Pular para o conteúdo

Relativismo Cultural em Pauta

Uma antiga tribo de indianos, chamada de “Callatians”, tinham por costume comer os corpos de seus parentes mortos. No mesmo período que a tribo dos Callatians viveram, os gregos antigos praticavam a cremação dos corpos de seus parentes mortos, considerando as piras funerárias um modo mais natural e adequado para dispor dos mortos. Heródoto, em sua obra História, relata quando o rei persa Dário , intrigado com essas diferenças culturais encontradas em suas viagens, reuniu alguns gregos em seu palácio e lhes perguntou se gostariam de comer o corpo de seus pais mortos. Os gregos, horrorizados com tal proposta, disseram que por nenhuma quantia de dinheiro fariam tal coisa. Enquanto os gregos ouviam, Dário se dirigiu a um grupo de Callatians também trazidos ao palácio e lhes perguntou se gostariam de queimar os corpos mortos de seus pais. Os Callatians, por sua vez, ficaram horrorizados e disseram à Dário para jamais mencionar uma coisa tão terrível. Assim, para a pergunta “o que é o certo a se fazer com os corpos dos parentes mortos?”, os gregos responderiam queimá-los, enquanto que os Callatians diriam que o certo seria comê-los.

Dário I, rei persa.
Dário I, rei persa.

Os Inuit, conhecidos também como “esquimós”, são grupos que vivem em regiões distantes e quase inacessíveis ao norte da América do Norte e na Groelândia. Até o começo do século XX pouco se conhecia dos seus costumes. Com o avanço da exploração, alguns de seus costumes se tornaram conhecidos por nós, como os que irei relatar. Os homens esquimós, geralmente, possuem mais de uma esposa, e seus convidados recebem o direito de dormir com elas. Além disso, dentro da hierarquia da comunidade, o chefe tem o direito de ter relações sexuais com as esposas de outros homens. Além das diferenças matrimoniais em comparação a nossa sociedade, os esquimós também praticam o infanticídio. De acordo com os dados dos antropólogos que estudaram os costumes esquimós, as bebês meninas e os bebês que nasciam com deficiências físicas estavam mais suscetíveis a morte. Tal assassinato era permitido pela comunidade, e a decisão dependia exclusivamente dos pais. Além disso, as pessoas de idade avançada, quando já não eram mais capazes de contribuir com a família, eram deixados na neve para morrer. As conclusões tiradas pelos antropólogos era que tal sociedade tinha uma cultura que dava pouco valor e respeito pela vida.

Inuits, também conhecidos como Esquimós
Inuits, também conhecidos como Esquimós.

Em algumas sociedades na África, Oriente Médio e no sudeste da Ásia – sociedades predominantemente islâmicas -, meninas de até quatorze anos passam por certos rituais que consistem na mutilação genital. Há três tipos de mutilações genitais femininas. A chamada “circuncisão Sunna”, que envolve a remoção do prepúcio e/ou do clitóris. Outra é a operação chamada de “clitoridectomia”, que consiste na remoção parcial ou total do clitóris, assim como dos lábios maiores e menores. E também a chamada “infibulação”, onde se extirpam o clitóris e unem os lábios menores com uma parte interna dos lábios maiores, através de pontos ou espinhos, criando um pequeno orifício – entre 2 e 3 centímetros – no qual a mulher poderá urinar e menstruar. Tais rituais variam entre retirar o prazer sexual feminino, pois culturalmente uma mulher sentir tal prazer é visto como sendo prostituta, ou mesmo para resguardar a virgindade da mulher.

