A incoerência é uma coisa engraçada para quem a vê de fora, o mesmo já não pode ser dito para quem a comete, a essas pessoas resta ou a desonestidade ou o embaraço. Um caso bem frequente de incoerência é o cometido por alguns militantes de movimentos sociais – a saber, aqueles que são, com maior ou menor intensidade, avessos à ciência – no que diz respeito ao uso do termo positivismo. Positivismo é usado não mais para definir um movimento filosófico ou um posicionamento (que pode ser adequado ou não) que entre outras coisas pretendia acabar com a metafísica, mas como um xingamento (coisa muito parecida ocorre com o termo reducionismo). Note-se que eu usei o verbo pretender no tempo passado pois não há mais um movimento positivista nem positivistas em atividade (talvez haja algum nos ramos mais atrasados do conhecimento). Ademais, não vou tratar especificamente do positivismo aqui, mas da frequente incoerência que as pessoas que o usam como xingamento cometem.
Em algumas conversas com um colega de curso, ele questionava a possibilidade de atingir conhecimento através da razão, mas ao ser perguntado como ele fazia para comprovar a veracidade de suas ideias, ele recorria à expressão, um tanto obscura, “comprovo na prática”. Após algum esforço para depurar essa expressão, ficou claro que o significado que ele queria transmitir era que a produção de conhecimento se dava na observação, na experiência direta e que só ela poderia dizer sobre a realidade. Qual seria a incoerência então? Nenhuma, se não fosse o fato de ele recorrer à outra expressão tão frequente quanto obscura – a “ciência positivista” – para se referir às tentativas de tratar de assuntos relacionados ao ser humano e suas produções de maneira científica. Ora, mas o que é a postura dele ao dizer que “comprova na prática” senão uma forma de positivismo?
Outra colega de curso cometia a mesma incoerência ao defender que a ciência (e a filosofia também!) tinha que se manter longe de assuntos como os movimentos sociais e suas reivindicações se valendo da famigerada expressão “ciência positivista” – e “academicismo” também, mas isso será tema de outra postagem – porque as vivências (experiências pessoais) dos membros dos grupos sociais eram mais importantes do que qualquer teoria. O que é isso senão uma forma até arcaica de positivismo ao afirmar que somente a observação direta é que diz algo sobre a realidade?
Ambos os exemplos ilustram algumas coisas interessantes de serem consideradas. Em primeiro lugar, a falta de comprometimento com a veracidade da informação repassada, afinal o que interessa é se passar por inteligente ao usar de termos ao mesmo tempo populares e muito mal compreendidos entre os alguns membros de determinados movimentos sociais. O famoso “se pagar de gostosão”. Em segundo lugar, a falta de compreensão daquilo que se fala (evidenciada pelo mal uso do termo) demonstra um triste aspecto do aprendizado nas universidades (que é o meu contexto e ao qual eu vou me ater), este se dá frequentemente não pela reflexão e pelo exame (para posterior aceitação ou rejeição) dos argumentos que levam a dadas crenças, mas ou pela imitação dos colegas que são “cool” ou pela imposição do grupo, no melhor estilo Mórmons/Testemunhas de Jeová: “aceite isso ou te excluímos do grupo”. Por último, a questão mais vexatória no meu ponto de vista é exatamente incorrer naquilo que se despreza no outro, i.e., ao mesmo tempo em que bradam aos quatro ventos contra a “ciência positivista” serem positivistas na prática. O que resta a essas pessoas é a dissonância cognitiva, e todo o trabalho de duplipensamento que dela frequentemente decorre, como magistralmente demonstrado por Orwell no seu célebre 1984, ou então rever essa crítica atrasada (em quase um século!) à ciência.