcionismo Social: Uma Crítica Epistemológica. Aqui está análise debruça-se, exclusivamente, sobre um aspecto particularmente importante das expressões psicológicas pós-modernas: o de suas graves consequências político-acadêmicas, resultantes da adoção por alguns psicólogos dos pressupostos epistemológicos do Construcionismo Social e seus equivalentes. Serão delimitadas as teses filosóficas que alimentam a Psicologia pós-moderna, depois suas próprias teses de política científica e por fim alguns aspectos atuais da vida acadêmica na Psicologia que podem ser elucidados pelo entendimento das consequências naturais que provocam a adoção dessas teses por um grupo acadêmico.

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RESUMO

Este é um estudo sobre a influência do pós-modernismo na política científica da Psicologia contemporânea. Investigam-se os pressupostos epistemológicos adotados pelo Construcionismo Social e suas consequências político-acadêmicas. Aponta-se o abandono pela filosofia pós-moderna da distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, como causa da dissolução da distinção entre critérios epistemológicos e políticos na validação de teorias e hipóteses no campo da Psicologia Social “sociológica”. A consequente rejeição dos pressupostos da ciência moderna leva necessariamente à interpretação da ciência como uma atividade sem privilégios epistemológicos, que se afirma socialmente somente através de recursos políticos e econômicos. A Psicologia Social pós-moderna portanto, como consequência de suas crenças epistemológicas, abandona os laboratórios e pesquisas empíricas e parte para a organização política, o domínio institucional e a propaganda para afirmar-se academicamente. Sem critérios de relevância objetivos, o volume da produção passa a ser o único critério de produtividade acadêmica, mergulhando a Psicologia pós-modernista no que pode ser denominado “complexo de Sherazade”.

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O SIGNIFICADO DA CIÊNCIA MODERNA

Para delimitarmos conceitualmente o tipo de atividade a que se dedicam os psicólogos pós-modernos, devemos primeiro lembrar os pressupostos filosóficos sobre os quais está assentada a ciência moderna, que são justamente aqueles contra os quais o pós-modernismo se levanta em seu conjunto.

As duas crenças básicas que fundamentam a pretensão da atividade científica são a crença em um mundo que existe independentemente de nossa consciência e a crença na possibilidade de se alcançarem representações confiáveis acerca dele. Na ciência moderna essas crenças tomaram uma forma particular. A partir do advento da revolução científica, a ciência não é mais resultado da intuição privilegiada de um mago ou do comentário a um filósofo de autoridade incontestável. A ciência qualifica-se enquanto tal, ou seja, enquanto conhecimento válido, porque obtém suas proposições através de experimentos e demonstrações que são intersubjetivas, submetidas permanentemente a críticas e revisões, sendo superior epistemicamente porque é baseada na matematização e instrumentalização da experiência, quando não na racionalidade pura (lógica e matemática). Essa é a essência da atividade intelectual legada pela revolução científica: teorias rigidamente testadas através dos experimentos, publicamente controláveis, e sempre aprimoráveis por novos e mais precisos instrumentos de medidas. O método experimental busca tornar a ciência autônoma, separando-a da política, do jogo socioeconômico, das pressões filosóficas e principalmente teológicas. Busca conferir ao menos um mínimo de autonomia ao conhecimento humano, libertando-o da legitimação de teorias baseada pura e simplesmente no princípio da autoridade.

Como nos descreve Koyré (1971), a nova síntese epistemológica que nos traz a revolução científica é a realizada entre as matemáticas e a experiência, entre a tradição platônica e a tradição aristotélica, entre as tendências racionalistas e empiristas da gnoseologia. Essa síntese tem nome, e o nome é experimentação. Podemos atribuir a Galileu Galilei o aparecimento dessa síntese revolucionária. Sua tarefa foi a de elaborar um conceito de experiência e de teoria fundado no recurso inédito à matemática, modelo sem precedentes na história do saber racional. Essa aplicação à experiência das leis da medida e da interpretação matemática pode acontecer porque Galileu admite o pressuposto que a natureza se organiza de forma matemática.

As crenças fundamentais implícitas neste tipo de atividade são: (1) a na crença de que o objeto existe independentemente da mente do observador, a isto chamaremos Realismo Ontológico; (2) a crença na estabilidade, pelo menos em alguns de seus aspectos, do objeto que se estuda, a isto chamaremos Regularidade do Objeto; (3) a crença de que através do método adequado, podemos vir a conhecer algo sobre o objeto, a isto chamaremos Otimismo Epistemológico; e, por último e não menos importante, (4) a crença de que podemos representar adequada e estavelmente o mundo através da linguagem, a isto chamaremos aqui, Representacionismo.

O CENTRO DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO CONTEMPORÂNEO

Desde o Teeteto de Platão estabeleceu-se a visão, considerada válida na Filosofia por mais de dois milênios, de que conhecimento é crença verdadeira justificada. Como afirma Oliva (2003), a partir da filosofia moderna os discursos sobre a ciência tendem a estabelecer que uma proposição, para aspirar à condição de científica, deve ser passível de validação como verdadeira ou ao menos como provável. Assim, verdadeira é a proposição que estabeleça correspondência com o estado de coisas ao qual se reporta, e que possa ser justificada por critérios epistemológicos rigorosamente estabelecidos.

Esta posição tradicional, que é a posição da ciência moderna, defende uma tese epistemológica conhecida como distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação. Nesta, se afirma que a produção da pesquisa, com seus interesses, recursos econômicos, pressões políticas e condicionantes culturais, pode ser investigada ou eventualmente até explicada em termos do ambiente histórico-cultural em que se dá concretamente. Ou seja, o contexto da descoberta de uma nova teoria científica, que é o contexto de sua produção, é condicionado (embora não necessariamente determinado) por uma série de fatores histórico-culturais. Além deles, está muitas vezes a criatividade do pesquisador, que não pode ser explicada em termos histórico-culturais ou ambientais.

