Por Henrique Napoleão Alves,
Publicado no Velho Trapiche
Avram Noam Chomsky (1928) é um linguista, filósofo, cientista cognitivo, comentarista e ativista político norte-americano.
Michael Albert (MA): Bem resumidamente, o que é irracionalidade? E, reciprocamente, o que é racionalidade?
Noam Chomsky (NC): Bem, um exemplo perfeito de irracionalidade extrema é o que estávamos a falar agora mesmo. O que Orwell chamou de “duplipensar” [double-think]. A capacidade de ter na mente duas ideias contraditórias ao mesmo tempo e de acreditar em ambas. É o auge da irracionalidade. E é o que praticamente define a comunidade intelectual de elite.
Agora, tomemos exemplos concretos de irracionalidade fundamentalista. Te darei um exemplo real. Na verdade, é um exemplo sobre o qual tomei conhecimento cerca de cinco anos atrás, mas que não divulguei porque soou insano demais pra ser verdade. Atualmente, já foi verificado e comprovado. Em janeiro de 2003, imediatamente após a invasão do Iraque, George Bush buscava arrebanhar apoio internacional para a invasão e se reuniu com o presidente francês [Jacques] Chirac. Nessa reunião com Chirac, Bush começou a endoidecer a respeito de um trecho de Ezequiel, do livro de Ezequiel, um trecho muito obscuro que ninguém entende, sobre Gogue e Magogue. Ninguém sabe se Gogue e Magogue são pessoas ou lugares ou qualquer outra coisa. Mas Gogue e Magogue supostamente virão do Norte para atacar Israel, e daí a coisa desceu para o nível da loucura cristã evangélica ultrafanática. Há toda uma estória grande sobre como Gogue e Magogue descem para atacar Israel, há uma batalha no Armageddon, todo mundo é massacrado, e as almas que são salvas ascendem ao paraíso. Ok, um tipo de estória assim.
Parece que Reagan acreditava nisso. Quando seus domadores não o controlavam o suficiente, quando ele estava mais ou menos por conta própria, logo começava a vociferar sobre coisas assim. Para Reagan, Gogue e Magogue eram a Rússia. Para Bush, Gogue e Magogue eram o Iraque. Então Bush disse isso a Chirac, e Chirac não fazia a menor ideia sobre o que era aquilo que estava sendo dito. Por isso abordou o Ministério de Relações Exteriores francês, o Elysée, e perguntou: “Vocês conhecem o que esse maluco está vociferando?” E nem eles sabiam, foram buscar um conhecido teólogo belga responsável pelo grande trabalho sobre esse trecho, sobre como interpretá-lo, o que quer que ele possa significar, etc.
Ok, como eu sei disso? Bem, eu sei disso porque esse teólogo belga me enviou um texto com toda a história de fundo. E eu nunca divulguei isso porque me parecia fora demais da realidade. Finalmente, [tempos depois] conversei com um acadêmico australiano, pesquisador, mencionei o caso para ele, ele decidiu investigá-lo, e a coisa revelou-se correta. De fato, a história aparece numa das biografias de Chirac e em outras evidências. Então, sim, isso realmente aconteceu. Tivemos o mundo nas mãos de um lunático vociferante que, sabe, diz coisas sobre Gogue e Magogue e Armageddon e almas subindo pro paraíso; e o mundo sobreviveu. Ok, isso, isso não é uma coisa pequena nos Estados Unidos. Não sei ao certo a porcentagem, mas talvez 25, 30% da população [acredita nesse tipo de coisa]. Sim, é irracionalidade das graves.
MA: O que é “Ciência”? Quero dizer, por que algo é científico? O que define algo como sendo ciência assentada ou como não ciência, mascaramento, etc.? Já que você vai responder a isso integralmente, como se sente sobre a crítica esquerdista sobre a ciência – esquerdistas que criticam a ciência por ser… você sabe, o que que eles costumam dizer: que é imperialista, ou sexista, ou enraizada em qualquer coisa ocidental etc.?
NC: Bem, em qualquer coisa que nós compreendemos – se muito – sobre matéria tão complicada quanto a dos assuntos humanos, as respostas são bem triviais. Se não são verdadeiras, nós podemos entender [por que].
