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Questione tudo, mas não seja um idiota – uma defesa pessoal do ceticismo na vida

Uma das piadas mais recorrentes que eu faço comigo mesmo é com o absurdo do relativismo (do tipo: se tudo é relativo, então a própria afirmação é relativa, o que cria um paradoxo). Mas, em alguns casos, a dúvida é válida. Por exemplo, quando você ouve a afirmação “questione tudo”, o mais atento pode se perguntar: “Isso inclui questionar que se deve questionar tudo?”. E, nesse caso, a pergunta é realmente pertinente.

Não que eu esteja argumentando contra o questionamento cético. É, na verdade, justamente o contrário: estou argumentando sobre o que o questionamento cético implica.

“Questione tudo”, como frase de efeito, é uma ótima afirmação. Mas, na prática, implica num contexto contraditório: Se eu devo questionar tudo, por que eu deveria aceitar essa premissa? A resposta é: você não deve. Esse é o ponto. O passo mais coerente, do ponto de vista cético, seria se perguntar: Por que?

Mas, correndo o risco de parecer anticlimático, não é sobre o por que se deve questionar tudo que pretendo comentar, e sim por que não se deve aceitar a afirmação “questione tudo” sem, bem, questionar.

O ceticismo parte do pressuposto de que você precisa questionar. Essa é a base, afinal de contas. Questionar é sábio. Mas é importante saber em que circunstâncias questionar, ou então entramos no ceticismo absoluto do Descartes que, na prática, não serve pra porcaria nenhuma.

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Parece uma constatação óbvia, mas não é. Para muitas pessoas, ceticismo é sinônimo de “teimosia”, ou seja, é se recusar a aceitar qualquer coisa, é duvidar de tudo. E isso é incoerente com a realidade, uma vez que, se duvidássemos de tudo, a humanidade não seguiria adiante. Isso vale para o conhecimento científico, mas também vale para a evolução de valores sociais e outros aspectos que envolvem o ser humano.

Questionar tudo e duvidar de tudo são coisas completamente diferentes, mas não na cabeça de muita gente. “Questionar tudo” trata de um contexto geral, que parte do princípio de que não existe assunto, tópico ou aspecto que esteja fora do escrutínio do ceticismo. Ou seja, não há nada que não possa ser questionado.

Por outro lado, o questionamento indiscriminado é, em si, o contrário do que o ceticismo atual defende. O que eu quero dizer é que questionar por questionar, sem nenhum critério que o valha, de nada serve. É preciso haver boas razões para questionar algo.

ceticoRelativismo é uma coisa bonita como discurso democrático, mas não é muito útil na prática. Ninguém vive seu dia-a-dia de forma absolutamente relativa. Em nossa vida, nós damos algumas coisas como certas: o amor de nossos pais, a estabilidade do nosso emprego, a sinceridade dos nossos amigos. Não há, de fato, uma garantia de que seja verdade. Mas existe um motivo pelo qual você toma essas coisas por verdades, e isso garante um nível de confiabilidade que permite você seguir com sua rotina diária sem acordar todos os dias com medo de que seus pais sumam da sua vida, seus amigos sejam falsos com você ou que a empresa em que você trabalha deixou de existir da noite para o dia e você ficou sem nada. Imagina viver uma vida onde você questiona toda sua realidade, o tempo inteiro, do momento que você acorda ao momento que você vai dormir. Você sequer conseguiria dormir.

Meu ponto com o parágrafo anterior é que, se temos motivos para aceitar uma premissa (por exemplo, a de que sua esposa o ama), não há razão para questionar isso, a menos que o nível de confiabilidade nessa premissa seja abalado por novas informações. Esse é exatamente o ponto do ceticismo.

“Existe algum tipo de conhecimento que nossa mente não pode alcançar?” Sinceramente, se existe, faz alguma diferença? Se existe tal tipo de conhecimento, ele não é um tipo de conhecimento, ou então seríamos capazes de acessá-lo. Este é o tipo de pergunta que, embora faça sentido, gramaticalmente, é absurdo na prática, não serve pra nada.