Mas para a ciência moderna, a verdade ou falsidade de seus enunciados é determinada por critérios lógicos e procedimentos observacionais, este é o contexto de justificação de uma teoria. E aqui, os critérios lógicos e observacionais que aferem o valor científico de uma teoria em nada poderiam ser condicionados sócio-historicamente, uma vez que pertenceriam a ordens de realidade independentes de condições culturais: respectivamente a razão e o mundo empírico. Cabem unicamente às necessidades do pensamento racional as leis lógicas, e às necessidades do mundo natural as observações empíricas. A atividade científica concebida desta forma poderia se resumir a um procedimento intelectual no qual as teorias são criadas, obedecendo às leis lógicas e submetidas ao julgamento dos fatos empíricos.

O século XX assistiu, a partir do fracasso do projeto epistemológico do empirismo lógico, um progressivo questionamento a essa posição padrão, de total independência entre contexto de descoberta e contexto de justificação. A posição epistemológica especial da ciência, a qual se atribuía a condição de única forma de conhecimento no qual a validade ou falsidade de suas proposições era determinada por procedimentos observacionais, sofreu reformulações dentro do projeto da modernidade (pelo Racionalismo Crítico) e ataques externos a esse projeto (dos filósofos da ciência alinhados às teses do pós-modernismo).

Com Popper (1975), a epistemologia encontra uma resposta à crise do justificacionismo estritamente comprometida com os pressupostos tradicionais adotados pela ciência moderna. A tese popperiana de que toda observação se faz à luz de uma teoria em muito difere da posição pós-moderna adotada pelo Construcionismo Social, que afirma não haver distinção entre observação e teoria. Para Popper, a teoria da qual se parte será aquela que recortará, do conjunto infinito de observações possíveis na realidade empírica, aquelas observações que pareçam relevantes considerar à luz daquela teoria. Mas a determinação de que observação é relevante ser feita não determina o resultado desta observação; na verdade, o resultado dessa observação pode contrariar as expectativas da teoria que o motivou, revelando uma anomalia que, uma vez confirmada seguidamente, refuta a própria teoria que propiciou sua revelação. Essa é a essência da lógica da pesquisa científica de Popper. Seu falsificacionismo revela que a pesquisa científica é fundada em procedimentos negativos, cujo objetivo é eliminar teorias falsas para nos aproximarmos progressivamente da verdade, sem porém nunca estabelecê-la definitivamente. Assim, Popper mantém o primeiro pressuposto central da atividade científica, que é o da relativa autonomia do domínio observacional, em outras palavras, do realismo ontológico. Ou seja, a teoria pode até determinar o que será observado, mas não como essa coisa se comportará na observação. Nossas teorias direcionam nossas observações, mas não as determinam.

O ATAQUE À AUTONOMIA DO DOMÍNIO OBSERVACIONAL

Desde que Platão desferiu seus argumentos contra os sofistas, as teses destes últimos pareciam ter desaparecido do debate filosófico, até ressurgirem transfiguradas com o advento da corrente filosófica pós-moderna. A Epistemologia pós-moderna quer abolir a distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta. Para os teóricos pós-modernos não há nenhum nível de autonomia do domínio observacional, em outras palavras, nossas teorias sobre a realidade são construídas socialmente através da linguagem e com nada mais que a linguagem. Assim como nossas teorias, também seus critérios de validação, portanto, segundo eles, nossas teorias sobre a realidade acabam em última análise determinando a realidade.

Essa tese epistemológica central do Construcionismo Social e de seu equivalente na Sociologia, o Construtivismo Social, surge em obras de alguns filósofos contemporâneos. Entre estes, os principais nomes talvez sejam os do filósofo precursor do pós-modernismo Ludwig Wittgenstein, do neopragmatista norte-americano pós-moderno Richard Rorty, e dos filósofos da ciência Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Esses dois últimos e suas teses centrais, conforme demonstrado por Oliva (2003), alimentaram o surgimento do “programa forte” em sociologia da ciência, desenvolvido por sociólogos como David Bloor, Barry Barnes e Bruno Latour. Aqui se demonstrará o mesmo em relação ao Construcionismo Social, seu correlato psicológico.

O neopragmatista norte-americano Richard Rorty é na atualidade o filósofo mais associado ao Construcionismo Social. A questão central do pensamento de Rorty (1989) é a crença de que tudo é essencialmente linguístico, toda experiência e comportamento. O mundo é um texto literário, aberto a múltiplas interpretações. A responsabilidade pela definição da realidade é dos membros de uma mesma comunidade discursiva, eles definem a natureza desse texto, a linguagem que eles pactuam é a realidade. Não há nada além da linguagem a que os indivíduos possam recorrer para validar a verossimilhança da linguagem que essa comunidade escolheu para usar. Para Rorty (1989), a verdade nada mais é que um movimento bem sucedido dentro de um particular jogo de linguagem, uma assertiva que é aceita pelos membros desta comunidade como verdade. Ou seja, para Rorty o critério de verdade é o da utilidade e aceitação social de uma sentença, portanto, é um critério político-pragmático.

A abordagem de Rorty (1979) ao problema epistemológico (assim como de todas as teses que em última análise propugnam a precedência ontológica da linguagem sobre o mundo) como ele próprio diagnostica, deve muito ao pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Para Rorty, a maioria do crédito pelo enfraquecimento da estrutura epistemológica da modernidade se deve a esse pensador. O segundo Wittgenstein rechaça completamente os pressupostos modernistas que marcaram a primeira fase de sua obra: o da existência de uma realidade plenamente significativa independente dos cognoscentes e o de que a tarefa dos investigadores era descrever a realidade da forma mais rigorosamente lógica possível. Temos em suas Investigações Filosóficas talvez a mais importante e imediata obra precursora do pensamento pós-moderno. Wittgenstein (1975) se dedica a partir dela a desmantelar seus primeiros conceitos de atomismo lógico e da teoria representativa da realidade. Rechaça as noções de que os elementos da linguagem devam ter um único referente, de que as proposições devam se constituir de elementos independentes cuja verdade ou falsidade determinam a verdade do enunciado composto, de que a estrutura verdadeira da linguagem representa a estrutura da realidade e de que portanto todas as linguagens são traduzíveis por serem no fundo a mesma coisa. Wittgenstein (1975) defende que o pensamento não se separa das palavras que se usam para expressá-lo. Ele chega a essa conclusão através de sua teoria social da mente que por sua vez se deriva de sua teoria social do significado. Esta afirma que não existe nada parecido com uma linguagem privada. Para ele, a ideia de que a linguagem e o pensamento começam por experiências privadas é um dos erros filosóficos mais fundamentais. A linguagem é um convencionalismo. O significado não se baseia nos objetos, no processo mental ou em entes ideais. Ele é obtido através do contato social com outros habitantes da cultura em questão.