De acordo com os códigos morais da religião muçulmana, seguidos em alguns países do Oriente Médio, uma mulher que cometer o crime do adultério terá como pena a morte através do apedrejamento. Essa pena também é aplicada para outros crimes previstos pela lei mosaica, como a zoofilia (ou bestialidade), a blasfêmia, ter relações sexuais com virgens comprometidas, enteadas, com a própria mãe ou madrastas, amaldiçoar os pais, homossexualidade, bruxaria, entre outros. O apedrejamento consiste no acusado ser amarrado e, as vezes, enterrados até o tronco, e os algozes lançam pedras contra o corpo do acusado até que esse faleça. Como o ser humano é capaz de sentir fortes golpes antes de perder a consciência, essa pena de morte é considerada extremamente violenta, causando dores excruciantes no indivíduo.

Esses são apenas alguns exemplos de como há diferenças substanciais entre culturas diferentes, sejam entre culturas de antigamente, sejam entre culturas de hoje. Essas diferenças, muitas vezes, levam pessoas a defenderem o relativismo cultural. Esse tema foi assunto de um debate que tive há alguns dias atrás, que me fez concluir que assumimos algumas posições filosóficas, como essa, sem percebermos quais são suas consequências mais profundas. Na verdade, acredito que são poucos que de fato entendem o que é o relativismo cultural, conseguindo expor com precisão o que essa teoria filosófica defende e, além disso, perceber quais são suas consequências tanto práticas como teóricas. No entanto, ainda que poucos sejam capazes de completar essa tarefa, o relativismo cultural é muito difundido e defendido. É quase que um clichê ser de humanas e defender essa posição filosófica. Antropólogos, sociólogos, historiadores e filósofos defendem essa teoria com naturalidade, como se o relativismo cultural fosse um pressuposto óbvio e inquestionável para se fazer um trabalho em ciências humanas. Todavia, essa teoria está longe de ser inquestionável, mas muito pelo contrário, como quase toda teoria filosófica essa também é argumentavelmente falsa

Pretendo expor nesse texto o que se entende por relativismo cultural e quais as consequências trazidas por ele. De antemão recomendo a leitura do texto do filósofo estadunidense James Rachels, mais precisamente o segundo capítulo (“Os Desafios do Relativismo Cultural”) do livro intitulado “Os Elementos da Filosofia Moral”. A maior parte do que será apresentado a seguir foi baseado nesse texto.

A Filosofia Moral

Antes de começarmos a exposição do relativismo cultural, parece necessário delimitarmos exatamente onde essa discussão reside. A filosofia é uma área do conhecimento cujo os objetos de estudo constituem um amplo conjunto. Por exemplo, algumas subáreas da filosofia e seus objetos são: filosofia da ciência cujo objeto de estudo são as ciências; a filosofia da arte, que trata de problemas relacionados à arte; filosofia política, que tratam de problemas sobre política, etc. O relativismo cultural é um problema, um objeto de estudo, da área filosófica chamada “filosofia moral”. Mas o que essa área trata exatamente? Filosofia moral (ou “ética”, de acordo com a tradução grega do termo) é tradicionalmente entendida como o estudo acerca de problemas que tratam do modo como devemos ou não agir. Problemas clássicos da filosofia moral são, por exemplo: Qual o melhor sistema moral para guiar nossas ações? O que é moralmente obrigatório (i.e., quais são nossos deveres morais)? São as ações como aborto, eutanásia, ou tortura moralmente permissíveis? Entre outros.

Iremos tratar o relativismo cultural, contudo, o relativismo moral é um constituinte importante da defesa do relativismo cultural. O relativismo moral é a tese de que não há um critério universal que determine o que é ou não moralmente obrigatório. Deste modo, para qualquer ação X há diversos sistemas, ou códigos morais que irão considerá-la permissível, como haverão outros sistemas que a considerarão proibidas. Todavia, segundo o relativismo moral, nenhum desses sistemas têm a qualidade de ser universal. Assim toda ação será correta ou incorreta de acordo com o sistema moral que a avalia, mas uma ação não é correta ou incorreta universalmente. O relativismo cultural, por sua vez, aceita o relativismo moral e afirma que para cada sociedade ou cultura há um sistema moral diferente, e como não há um sistema moral universal, não podemos julgar moralmente outras culturas. Basicamente, o relativismo cultural defende que os sistemas morais são componentes culturais.