Da mesma forma não serve pra nada questionar conhecimentos dos quais possuímos um nível seguro de confiabilidade, uma vez que estes conhecimentos foram e são capazes de gerar soluções práticas (o exemplo mais óbvio são as descobertas feitas através do método científico). A menos que novas informações indiquem que estes conhecimentos podem não ser confiáveis, não há razão para duvidar.

O ceticismo absoluto é, além de absurdo, burro. Outro exemplo, bem atual em época de eleições: descartar tudo o que qualquer político fala, sem conhecer sobre o que ele está falando nem buscar se aprofundar nas informações que estes disponibilizam, ou seja, duvidar por duvidar, sem qualquer critério, é um ato idiota, imaturo e, principalmente, irresponsável.

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O ceticismo, de fato, é ver qualquer coisa como capaz de ser questionada, ao mesmo tempo que requer a adoção de critérios e a habilidade de discernir entre o que vale a pena questionar profundamente, e o que é possível aceitar com alguma segurança. A consequência dessa visão que estou apresentando é inevitável: Não existem fórmulas prontas. Cada caso é um caso.

Ceticismo requer esforço, energia e tempo. Por isso não é razoável duvidar de tudo. É razoável duvidar quando não se tem informações suficientes, quando as informações são duvidosas, quando uma informação é tendenciosa (ou seja, quem está disseminando a informação se beneficia, de uma forma ou de outra, com a mentira) ou quando novas informações põem em cheque um conhecimento anterior. Se você não vive seu dia a dia num absoluto ceticismo, não há motivos para fazer isso em quaisquer outros aspectos da sua vida.

Nem sempre vamos acertar, mas cabe a nós a decisão sobre que aspectos são realmente dignos do questionamento, e quais podemos contar com as informações disponíveis ou com a palavra de autoridades que você confia.

Outra consequência inevitável deste texto é a definição prática do que é ser cético. Ceticismo não é uma corrente ideológica, uma doutrina ou um dogma. Sequer é uma ferramenta (pelo menos não no mesmo sentido em que a metodologia científica é). Ceticismo, neste caso, é uma atitude, uma abordagem perante o mundo, que permite um nível cada vez menor de engano (ou de autoengano).

duvidecirclePor isso é ridículo pensar em ceticismo em termos seletivos. Não faz sentido ser cético com relação a pesquisas científicas, por exemplo, e não ser cético quando você precisa tomar decisões importantes para sua vida. Ou na hora de separar informações verdadeiras de falsas. Ser cético é o que a expressão implica, ou seja, “ser”, de fato, não apenas “fazer”.

É, por isso, aceitar também as consequências do ceticismo, quaisquer que elas sejam. Às vezes é ter que contestar verdades estabelecidas e nadar contra a corrente. Às vezes é aceitar uma verdade estabelecida, mesmo que não gostemos disso. Às vezes é ter que contrariar coisas que queríamos muito que fosse verdade e a inevitável decepção de perceber que o mundo não gira ao nosso redor. Às vezes é aceitar que somos falíveis e somos facilmente enganados. Mas também é aceitar a responsabilidade por sua própria vida, e por suas decisões. É ter a própria mente apenas para si, ser independente. É ser genuinamente livre.

E, desta forma, chegamos fatalmente ao título deste post. Questione tudo, mas, por favor, não seja um idiota. Não se deixar levar por crenças injustificadas é sempre muito prudente. Mas manter-se cético quando não há motivos fortes para tal é apenas pura teimosia. Para não dizer uma perda do seu próprio tempo e esforço, e uma distração das coisas que realmente exigem um olhar cético.

Rafael Rodrigues

Rafael Rodrigues

Rafael Rodrigues é redator publicitário, roteirista de quadrinhos e divulgador científico. Formado em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina, escreve sobre terror, quadrinhos, filosofia e ciência para sites diversos. Seus assuntos favoritos são Filosofia da Ciência, Filosofia da Mente, História da Ciência, Neurociência, Genética e Evolução. Interessa-se pelo passado, pelo presente e pelo futuro.