RELATIVISMO PÓS-MODERNO E FILOSOFIA DA CIÊNCIA

No campo da Filosofia da Ciência, as duas fontes nas quais mais beberam os teóricos pós-modernos da Psicologia foram as obras de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Kuhn é o filósofo da ciência que popularizou o termo paradigma. Ele oferece contra o falsificacionismo de Popper sua visão própria sobre o progresso científico, que teria como princípio central a revolução científica. Para Kuhn (1991), a revolução científica é a substituição de um paradigma que, tendo acumulado um número de anomalias suficientes, gerou as condições necessárias para o surgimento de um novo paradigma que o substitua dando conta dessas anomalias. É um momento de evolução não-linear da história da ciência. A tese do pensamento de Kuhn (1991) que foi apropriada pelos teóricos pós-modernos é a tese da incomensurabilidade dos paradigmas. Paradigmas, segundo Kuhn, são aquele conjunto de conquistas científicas universalmente reconhecidas e pressupostos universalmente compartilhados sobre o método científico, que durante um período fornecem um modelo de problemas e soluções aceitáveis aos que pesquisam um certo campo da ciência. Sua substituição por outro ocorre no momento do conflito entre dois paradigmas concorrentes. Neste momento os seus respectivos partidários os defendem com base em argumentos extraídos do próprio paradigma. Ou seja, aqui cairíamos inevitavelmente em uma circularidade, pois tomaríamos como pressupostos os princípios do próprio paradigma em sua defesa. Para Kuhn, paradigmas sucessivos dizem coisas diferentes acerca do universo e de seus objetos, eles são ontologicamente irredutíveis um ao outro, eles são incomensuráveis. Isso quer dizer que para Kuhn, nas revoluções científicas as mudanças de paradigma não são realizadas com fundamento na racionalidade interna do sistema científico.

Este é o componente irracionalista da teoria kuhniana, que embora defenda a racionalidade como característica do empreendimento científico, defende-a somente em sua forma instrumental em relação aos pressupostos do paradigma vigente, interna, no contexto de uma ciência normal. Enumera vários motivos para a assunção de um novo paradigma, como reorganização gestáltica do quadro conceitual e factual, fé, e, principalmente, interesse e pressão política. Assim Kuhn nega que a razão tenha jurisdição sobre aquilo que é a questão mais importante do empreendimento científico, que é a revolução científica e as mudanças axiomáticas. Mais do que isso, ele é irracionalista porque não reconhece que a empreitada científica é uma empreitada teleológica, uma empreitada que visa o progresso das concepções humanas sobre o universo em direção à verdade. Para ele, o desenvolvimento científico se dá a partir de algo (os estágios primitivos de desenvolvimento), e não em direção a algo (a verdade).

Por último, cabe aqui citar as teses centrais de um teórico que levou a crítica ao ideal empirista de ciência ao seu ponto mais radical, e que apesar de inconsistentes e contraditórias, influenciaram o Construcionismo Social. Com a obra Contra o Método de 1975, Paul Feyerabend lança seu anarquismo epistemológico, que pretende provar que a metodologia científica é na verdade o grande fator de entrave ao progresso da ciência. Ao criticar a distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta, ele afirma que essa tese não tem papel a cumprir na prática científica. Uma vez que tudo vale, o contexto da justificação ficaria também subjugado pelo reinado absoluto da criatividade, que pode validar uma teoria com critérios que venha a desenvolver. Dessa forma, ficaria dissolvida a fronteira entre o contexto da criação e descoberta de um princípio científico e o contexto de sua prova e validação perante os fatos.

A partir daí, uma vez que a ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor, ele inicia um questionamento que pela sua veemência parece se revelar uma de suas principais motivações: a crítica ao poder social especial do discurso científico, tese que muito influenciou o Construcionismo Social. Feyerabend afirma que não há porque os objetivos da ciência possam restringir as vidas, os pensamentos e a educação dos integrantes de uma sociedade livre, uma vez que a ciência não tem autoridade maior que qualquer outra forma cultural. Ataca a atitude de conferir à ciência uma “lógica” própria que lhe concede um poder especial, socialmente exorbitante. Reclama que a maneira como aceitamos ou rejeitamos teorias científicas não é democrática: não há votação sobre teorias científicas que são ensinadas a nossos filhos, porque os cientistas não as submetem a votação (1989, p.456). Por tudo o que ele crê ter demonstrado sobre o discurso científico, a ciência se aproxima do mito, “muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir (op. cit., p. 447).

As alegações linguísticas e epistemológicas pós-modernas são um conjunto disperso de ideias desarticuladas e muitas vezes inconsistentes e contraditórias. No entanto, não está dentro dos limitados objetivos deste artigo a explicitação e eventual refutação do conjunto principal de teses do pós-modernismo. Além do mais, em qualquer análise consequente do pós-modernismo, os argumentos e teses centrais destes e de outros filósofos precisam ser descritas de forma mais extensa e pormenorizada. A descrição acima cumpriu somente o objetivo de contextualizar o Construcionismo Social, este sim objeto de análise aqui, evidenciando suas origens filosóficas. Uma análise mais pormenorizada do Pós-modernismo assim como das críticas a suas teses centrais pode ser encontrada em dissertação de mestrado intitulada Pós-modernidade e Psicologia Social: Uma Crítica Epistemológica (Castañon, 2001), que será publicada em breve com acréscimos e sob o título “Psicologia Pós-moderna? Uma crítica epistemológica do Construcionismo Social”.