Devemos notar que as duas teorias são distintas. Enquanto que o relativismo cultural implica o relativismo moral, o relativismo moral não implica o relativismo cultural. O que isso quer dizer? Bom, uma pessoa pode ser um relativista moral sem defender o relativismo cultural, rejeitando, por exemplo, que os sistemas morais são determinados pelas culturas. Ainda que essa discussão seja interessante, não precisamos fazê-la aqui, vamos nos focar no relativismo cultural.

O Relativismo Cultural

O primeiro passo para uma apresentação sobre relativismo cultural é apresentarmos uma definição acerca dele. No entanto, uma definição explícita seria um trabalho exaustivo e entediante para ser feito aqui. Para a argumentação que irá se seguir basta que façamos uma caracterização do relativismo cultural expondo as principais teses defendidas nessa teoria. Irei apresentar as seis teses consideradas principais. Devo notar que nem todas as seis teses a seguir precisam ser defendidas por um relativista cultural. Enquanto alguns podem defender todas as seis, alguns podem defender apenas algumas delas. No entanto, essas teses expõe o cerne do relativismo cultural, de modo que ao menos algumas delas devem ser aceitas por quem advoga a favor dessa teoria. As seis teses são:

  1. Sociedades diferentes têm códigos morais diferentes.
  2. O código moral de uma sociedade determina o que é correto no seio dessa sociedade, i.e., se o código moral de uma sociedade afirma que certa ação é correta, então essa ação é correta, pelo menos nessa sociedade;
  3. Não há qualquer padrão objetivo que se possa usar para ajuizar um código social como melhor do que outro;
  4. O código moral da nossa própria sociedade não tem estatuto especial, é apenas um entre muitos;
  5. Não há uma verdade universal em ética; i.e., não há verdades morais aceitas por todos os povos em todos os tempos;
  6. É uma mera arrogância nossa tentar julgar a conduta de outros povos. Deveríamos adotar uma atitude de tolerância face às práticas de outras culturas.

A primeira tese é uma verdade sociológica, e não filosófica. Qualquer pessoa que entre em contato com culturas e sociedades diferentes verá isso. Os casos que citei anteriormente são alguns exemplos. No caso do apedrejamento, por exemplo, as sociedades árabes que aceitam tais práticas a consideram moralmente aceitável, de acordo com o código moral daquela sociedade; enquanto que em nossa cultura e sociedade tal prática é condenada. Esses exemplos corroboram com a primeira tese.

A segunda tese trata do modo como as ações são avaliadas conforme as diferentes sociedades e culturas. Como no exemplo citado, a prática da clitoridectomia é tomada como correta por aquelas sociedades uma vez que eles a avaliam de acordo com o código moral aceito por eles. Nós condenamos essa mesma prática, pois a avaliamos de acordo com o código moral aceitos por nós. Estamos inseridos em uma sociedade que aceita um código moral diferente.

As teses três, quatro e cinco são consequências do relativismo moral. A ideia é que não há um sistema, ou código moral universal que deva se aplicar em todos os lugares. As ações são avaliadas de acordo com o código moral da sua sociedade, mas não podemos pressupor um código que possa servir para avaliar todas as sociedades e culturas. Como não há verdades universais na ética, aceitas por todas as sociedades e culturas, isso faz com que haja diferentes códigos. Cada sociedade adota certas ações como moralmente corretas e outras como moralmente erradas, mas isso diverge de cultura para cultura. O nosso próprio código moral é apenas um entre muitos. Nós fazemos partes de uma sociedade, com uma cultura, entre várias outras que existem ou já existiram. Entendermos que o nosso código moral é melhor que outro é entendermos que nosso código moral ou é universal, ou existe um sistema moral universal que permite fazermos a comparação.

