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História da pseudociência: quando a eugenia se tornou lei nos EUA e influenciou o nazismo

Traduzido por Julio Batista
Original de Victoria Nourse para a Nature

A eugenia é uma conhecida fase ruim na história moderna da ciência. Nos Estados Unidos, do final do século XIX até a década de 1940, deu-se crédito a essa pseudociência focada na “melhoria” nocional das populações humanas, interrompendo a reprodução de genes supostamente inferiores. Menos conhecida é a história de como a lei dos EUA tornou a eugenia intelectualmente respeitável em todo o mundo, servindo de base para outras legislações do Canadá à Suécia. Por fim, esse fracasso flagrante levou à esterilização forçada de pelo menos 60.000 cidadãos estadunidense e foi usada pelo regime nazista para justificar seu próprio programa de esterilização e, posteriormente, extermínio.

Imbeciles, de Adam Cohen, relata um capítulo chave dessa história, o caso de 1927 da Suprema Corte dos Estados Unidos conhecido como Buck v. Bell. O caso começou em setembro de 1924, quando Albert Priddy, chefe da Colônia Estadual da Virgínia para Epilépticos e Debilitados, um asilo e manicômio perto de Lynchburg, afirmou que Carrie Buck, uma mãe adolescente que havia entrado no asilo em junho, era uma “imbecil” – um termo usado na época para classificar pessoas que possivelmente tinham deficiências intelectuais. Priddy fez uma petição ao conselho de diretores do asilo para esterilizar Buck.

Carrie Buck (à esquerda) e sua mãe Emma em 1924. (Créditos: Arthur Estabrook Papers/Special Collections and Archives/Univ. Albany Suny)

A petição de Priddy baseava-se em uma lei de esterilização da Virgínia que havia entrado em vigor meses antes e que o próprio Priddy havia defendido. Na época, quase metade dos estados americanos tinha leis de eugenia, mas a esterilização era considerada duvidosa constitucionalmente. Quando Priddy morreu, seu sucessor, John Hendren Bell, emprestou seu nome ao caso. Em 1927, a constitucionalidade do estatuto foi afirmada pela Suprema Corte, efetivamente revivendo leis que até mesmo os eugenistas acreditavam serem inaplicáveis. O juiz Oliver Wendell Holmes, ao escrever a decisão, escreveu a agora famosa frase “três gerações de imbecis são mais do que suficientes”, referindo-se a Buck, sua filha e sua mãe. Todos os três foram erroneamente ‘diagnosticados’ com deficiências mentais; a mãe de Buck também estava no asilo.

Imbeciles é bem escrito, acessível e, inevitavelmente, muitas vezes comovente. Para os historiadores da eugenia, muito do contexto e alguns dos personagens serão bem conhecidos. Um dos maiores defensores da eugenia Harry Laughlin (autor de um livro sobre a lei de eugenia dos Estados Unidos) e seu colega pesquisador Arthur Estabrook, que testemunhou no julgamento de Buck, são dois deles. Outros incluem Priddy e Aubrey Strode, o advogado e legislador que redigiu a lei de esterilização da Virgínia.

Cohen dá grande destaque quando escreve sobre Buck. Priddy afirmou que ela era uma ‘degenerada’ sexual e ‘débil mental’. Na verdade, ela estava no asilo porque havia sido estuprada e engravidada por um parente de seus pais adotivos. Graças à pesquisa do biólogo evolutivo Stephen Jay Gould e do historiador Paul Lombardo, autor de Three Generations, No Imbeciles (Johns Hopkins University Press, 2008), sabemos que ela não tinha nenhuma deficiência. Ela era uma pobre vítima isolada de um sistema social que classificava as mães solteiras como perigosas e de um sistema legal punitivo.

O relato de Cohen sobre o julgamento da Suprema Corte é esclarecedor. A lei foi escrita para exigir procedimentos legais justos para a pessoa esterilizada, mas a audição de Buck era totalmente unilateral. Um testemunho ridículo foi admitido sobre o filho de Buck, então com menos de um ano de idade. Cohen mostra como o advogado de Buck, Irving Whitehead, era uma fraude e um impostor para os padrões de hoje, deixando de fazer perguntas que ajudariam seu cliente ou de chamar testemunhas em seu nome.

Buck não era párea para Holmes, um dos membros mais famosos da elite de Boston da época. Sua concisa opinião legal refletia seu entusiasmo pessoal pela eugenia como ciência. A esterilização, ele deu a entender, era compatível com a liberdade. Ela “libertaria os asilados”; caso contrário, eles ficariam internados por toda a vida para impedi-los de procriar. De acordo com o pensamento falacioso, um indivíduo deficiente sexualmente ativo (nas palavras de Holmes) minaria a “força do estado” criando uma linhagem de descendentes deficientes.

Antes de Buck v. Bell, a esterilização eugênica havia sido defendida por décadas por reformadores e cientistas americanos, incluindo o proeminente biólogo Charles Davenport, mas havia sido usada apenas esporadicamente devido ao temor de que fosse ilegal. A própria eugenia nasceu na Grã-Bretanha no final do século XIX, alimentada pelo polímata Francis Galton, meio-primo de Charles Darwin. O conceito ressoou com as interpretações contemporâneas do ‘darwinismo social’, que se baseava no esquema da ‘sobrevivência do mais apto’ – uma falsa interpretação da ideia de Darwin.

Em 1928, um total de 375 universidades e faculdades estadunidenses ensinavam eugenia, e 70% dos livros de biologia do ensino médio endossavam a pseudociência de alguma forma. A eugenia também foi endossada por presidentes, incluindo Theodore Roosevelt, financiada por organizações filantrópicas, incluindo a Instituição Carnegie, e elogiada por cientistas premiados, como o biólogo Edwin Grant Conklin e o Prêmio Nobel Hermann Muller, descobridor da mutagênese de raios-X, bem como proeminentes inventores como Alexander Graham Bell. A eugenia passou a ser vista como a solução para tudo, desde a perda auditiva até a criminalidade. Na Grã-Bretanha, os defensores tendiam a se concentrar na segregação e na esterilização voluntária. Os principais eugenistas britânicos incluíam os cientistas de esquerda JBS Haldane e Havelock Ellis, e os apoiadores incluíam o economista John Maynard Keynes, os reformadores sociais Sidney e Beatrice Webb e o escritor H. G. Wells.

Em 1927, um mês após sua esterilização, Buck foi liberada do asilo como empregada sem carteira assinada, em uma espécie de liberdade condicional. Mais tarde, ela se casou. Sua irmã Doris também foi esterilizada; entrevistas sugerem que ela pensou que a operação era uma apendicectomia. Imbeciles traça sua vida posterior em detalhes, observando um dos aspectos mais comoventes do caso – as cartas de Buck para o asilo sobre seus parentes e status probatório. Isso, observou Cohen, revelou que Buck era inteligente e diligente ao tentar contatar e proteger sua mãe e filho, que viviam com uma família adotiva: um testemunho de um dos erros judiciários mais espetaculares da história dos Estados Unidos. Até hoje, a Suprema Corte nunca anulou oficialmente Buck v. Bell.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.