A EPISTEMOLOGIA SOCIAL DA PSICOLOGIA PÓS-MODERNA

Uma vez demonstrada em artigo anterior (Castañon, 2004) a incoerência e inconsistência das teses epistemológicas do representante pós-moderno da Psicologia, impõe-se a conclusão desta análise crítica através da investigação das consequências político-acadêmicas que decorrem da adoção dessas teses.

Análises gerais (Stam, 2001; Kvale, 1992; Collier, Minton e Reynolds, 1996) sobre o Construcionismo Social apontam Kenneth Gergen como seu fundador e maior expoente. Portanto, em função do espaço disponível e do problema delimitado aqui, nos concentraremos em suas teses de uma nova epistemologia para a Psicologia, a Epistemologia Social. Gergen (1989) defende que o Construcionismo Social é uma outra revolução em curso na Psicologia, oposta ao Cognitivismo e sua epistemologia comprometida com os princípios de uma metafísica dualista cartesiana, onde a mente funciona como espelho do mundo. Para Gergen (1989), a revolução cognitivista é uma “revolução equivocada, e só serve para cegar a disciplina para a muito mais penetrante revolução do que ele denomina epistemologia social.

Gergen (1989) formula sua versão para uma revolução epistemológica na Psicologia partindo do princípio de que o local do conhecimento não é mais visto como sendo a mente individual, mas sim como sendo os padrões das narrativas sociais. Essa mudança ele explica através de três argumentos. O primeiro deles é que, ao abandonarmos o foco de nossa concentração da mente e do mundo e o dirigirmos para o problema da relação entre as palavras e o mundo, nós mudaríamos também a atenção antes dirigida às proposições em nossa cabeça (p.471) para as proposições em nossa linguagem escrita e falada. Uma vez que a linguagem não é privada, mas por definição deve permitir a comunicação e, portanto, é social, Gergen conclui que as proposições de conhecimento não são conquistas da mente individual, mas conquistas sociais.

O segundo argumento de Gergen começa pela crítica tradicional à epistemologia dualista cartesiana, crítica que defende não haver resposta à questão de como a mente pode vir a refletir com segurança a natureza do mundo real. Assim, segundo Gergen (1989), não há meios de determinar como um indivíduo poderia adquirir conhecimento acurado, ou mesmo como ele poderia escolher entre duas teorias diferentes qual delas é a melhor aproximação da verdade. Mas, uma vez que se deve mudar o foco da mente para a linguagem, Gergen acredita que não precisamos mais nos perguntar como a linguagem poderia se tornar uma representação mais adequada do mundo. Assim, devemos abandonar o representacionismo. Gergen (1994) defende que não há uma relação estável entre as palavras e o mundo que elas procuram representar, pois a linguagem é um convencionalismo. O significado não se baseia nos objetos, nem no processo mental ou em entes ideais; adquire-se através do contato social com outros membros da cultura em questão. Como nós denominamos e classificamos as coisas, e mesmo o que nós elegemos como coisas, em qualquer ocasião não é uma questão de fidelidade com o mundo como ele é, é antes uma questão de que relações sociais particulares nós queremos coordenar eficientemente. Assim, as teorias científicas não nos fornecem uma descrição mais acurada do mundo como ele é, de uma realidade objetiva, do que uma descrição elaborada por uma pessoa qualquer. Isso acarreta um antirrealismo epistemológico. É necessário registrar que esse raciocínio leva Gergen (1989) a afirmar temerariamente que as teorias científicas não cumprem sua missão de prever eventos; antes, o que nós tomamos como sendo predições nada mais são que construções sociais. Assim sendo:

“Teorias científicas não derivam sua utilidade da sua capacidade para estocar informações úteis sobre o mundo e por fazê-las disponíveis para predições futuras. Antes, essas teorias derivam sua utilidade da sua posição dentro das práticas da comunidade científica. Elas habilitam os membros dessas comunidades a coordenar suas ações umas com as outras.” (Gergen, 1989, p.473)

É uma afirmação preocupante, à qual voltaremos. Daqui decorre o terceiro argumento de Gergen (1989) em defesa da mudança do local do conhecimento da mente individual para os padrões das narrativas sociais. Este é que com a adoção de uma epistemologia social, as questões concernentes à verdade e à objetividade mergulham em obscuridade, uma vez que objetividade nada mais seria do que a qualidade de descrever de forma válida, clara e acurada o mundo real, conseguida através de experiências de qualidade. Agora, conceitos de verdade e objetividade nada mais são do que truques retóricos, úteis para render louvores ou provocar culpa (p.473). A partir daqui ele faz declarações surpreendentes, como a de que quando nós recompensamos uma criança por dizer a verdade, não o fazemos porque suas declarações foram adequadas aos fatos percebidos, e sim porque elas foram adequadas às convenções do mundo adulto:

“Quando nós recompensamos um especialista médico que descobriu uma doença que poderia ser fatal bem em tempo para ser remediada, o fazemos não porque ele tenha visto o corpo pelo que ele é. Antes, é porque ele foi o portador de uma série de práticas (em companhia de modos socialmente convenientes de classificação) que resultam no que nós convencionalmente chamamos de prolongamento da vida.” (Gergen, 1989, p.473)

Essa posição de Gergen significa na prática a rejeição do princípio da correspondência como critério de verdade, com a adoção da posição de que o que importa em uma sentença não é se ela corresponde em sua estrutura sintática e conteúdo semântico ao real, e sim se ela uma vez adotada conduz com sucesso as ações humanas para seus propósitos pragmáticos. Ou seja, Gergen adota aqui no que chama de Epistemologia Social uma espécie de Pragmatismo Epistemológico, que é derivado da obra de Richard Rorty (1979). Gergen considera essa posição emancipatória, argumentando em favor de uma suposta função essencialmente retórica da pesquisa empírica, que forneceria um caminho para dirigir a força literária às várias explicações da realidade, para então ser utilizada no sentido de abrir o caminho para a mudança.