Toda comparação como “x é melhor que y” entende que há como base um padrão. Por exemplo, se falamos que uma faca é melhor que uma colher devemos deixar explícito qual é o padrão de comparação que usamos: se for para cortar um pedaço de carne, então de fato uma faca é melhor que uma colher; se o padrão de comparação for sobre um bom instrumento para tomarmos uma sopa, então é falso que a faca é melhor que uma colher. Do mesmo modo, se falamos que o código moral de nossa sociedade é melhor que o código moral de uma outra sociedade – essa é a ideia que se espera passar quando é afirmado que “nossa sociedade é moralmente melhor que uma outra -, devemos deixar explícito qual é o padrão de comparação. Esse padrão deverá ser algo que permite avaliarmos as qualidades morais, ou seja, esse próprio padrão deverá ser um sistema moral. No entanto, não existe um sistema moral universal que possamos usar como padrão. Portanto, não estamos autorizados a dizer que o nosso código moral é melhor que o de outra cultura, uma vez que não há um padrão universal de comparação.

Por fim, a sexta tese afirma sobre a posição de tolerância que devemos ter para com outras culturas. Como não podemos avaliar outras culturas, a não ser que adotemos o nosso código moral como padrão – e não há justificativas para isso, argumenta um relativista -, então devemos ser tolerantes para com elas. Pois, do ponto de vista de outra cultura, a nossa própria sociedade segue padrões estranhos. Assim, do mesmo modo que nós olhamos com estranhamento para os árabes que apedrejam mulheres adúlteras, eles olham para nós com estranhamento, uma vez que nós não partilhamos desse mesmo código moral.

Os Desafios do Relativismo Cultural

Uma vez exposto o que se entende por relativismo cultural, podemos então apontar possíveis desafios enfrentados por aqueles que o defendem. Irei apresentar cinco desafios. O primeiro deles se centra em um argumento específico muito utilizado pelos defensores do relativismo cultural; os próximos três desafios são consequências práticas que essa teoria leva, consequências essas que não parecem ser muito agradáveis à um defensor do relativismo cultural; o quinto desafio, por fim, ataca um dos pressupostos da teoria.

Primeiro Desafio: O argumento das diferenças culturais

Um argumento comum entre aqueles que defendem o relativismo cultural é o argumento das diferenças culturais. Basicamente o argumento tem premissas que descrevem como algumas ações, ou práticas sociais, são entendidas como moralmente permissíveis

Callatians e Gregos
Callatians e Gregos.

em certas culturas, enquanto que as mesmas ações e práticas são condenadas em outras. Baseando-se nesses exemplo, tenta-se inferir a conclusão que não há verdade objetiva na moralidade, de modo que certo ou errado são apenas questões de opiniões, que variam de cultura para cultura. O argumento poderia ser apresentado da seguinte forma:

(1)   Os gregos acreditavam que era errado comer os mortos, enquanto os Callatians acreditavam que era certo; Os esquimós acham moralmente permissível o infanticídio, enquanto na cultura ocidental acredita que é imoral; Sociedades na África e no Oriente Médio tomam como moralmente permissível a clitoridectomia, enquanto que nós a condenamos; etc. Assim, diferentes culturas possuem diferentes códigos morais.

(2)   Logo, nenhuma dessas práticas podem ser consideradas objetivamente corretas ou incorretas. Certo ou errado são questões de opiniões que variam de cultura para cultura, de modo que não há um padrão moral universal.

Será esse um bom argumento? Ele pode ser persuasivo para muitas pessoas, mas de um ponto de vista lógico, ele é um bom argumento, i.e., ele é dedutivamente válido? A validade dedutiva de um argumento visa analisar a estrutura formal do argumento. De acordo com a lógica clássica um argumento é dedutivamente válido quando sua estrutura faz com que em toda circunstância possível, se as premissas são verdadeiras, a conclusão é verdadeira. Ou seja, não é possível inferir uma conclusão falsa de premissas verdadeiras. Podemos então perguntar: Se (1) for verdadeira, poderá (2) ser falsa? Sim, há ao menos uma circunstância possível na qual a premissa (1) é verdadeira e a conclusão (2) é falsa. É logicamente possível haver diferentes culturas, com diferentes pontos de vistas sobre a moralidade e, ainda assim, haver um padrão moral que seja objetivo e universal.