Há uma categoria de intelectuais que são, sem dúvida nenhuma, perfeitamente sinceros… Se você olha de fora, o que eles estão realmente fazendo é usar palavras truncadas e complicadas construções que eles parecem entender, porque conversam entre si… Apesar de, na maior parte do tempo, eu não conseguir entender [nada d]o que eles falam, e olha que são pessoas que supostamente estão na minha área de atuação.
E é tudo muito pomposo, com muito prestígio, e assim por diante. Provoca um efeito terrível no terceiro mundo. No primeiro mundo, nos países ricos, não importa tanto. Então, se um monte de nonsense ocorre nos cafés parisienses ou no Departamento de Literatura Comparada de Yale, bem, ok. Por outro lado, no terceiro mundo os movimentos populares realmente precisam que intelectuais sérios tomem parte. E se eles todos estiverem a promover disparates pós-modernos por aí, bem, estarão perdidos. Vi exemplos reais disso.
Logo, há essa categoria. E é considerada muito de esquerda, muito avançada / progressista, e coisas assim. Na realidade, parte do que surge nela faz sentido, [mas] quando reproduzida em palavras simples / compreensíveis, acaba por ser obviedades / truísmos. Então, sim, é perfeitamente verdadeiro que, se você olhar para os cientistas no Ocidente, eles são em sua maioria homens. E é perfeitamente verdadeiro que mulheres têm enfrentado grandes dificuldades para adentrarem nas áreas de atuação científicas. E é perfeitamente verdadeiro que há fatores institucionais determinando como a ciência procede que refletem estruturas de poder. Tudo isso pode ser descrito – literalmente – em palavras simples / compreensíveis. E acabam sendo truísmos. Ok. De outra parte, você não chega a ser um intelectual respeitado se apresentar truísmos por meio de palavras simples.
Quando a crítica “de esquerda” – eu não a considero de esquerda – quando a chamada crítica “de esquerda” ocorre de estar correta, ok, tudo certo. Se você apontar um monte de coisas como as que mencionei, bem, tudo certo. Você as aponta, todos podem compreendê-lo, é possível ver se [a crítica] é verdadeira, etc. Por outro lado, muito do que é chamado de crítica de esquerda parece não passar de nonsense puro. Na verdade, isso já foi demonstrado conclusivamente. Há uma obra importante de Jean Bricmont e Alan Sokal em que eles apenas examinam os… por acaso eles se concentram em Paris, que é o centro da podridão, mas a coisa está em toda parte… e eles examinam os mais respeitados intelectuais franceses e analisam o que eles dizem sobre ciência e, sabe, é tão constrangedor que por vezes você meio que sente vergonha alheia ao ler. Um dos mais marcantes [entre eles] é um dos poucos que realmente é um cientista e sabe alguma coisa sobre ciência, [Bruno] Latour. Ele tem formação em Ciência e Filosofia da Ciência… Bricmont e Sokal esmiúçam um artigo no qual ele… Alguém na França ou em outro lugar descobriu que um dos faraós morreu de tuberculose, e fez isso por análise de DNA ou algo assim… Latour escreveu um artigo ridicularizando isso como totalmente absurdo porque a tuberculose só foi descoberta no século XIX e tudo é uma construção social…
MA: Logo, [a tuberculose] ainda não tinha sido construída, portanto…
NC: … portanto, não ocorreu. Sabe, é mais ou menos no nível de Bush e Chirac. Mas esse tipo de coisa é levado muito a sério, e é considerado muito de esquerda.
MA: Mas uma coisa a se pensar, suponho eu, é que a descrição dos intelectuais, a descrição dos jornalistas e agora a descrição desse setor ou parte da esquerda… Há algo similar acontecendo aí, mesmo que o preço [para a sociedade] seja bem menor. Você tem esses caras assentados em salas com ar-condicionado bombardeando o mundo em prol de suas carreiras, de seu status, em decorrência das lições que tiveram, e aqui você tem pessoas que estão na crítica literária ou qualquer outra área, e que também estão completamente divorciadas da realidade ou a obscurecendo por razões semelhantes. Claro que o preço é bem menor…
NC: O preço, no terceiro mundo, é alto.
MA: Tudo bem, mas ainda assim não é como tacar bombas no mundo. Mas é um… é o mesmo fenômeno.