Tendo seguido por esse caminho, Gergen (1989) chega à conclusão de que o novo domínio de questões para o epistemólogo social é o domínio dos valores humanos, tradicionalmente domínio da Axiologia. Acusa a epistemologia dualista de tornar secundárias as preocupações éticas e ideológicas. Observa que para a epistemologia tradicional, os valores que dão sentido ao que a pessoa gostaria que fosse o mundo, atrapalham sua objetividade no julgamento de como o mundo realmente é. Gergen argumenta que as explicações apresentadas sobre como o mundo é estão mergulhadas em certas práticas sociais; e por afirmar certas propriedades como realidade atuarão no sentido de sustentar certas práticas sociais e promover a extinção de outras. Assim, Gergen (1989) afirma que a questão crítica em relação às várias explicações e narrativas de mundo é determinar que tipo de práticas elas suportam. O epistemólogo social não deve perguntar se seu conhecimento é objetivamente válido, antes deve perguntar-se de que maneiras a vida das pessoas poderia ser melhorada se ele adotasse o arcabouço teórico e explicativo de mundo que pretende adotar para uma certa situação. Em suma, para Gergen, a questão epistemológica fundamental não diz respeito a como o mundo é, e sim como o mundo deve ser; não é epistemológica, é axiológica. É assim que a preocupação básica característica da Psicologia Social, em se justificar enquanto ciência, se transforma no Construcionismo Social em uma obsessão por garantir-se enquanto prática transformadora da sociedade.

A CONSEQUÊNCIA: PSICOLOGIA PRATICADA COMO POLÍTICA

Como afirmam com propriedade Stroebe e Kruglansky (1989, p. 486): Por abandonar a evidência empírica como critério de escolha entre teorias, a Epistemologia Social abre a porta para jogos de poder e intimidação política como parte da ciência. É o que assinalam Collier et al. (1996) ao afirmarem que ao desafiar a concepção tradicional de realidade, a Psicologia Social pós-moderna se converte em política. Na verdade, a crítica de Gergen (1989) à posição epistemológica da Psicologia Cognitiva inaugura um espaço de definição sobre qual teoria é “boa” e qual não é, muito mais “autoritário” que aqueles que foram denunciados por ele (positivismo lógico, racionalismo crítico). Para a epistemologia social uma teoria não precisa ser sequer internamente coerente, precisa somente ser inteligível para uma comunidade científica. Assim, uma comunidade científica que sirva a certos interesses políticos pode atribuir o status de leis ou teorias científicas a proposições sem nenhum compromisso com a lógica ou com a validade empírica.

Neste aspecto o Construcionismo Social faz coro com uma corrente da Psicologia Social sociológica denominada Psicologia Social Crítica. Esta última é a perspectiva teórica dentro da Psicologia Social herdeira da Escola de Frankfurt, também conhecida como Escola de Teoria Crítica. Nos últimos anos, no entanto, esta tendência vem abandonando as posições da Escola de Frankfurt e se misturando cada vez mais com a abordagem construcionista, reivindicando também filiação às teses de Luria e Vygotsky. Inicialmente, a Psicologia Social Crítica constitui-se como uma crítica a estudos de representações sociais, linguagem e comunicação, feitos à margem do contexto social geral, que pretendem aplicar o método dialético e o materialismo histórico ao estudo da Psicologia. Para ela (Parker,1989), as teorias tradicionais da Psicologia constituem um mecanismo cultural que perpetua a ideologia da classe dominante e ajuda a manter o status quo. Procura-se, portanto, predominantemente identificar as formas pelas quais a ideologia mantém o status quo e defende as relações de poder, baseadas no domínio. Segundo Collier et al. (1996), a Psicologia Social Crítica procura sempre desafiar os pressupostos convencionais para desenvolver formas alternativas de pensamento e ação. Para essa abordagem, é tarefa da Psicologia ajudar a transformar as condições atuais e promover uma sociedade melhor.

Uma das características básicas da Psicologia Social Crítica é a denúncia do individualismo da Psicologia como sendo um desses mecanismos perpetuadores da ideologia dominante. Ela acusa a centralidade do conceito de indivíduo na Psicologia Social tradicional, onde se toma o indivíduo como a realidade primária, a partir da qual se desenvolve a interação social e a sociedade. Para a Psicologia Social Crítica, o conceito de indivíduo autossuficiente é uma ficção; não se pode desconectar o indivíduo de seu contexto individual e histórico. Essa separação do indivíduo da sociedade alimentaria a crença de controle pessoal ilimitado e debilitaria a ação coletiva que promoveria mudanças sociais positivas. Sampson (1983), é um dos integrantes dessa abordagem que acusa o individualismo filosófico de servir aos interesses da classe dominante dentro da sociedade capitalista, chegando à incrível conclusão que a adoção por parte da Psicologia do indivíduo como objeto primário de investigação contribui para a manutenção da ordem social existente.

A Psicologia Social Crítica comete o erro filosófico de confundir a esfera moral com a epistemológica. É um dos equívocos mais característicos do pensamento pós-moderno: a confusão entre o objetivo epistemológico de conhecer a verdade, e as metas políticas de poder e transformação social. O objetivo da ciência é a obtenção de conhecimento sobre a realidade, não a transformação desta, que é o objetivo da ação social e política. Ao procurar incluir na Psicologia Social afãs transformadores, os pós-modernistas a transformam em propaganda moral e política, e é isso o que pretendem: uma Psicologia moral e política, o que segundo eles a faria autenticamente social.