Avaliando detidamente o argumento veremos que a premissa (1) trata do modo com as pessoas acreditam (em algumas sociedades as pessoas acreditam que x é correto, em outras sociedade as pessoas acreditam que x é falso). Já a conclusão (2) trata de como as coisas realmente são, trata da existência ou não de um padrão moral universal. Pensemos nessa mesma estrutura de argumento mudando os casos, por exemplo:

  • Em algumas sociedades as pessoas acreditam que a terra é plana. Em outras sociedades as pessoas acreditam que a terra é esférica.
  • Logo, não é verdade que a terra é plana, tampouco que ela é esférica, pois do fato de pessoas discordarem não há verdades objetivas em geografia.

Esse segundo argumento mantém a mesma estrutura do primeiro. As premissas tratam do modo como as pessoas pensam, no que elas acreditam, e a partir dessa premissa se tenta inferir uma conclusão sobre o que é o caso. Com a mesma estrutura fica claro que

Terra plana
Terra plana.

o argumento é inválido, pois ainda que as pessoas possam discordar sobre o formato da terra, isso não significa que não há verdades objetivas em geografia.

Os defensores do relativismo cultural podem responder a esse primeiro desafio apelando para os pressupostos que essa objeção traz. Mais especificamente, essa objeção visa analisar a validade lógica do argumento, pressupondo a lógica clássica como sistema de lógica capaz de cumprir tal tarefa. No entanto, é possível criar infinitos sistemas de lógica formal, sendo necessário haver razões pré-teóricas para aceitarmos a lógica clássica. Essa resposta é bem técnica, exigindo uma explicação maior. No entanto, vamos nos focar apenas no argumento por analogia, que fala sobre diferentes sociedades acreditarem que a terra é plana e outras que ela é esférica.

Para que um argumento por analogia seja bem sucedido a analogia proposta deve preservar propriedades relevantes para a discussão. A analogia proposta no argumento da terra plana e esférica preserva a estrutura original do argumento das diferenças culturais. Isto é, tanto o argumento sobre as diferenças culturais como o argumento da terra plana e esférica tem a estrutura no qual as premissas se baseiam no que as pessoas acreditam e tenta inferir disso uma conclusão sobre como o mundo de fato se comporta, ou seja, de como as coisas são na realidade. A analogia funciona para mostrar que essa estrutura não suporta inferir uma conclusão dessa natureza de premissas que tratam sobre o modo como as pessoas pensam.

Um relativista cultural, todavia, pode responder a essa objeção sobre a analogia afirmando que a estrutura do argumento não é uma propriedade relevante, o que torna a analogia mal sucedida. Ou seja, para que uma analogia do argumento das diferenças culturais possa funcionar, essa analogia não deve preservar a estrutura do argumento original, mas sim outra propriedade. O problema agora é: qual propriedade é relevante? O relativista cultural poderá dizer que a propriedade relevante é que as premissas e a conclusão tratam de predicados morais, i.e., tratam sobre moralidade. Diferente da geografia, que somos capazes de observar diretamente se uma afirmação é verdadeira ou falsa, podemos verificar objetivamente se a terra é plana ou esférica, nós não temos a mesma capacidade de verificação na moralidade. Nós não podemos verificar objetivamente se uma ação x é moralmente correta ou incorreta. A falta de tal objetividade para verificar afirmações morais é o que tornaria o argumento das diferenças culturais um bom argumento, e exatamente isso que falha na analogia da terra plana e esférica.

Deus cristão.
Deus cristão.