NC: Não é tão difícil assim de entender. Quero dizer, são boas pessoas, muitos são meus amigos… Se você olha pro que está acontecendo, eu penso que é bem fácil sacar o que se passa. Suponha que você é um professor letrado em alguma universidade de elite, sabe, um antropólogo, ou algo assim. Se você fizer bem o seu trabalho, tudo certo, mas você não ganhará grandes prêmios por isso. Por outro lado, você dá uma olhada no resto da universidade e aí estão esses caras do Departamento de Física e do Departamento de Matemática, e eles possuem todo o tipo de teorias complicadas que, claro, você não é capaz de entender, mas que aparentemente eles entendem; e eles têm, sabe, princípios, e eles deduzem coisas complicadas desses princípios, e eles fazem experimentos e descobrem o que funciona e o que não funciona, e assim por diante… E é realmente um troço que impressiona. Então você também quer ser como eles, quer ter uma teoria. Nas Letras, nas Humanidades, sabe, Crítica Literária, Antropologia etc. há um campo chamado “Teoria”, que é como os Físicos. “Eles [os Físicos] falam de forma incompreensível, nós falamos de forma incompreensível; eles possuem palavras complicadas, nós também possuímos palavras complicadas; eles alcançam conclusões abrangentes, nós também alcançamos conclusões abrangentes. Somos tão importantes quanto eles.” Agora, se eles disserem “Nós estamos fazendo ciência de verdade, e vocês, não”, isso é coisa de branco, de macho sexista, de burguês, ou qualquer que seja a resposta. “Em que nós somos diferentes deles?”. Ok, e isso tem apelo.
E há outras coisas que ocorreram. Lembre-se que muito disso vem de Paris, e coisas interessantes estavam ocorrendo em Paris nos anos 1970. Os intelectuais franceses foram o último grupo de intelectuais no mundo a ser, esmagadoramente… não digo 100%, sabe, mas era bem padrão e muito respeitado ser… um fervoroso stalinista ou maoísta. Nos anos 1970 isso foi virando uma posição muito difícil de ser defendida. Houve uma mudança súbita. Pessoas que tinham sido ardentes maoístas e stalinistas de repente se tornaram as “primeiras” pessoas no mundo a descobrir o Gulag, e fizeram um alarde enorme sobre como todas as outras pessoas apoiaram as atrocidades stalinistas e maoístas, e nós somos a França, então é lógico que precisamos estar à frente dos demais. Então nós[, intelectuais franceses,] é que expusemos a coisa e agora nós somos… a “nova filosofia”, ou algo do tipo. Recordo-me de ter me reunido – não irei mencionar nomes porque é constrangedor – com uma das figuras principais entre os pensadores culturais franceses, que ocorreu de me visitar por volta de 1974, e ela era uma maoísta fervorosa. Alguns anos depois ela se tornava uma das “primeiras” pessoas a compreender ou descobrir as atrocidades stalinistas e maoístas. Quando você passa por essa transição, tem que encontrar outra coisa pra fazer. De que forma irá se manter sob os holofotes? Ok, daí tem-se a invenção do pós-estruturalismo.
- O texto é um trecho de uma série de vídeos em que Michael Albert (MA), co-fundador da “Z Communications”, entrevista o professor Noam Chomsky (NC). A entrevista ocorreu no início de 2010, está disponível em vídeo no Youtube, e ganhou o nome de “The Chomsky Sessions”. Está dividida em cinco partes no total. O trecho ora traduzido é retirado da parte 2, intitulada “Ciência, Religião e Natureza Humana”.
- O título do video no canal: “Science, Religion & Human Nature – The Chomsky Sessions – (2) Z Video Productions. February 2010. Interviewer – Michael Albert, co-founder of Z Communications.This is the second session of a 5-part series.” Foi publicado no Youtube em 16 de setembro de 2012. Está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f02gcRrdK2I. Acesso em 10 dez. 2015.
- Há uma transcrição da entrevista, em inglês, no site da “Z Communications”:https://zcomm.org/zcommentary/the-chomsky-sessions-ii-science-religion-and-human-nature-part-i-by-noam-chomsky/. Acesso em 10 dez. 2015.