Ao defender o princípio de não-neutralidade da pesquisa científica, Gergen (1989), assim como a Psicologia Social Crítica, assume uma posição que se enxerga como menos ingênua, mais cética e sábia. No entanto, o nível onde nós podemos avaliar versões psicológicas em competição nos é tirado pelos mesmos argumentos pós-modernos. Como então Gergen pode defender na prática (como o faz) a superioridade intelectual do Construcionismo Social e de sua epistemologia social? É evidente que quando adotamos uma teoria o fazemos porque a julgamos preferível à outra. Que padrão os pós-modernos utilizam para fazer essa escolha?

Uma vez que o conhecimento para a epistemologia social é única e exclusivamente uma construção humana, então valores e motivações são componentes necessários de sua constituição, e a distinção entre valores e fatos colapsa. A neutralidade desejada para um entendimento objetivo da realidade para Gergen (1989) não só é um mito como um mito nefasto. As explicações dadas – de como o mundo é – estão mergulhadas em certas práticas sociais e por afirmar certas propriedades como realidade atuarão no sentido de sustentar certas práticas sociais e promover a extinção de outras. O que ele não explica é com base em que valores ele pode atuar no sentido de promover a extinção de práticas notadamente modernas, e de práticas modernas de ciência. A ciência moderna é coerente com seus princípios ao rejeitar as práticas pós-modernas. As práticas pós-modernas, uma vez que não acreditam em um princípio unificador da realidade e pregam a relatividade dos valores, ao combater o modernismo são meramente autoritárias e incoerentes. Mas apesar de a incoerência não ser problema para o pós-modernismo, o autoritarismo é um problema para toda a humanidade.

Como afirmam Michael e Kendall (1997), é muito clara a percepção que os construcionistas sociais têm de que seu empreendimento intelectual é política e moralmente superior aos empreendimentos qualificados como modernistas. Apesar disso, como demonstrei acima, não existem meios coerentes para os pós-modernos defenderem essa suposta superioridade moral de sua abordagem. Gergen (1997), em resposta aos autores supracitados, cunha um termo excêntrico: polyvocal. Ele afirma:

“No mundo polivocal do pós-modernismo, existem muitos bens e maus, cada um contingente e situado. Eu não reivindico nenhum superior status moral, intelectual ou epistemológico para o construcionismo polivocal como oposição ao realismo monológico (grifo meu). No entanto, estas reivindicações perseguem cada palavra nossa, mesmo em nossas tentativas de não dizê-las.” (Gergen, 1997, p.31)

Esta declaração de Gergen é bastante útil para ilustrar um dos principais paradoxos do Construcionismo Social, que é o mesmo paradoxo que envolve qualquer pessoa que assuma que a melhor posição é aquela que defende não haver posições melhores que outras, seja no campo ético ou epistemológico. Gergen (1997) afirma em sua defesa que toda teoria necessariamente traz privilégios, que a reflexividade não é uma saída para a ideologia. Ao entoar esse mantra pós-moderno, os construcionistas sociais se julgam habilitados a transformar a ideologia, de distorção inevitável, em elemento desejável e central da atividade científica. Michael & Kendall (1997), em réplica a Gergen, colocam com propriedade que o fato de que todos os discursos acadêmicos implicam alguma forma de ontologia, não defende seu discurso particular que privilegia sua concepção de ontologia cultural, mesmo porque defender que a posição de Gergen seja preferível entre outras seria uma contradição.

Todas estas observações levam à desagradável conclusão de que a Psicologia pós-moderna, segundo seus próprios pressupostos, não é nada mais do que um outro sistema normatizador de condutas. Não resta dúvida que seu objetivo pragmático, e às vezes também programático, é substituir as verdades anacrônicas do modernismo pelas novas e melhores verdades do pós-modernismo, com a única diferença que, ao fazer isso, ao contrário do modernismo, ele nega-se a si mesmo.

Quando os psicólogos pós-modernos declaram que todo conhecimento é uma construção social, e que não existe um contexto de justificação com qualquer nível de independência que possa validar uma teoria, eles afirmam consequentemente que a definição de que um determinado corpo teórico é conhecimento depende somente de sua aceitação social enquanto tal. Ou seja, a afirmação de determinada teoria como conhecimento seria uma questão político-ideológica. Para quem admite a tese da inexistência de um domínio observacional que possua algum nível de autonomia em relação ao domínio teórico, a luta entre teorias deixa de ser um debate teórico, racional, ou uma disputa de evidências empíricas e experimentais, e passa a ser uma disputa política. Sua admissão como crença básica leva necessariamente ao abandono da pesquisa científica baseada em supostos modernistas. Quando a ciência deixa de ser entendida como um método privilegiado de obtenção de conhecimento sobre fenômenos da realidade objetiva que transcendam as idiossincrasias culturais, passa a ser interpretada como uma atividade sem privilégios epistemológicos que se afirma socialmente através de recursos políticos e econômicos. Aqui, abandonam-se os laboratórios e pesquisas e busca-se a propaganda, a organização política e o domínio institucional como meio de afirmação acadêmica de posições teóricas: os grupos acadêmicos na Psicologia que assumem a crença de que o poder social é em última análise a fonte de validação de teorias científicas, são levados inevitavelmente a ações de política acadêmica cujo foco é a ocupação e o controle das entidades reguladoras e promotoras das atividades profissionais e científicas, como os meios de divulgação de trabalhos científicos, os conselhos nacionais de pesquisa, os processos de concurso público ou de contratação e a distribuição de recursos para pesquisa.

Enquanto os psicólogos ainda comprometidos com o projeto de conhecimento representado pela ciência moderna dedicam-se predominantemente à pesquisa, à atividade profissional, aos seus laboratórios e/ou campos de investigação, os psicólogos pós-modernos dedicam-se à organização política. Além disso, e esse é o segundo aspecto grave que deriva das crenças pós-modernistas, os construcionistas sociais, na ausência de um critério de relevância objetivo para julgar a relevância de sua produção teórica, entregam-se à produção interminável de textos de caráter histórico, uma vez que o volume da produção acadêmica parece ter se tornado, nos últimos anos, o único critério para avaliação da vida científica do pesquisador. Este aspecto é o que podemos denominar Complexo de Sherazade, quadro que parece ter atingido os psicólogos pós-modernos e que arrisca destruir a reputação de nossa disciplina, construída em virtude de sua adesão ao projeto da ciência moderna.