Para atacarmos o argumento das diferenças culturais, de acordo com o relativista cultural, deveremos então escolher uma analogia no qual o tema tratado seja tal que não somos capazes de verificar objetivamente se suas afirmações são verdadeiras ou falsas – tal como acontece com a moralidade, de acordo com o relativista. Uma primeira objeção que poderíamos fazer é: por que está pressuposto que não podemos verificar objetivamente se uma afirmação moral é verdadeira ou falsa? É argumentável que a verificação, ainda que não seja empírica – tal como ocorre nas ciências – é uma verificação racional. Mas essa objeção levaria uma discussão muito longa para ser feita aqui. Vamos tentar achar um caso no qual, tal como a moralidade, não somos capazes de verificar objetivamente se as afirmações são verdadeiras ou falsas. Bom, temos o caso da filosofia da religião. Não somos capazes, através das ciências, de verificar se Deus existe ou não. Além disso, grande parte da especulação filosófica sobre Deus é da mesma natureza que a discussão sobre a moralidade. Vejamos o argumento então reformulado.

  • Em algumas sociedades teístas as pessoas acreditam que Deus existe, enquanto que em outras sociedades, ateístas, as pessoas acreditam que Deus não existe.
  • Portanto, não é verdade que Deus existe, tampouco que Ele não existe. Pois do fato de pessoas discordarem sobre esse assunto isso implica que não há verdades sobre ele.

Nesse caso, aceitando que não somos capazes de verificar a existência de Deus objetivamente, a analogia preserva a propriedade exigida pelo relativista cultural. Mas, novamente, teremos o problema do argumento ser absurdo. Não é por que as pessoas acreditam que Deus existe ou não que isso implica que na realidade Ele, de fato, exista ou não. Em conclusão – para não nos prolongarmos demais – o argumento das diferenças culturais terá grandes problemas em virtude de sua natureza. Do fato das pessoas acreditarem em algumas coisas não se segue essas coisas não possam ser analisadas objetivamente, ou mesmo que não há verdade nesse assunto.

Segundo Desafio: Não podemos criticar práticas de outras sociedades

A primeira consequência prática do relativismo cultural é que não poderíamos mais criticar as ações e práticas de outras sociedades. Ainda que pareça uma consequência óbvia do relativismo cultural, isso toca em um ponto complicado. Pensemos em

Auschwitz
Auschwitz.

práticas menos “benignas”, como uma sociedade que considere moralmente correto a escravidão de todas as pessoas que têm uma cultura diferente da sua. Eles estariam justificados moralmente em sair pelo mundo escravizando pessoas, visto que essa seria uma prática social permissível diante do seu código moral. Pensemos então em uma sociedade extremamente antissemita, que considere a prisão sumária, a desapropriação de bens e até mesmo a tortura de judeus como algo aceitável diante do seu código moral. Um caso parecido com esse foi a Alemanha no período pós-primeira guerra, no qual a sociedade em geral aceitou a perseguição dos judeus, considerando tal ação como moralmente aceitável diante de seus costumes. Aceitando o relativismo cultural nós não poderíamos mais criticar tais ações e práticas, uma vez que elas estão de acordo com o código moral aceito pela cultura e sociedade onde foram praticadas.

Terceiro Desafio: Acabam-se discussões sobre moralidade

As principais discussões em filosofia moral atualmente tratam de temas sobre ética prática, como o problema do aborto, da eutanásia ou mesmo vegetarianismo. Esses problemas tentam dar uma resposta se tais ações são moralmente permissíveis ou não, i.e., se o aborto é moralmente permissível, se a eutanásia é moralmente permissível ou mesmo se o vegetarianismo é uma prática que devemos adotar como dever moral, visto que os animais teriam direitos. Esses problemas são postos em causa e o debate é acirrado, havendo bons argumentos entre aqueles que defendem que são permissíveis, como há também excelentes argumentos entre aqueles que defendem que não são moralmente permissíveis. Se adotarmos o relativismo cultural esse tipo de problema seria dissolvido, considerados pseudoproblemas, o que parece um absurdo (visto que esses debates são extremamente relevantes).