OS PSICÓLOGOS E O COMPLEXO DE SHERAZADE

Steven Connor em Cultura Pós-moderna (1993) diz que a pós-modernidade é simplesmente a expressão de uma mania à “Scheherazade” de acadêmicos enfadonhos que buscam, ao mesmo tempo, perpetuar a si mesmos e desviar a atenção de sua crescente irrelevância. Esta frase de Connor me chamou a atenção para um conjunto de características presentes no comportamento acadêmico de psicólogos pós-modernos que poderia ser classificado (metaforicamente) como Complexo de Sherazade. Sherazade é a personagem do tradicional conto árabe das mil e uma noites, que tendo se casado com um sultão que assassinava suas mulheres depois da noite de núpcias, adia indefinidamente sua morte contando histórias. Estas detinham o sultão por toda a madrugada e nunca chegavam a uma conclusão, exigindo sua continuação na noite seguinte e mantendo as núpcias não consumadas.

Com o excesso de profissionais no meio acadêmico e a pressão dos órgãos de fomento de pesquisa por publicações e produtividade acadêmica, vemos difundir-se uma necessidade de produção de comunicações científicas. Essa necessidade tem nos levado a assistir uma multiplicação da produção de artigos e produções teóricas, as quais, muitas vezes, versam sobre assuntos de interesse e utilidade pouco compreensível e relevância questionável.

Essa é a “inflação do discurso” de que falou Charles Newman (1985), que considera que com o pós-modernismo a linguagem acadêmica, particularmente a crítica e a literária, renunciou deliberadamente a toda relação com um valor de uso confiável e acumula obscuridade sobre obscuridade em intermináveis espirais de autovalidação. Para ele o problema é que, no pós-modernismo, o absurdo, de garantia de originalidade, se tornou banalidade, e a irrelevância da produção pós-moderna parece cada vez mais evidente. O paradoxo que ele aponta é que, quanto mais irrelevante e absurda se torna a produção acadêmica pós-moderna, mais necessidade tem estes intelectuais de produzir, como forma de garantir a sobrevivência de seu papel social.

As intermináveis espirais de autovalidação pós-modernas decorrem da sua posição anti-representacionista, onde é defendida a tese de que não há e nem pode haver uma relação fixa ou intrínseca entre as palavras e o mundo que elas representariam. A linguagem, sendo produto de convenções, não deixa lugar para a realidade, transformando o discurso wittgensteiniano e desconstrucionista em uma casa de espelhos linguísticos onde um espelho reflete palavras para um outro espelho, que reflete palavras para outro infinitamente; em um jogo de linguagem que sempre se referirá a outras palavras, mas nunca aos fatos ou às coisas. Perdidas nesse auto-referencialismo, nossas Sherazades pós-modernas constroem discursos que não conseguem atingir outros sujeitos, e que não saem de suas próprias casas de espelhos.

A influência deste legado relativista e obscurantista do pós-modernismo é grande na Psicologia Social. Diante de teorias segundo as quais a verdade é uma construção social de validade limitada ao meio social e histórico no qual é produzido, o interesse de pessoas que assumem essa posição se desloca para o campo da História e da Sociologia, e a busca por proposições de validade universal perde qualquer sentido. Esta é a principal causa do aumento recente da quantidade de trabalhos dentro da abordagem historicista que tenta se estabelecer nesta disciplina. Nesta, não resta ao psicólogo nenhum outro papel que não seja o de contador de histórias.

Como afirma Collier et al. (1996, p.28), nesta nova cultura profissional que emerge do pós-modernismo na Psicologia Social, já não é possível realizar a atividade correspondente à ciência com o respaldo do rigor metodológico, com um marco teórico acreditado ou tampouco com o amparo da academia. Assim, na sua busca por recursos e reforço social, os psicólogos pós-modernos passam a fomentar reuniões de espécies de comunidades de base (Collier et al., 1996, p.28) para, em um tipo de escambo teórico e emocional, reforçarem-se mutuamente. Para estes autores, nesse novo modelo de processo acadêmico, o prestígio profissional não provém da participação no processo de progresso da ciência, considerado pelo pós-modernismo um mito autoritário, mas sim da participação sistemática em todo tipo de congressos e reuniões profissionais (que são ignorados pelo público externo à disciplina e mesmo por outras áreas da Psicologia) da exposição nos meios de comunicação e de colaborar para o estabelecimento do consenso em temas profissionais.

Condenados como Sherazade, os psicólogos pós-modernos vivem o dilema de contar estórias para não morrer. Uma vez que a busca da verdade foi abandonada como objetivo da atividade acadêmica, resta a necessidade da produção de algo que justifique seu financiamento pela sociedade. Esse algo passou a ser contar e recontar, dezenas de vezes, a história. Contá-la com novos termos, com conceitos sempre renomeados, dissolvidos, obscurecidos, reinventados; mas contá-la de novo. Porque quando se acredita que tudo é construção social, essa é a única história que resta para contar.

Mas, talvez porque as pessoas não gostem de ouvir histórias repetidas e obscuras, ao contrário do interesse do sultão pelos belos contos de nossa Sherazade das mil e uma noites, os psicólogos e a sociedade não parecem ter nenhum interesse em ouvir as histórias pós-modernas. Isso paradoxalmente reforça a necessidade destes teóricos de contá-las, porque, uma vez que os critérios de eficácia empírica e utilidade são descartados como preocupações de caráter capitalista ou neoliberal, a produção de histórias é a única coisa que pode justificar a existência de seus papéis sociais. Mas como estas não despertam interesse social, como seu discurso auto-referente não encontra eco algum no mundo exterior aos círculos pós-modernos, elas precisam ser contadas entre si, de uns para os outros.

Assim, o volume da produção e a sedução da prosa passam a ser os únicos critérios de relevância de um autor. Essa é a manifestação na Psicologia de um dos mais perigosos efeitos do pós-modernismo: a volta do princípio da autoridade, banido desde a avento da Filosofia Moderna, ao ocidente.

A SITUAÇÃO DA POLÍTICA CIENTÍFICA NA PSICOLOGIA BRASILEIRA

Precisamos tomar cuidado para que, junto com o retorno medieval do princípio da autoridade, não assistamos também a instalação de um ambiente de falta de liberdade acadêmica e científica na Psicologia brasileira. A tese defendida aqui é que as alegações e o tipo de prática acadêmica pós-moderna ganharam força especial no Brasil porque os recursos disponíveis para a pesquisa empírica, descritiva ou experimental, são muito escassos. Ao mesmo tempo, os órgãos de fomento exigem padrões de produtividade individuais que raramente correspondem aos recursos investidos ou disponíveis. Precisando produzir, alguns optam pelos padrões de produção teórica do pós-modernismo.

Diante desse quadro, o cientista não tem como competir com o contador de histórias, pois ele vive de critérios de relevância e objetividade. A vida de um cientista muitas vezes registra menos de uma dezena de comunicações relevantes de extensas e árduas pesquisas, realizadas durante toda sua vida. No Brasil, vivemos hoje um círculo vicioso: os recursos para pesquisa são escassos, o cientista não os obtém para pesquisas de vulto, e os poucos que existem são distribuídos de acordo com padrões de produtividade que cientistas têm muita dificuldade em acompanhar. Caso a distribuição de recursos venha a ser um dia completamente controlada por grupos pós-modernos, o que será da Psicologia científica no Brasil?

Como a psicologia pós-moderna, se é que essa expressão é possível (Kvale, 1992; Castañon, 2001, 2004), não encontra outros espaços profissionais na sociedade, seja no governo ou na iniciativa privada, só resta a universidade pública para financiar um tipo de atividade que se declara absolutamente desvinculada de critérios de eficácia e validade objetivos. Isto tem tornado a organização política nestas instituições uma questão de sobrevivência vital para esses grupos que, pela natural facilidade com que diplomam dezenas de novos mestres e doutores por ano, começaram a comprometer, em pouco mais de uma década, o ambiente de pluralismo teórico vital para a vida acadêmica.

Todos os psicólogos que de uma forma ou de outra se inserem dentro do projeto da modernidade, ou seja, cognitivistas, behavioristas, psicanalistas, humanistas, psicólogos sociais cognitivos ou sociologistas modernos, neuropsicólogos e outros que compartilham algumas crenças muito básicas acerca do processo acadêmico-científico, conhecem o empenho destes grupos em modificar diretrizes curriculares consideradas modernistas, seu interesse nos processos de concurso para novos professores, sua intolerância teórica e tenacidade na busca pelo controle das entidades e conselhos profissionais da Psicologia.

O que espero ter ficado claro com este artigo é a razão pela qual esses comportamentos são naturais. Eles são consequência das crenças epistemológicas das quais partem os construcionistas sociais, sócio-históricos, psicólogos críticos, pós-modernos, ou quaisquer outras denominações sob as quais se abriguem aqueles que defendam a tese radical de que todo conhecimento é construído, única e exclusivamente, socialmente, e portanto, política e economicamente validado enquanto tal.

Caso a análise desenvolvida neste artigo seja uma aproximação razoável de parte da realidade da vida acadêmica na Psicologia, é importante que se tome consciência deste processo e de suas causas, para que não vejamos perdido o pluralismo teórico dentro da universidade pública, fundamental para a vida acadêmica e para o desenvolvimento de uma ciência moderna psicológica no Brasil. Em meu julgamento, precisamos estabelecer e defender em nossas instituições a diferença radical entre estes dois tipos de atividades acadêmicas, a ciência moderna e a teoria pós-moderna. Uma vez demarcado esse campo a convivência é possível, e provavelmente a falta de consequência pragmática, conceitual ou empírica desse tipo de produção se encarregará do progressivo esvaziamento de mais essa moda acadêmica. Sem esta demarcação clara, no entanto, talvez em breve tenhamos que assistir os pesquisadores e docentes que desenvolvem suas pesquisas dentro do projeto da ciência moderna na Psicologia com dificuldades em encontrar no Brasil espaços institucionais para produzirem e divulgarem seus trabalhos. Se em algum momento todos os órgãos de fomento e também de regulação profissional ficarem em controle destes grupos político-acadêmicos, talvez as práticas vinculadas à modernidade passem inclusive a ser desvalorizadas oficialmente.

Não é segredo para nenhum de nós que para o público leigo culto no Brasil a Psicologia tem uma imagem de atividade discursiva, de poucos resultados práticos e alegações obscuras. Para a formação desta imagem talvez já tenha colaborado o complexo de Sherazade que atingiu parte de nossos pares. Caso continuemos a abrir mão de uma ação em nível político-acadêmico, que é o principal nível em que esses grupos atuam e o único no qual eles estão se tornando realmente hegemônicos, estaremos lavando nossas mãos diante da construção social em nosso país de uma Psicologia totalmente divorciada de seu objeto de estudo, da realidade, da modernidade, das aspirações das pessoas comuns e de critérios de relevância para a sociedade. Nesta outra atividade profissional, que não saberíamos como denominar, só algumas novas Sherazades conseguiriam sobreviver, às custas de uma Psicologia financiada pelo erário público que nada mais seria do que um obscuro conto de fadas, uma confusa e maçante história das mil e uma noites.

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Gustavo Castañon

Gustavo Castañon

Graduado em Psicologia e Filosofia, professor do departamento de Filosofia e do programa de pós-graduação em Psicologia da UFJF.