De acordo com o relativismo cultural, toda avaliação moral, i.e., a avaliação se uma ação é moralmente correta ou incorreta, é feita apenas recorrendo aos padrões culturais de uma sociedade. Deste modo não seria mais necessário tais debates, e a filosofia moral deveria restringir sua investigação para observar a cultura e dizer se algo é aceito ou não por essa cultura. Se for aceito, então é moralmente permissível. Se não for aceito, então é moralmente proibido. Todavia, poucos de nós pensamos que nosso código moral é perfeito (ou, em termos do relativismo moral, que nossas práticas sociais são perfeitas).

Quarto Desafio: Não existe mais progresso social

A ideia de progresso moral é posta em dúvida. Cada prática social, por mais imoral que pareça, era uma prática de uma determinada época. E como não há um sistema moral universal, não podemos falar que uma certa prática de antigamente é incorreta quando estamos a avaliando pelo sistema moral da nossa sociedade de hoje. O que isso implica? Bom, não podemos mais falar que nossa sociedade teve um progresso moral. Por exemplo, a repressão aos direitos das mulheres na sociedade do século XVIII era uma prática social recorrente, coisa que hoje em dia não há tanto. Hoje as mulheres têm muito mais direitos do que antes. Todavia isso não é um progresso moral segundo o relativismo cultural. Pois a repressão às mulheres no século XVIII está tão correta como o fato de darmos um maior direito às mulheres hoje. Ambas são práticas sociais, e cada uma no seu tempo. Devemos assim analisar as práticas conforme a sociedade da época.

O mesmo ocorre com a escravidão, que era uma prática cultural socialmente aceita até meados do século XIX no Brasil. A abolição da escravatura, e o declínio do trabalho escravo que ainda existe em alguns lugares do país poderia ser encarado como um progresso social. Aparentemente houve um progresso moral em nossa sociedade, seja dando mais direitos às mulheres ou abolindo escravos[1]e acabando com todo tipo de trabalho escravo. Um relativista cultural, no entanto, deve recusar a noção de progresso nesses termos. Como não há um sistema moral universal, que servia de padrão para analisarmos as diferentes sociedades (como a sociedade brasileira do século XIX e a sociedade brasileira do século XX), então não podemos dizer que há um progresso moral. Tanto a sociedade antiga, que restringia os direitos da mulher e aceitava a escravidão, estava certa em suas práticas; quanto a sociedade de hoje, que é radicalmente oposta à isso, também está certa em suas práticas. Ou seja, a intuição de estarmos progredindo moralmente é ilusória, de acordo com o relativismo cultural.

Quinto Desafio: A diferença cultural é menor que imaginamos

O relativismo cultural advoga que as diversas sociedade mantém diferenças substanciais no modo como encaram a moralidade, i.e., no modo como encaram o que é certo ou errado. Esse último desafio visa atacar essa tese. Esse desafio tenta mostrar que as diferenças são menores do que imaginamos. Para isso se faz necessário recorrermos à exemplos. A cultura indiana tem em seu código moral que é errado comer carne de vaca. Ainda que seja uma sociedade extremamente pobre, havendo regiões onde a população passa fome, as vacas não serão tocadas. Elas têm, de acordo com essa cultura, um status de sagradas. Na maior parte da cultura ocidental, por outro lado, não há tabus quanto ao consumo de carne vermelha, especialmente no consumo de carne bovina. Muito pelo contrário, o consumo da carne de vaca é tradicional para alguns de nós, como para os argentinos ou os gaúchos. Aparentemente há uma diferença substancial quanto aos valores dessas duas sociedades. Mas até que ponto existe essa diferença? Seria ela realmente substancial como advoga o relativista cultural?

Vejamos o porquê dos indianos não comerem carne. De acordo com as crenças religiosas na Índia, após a morte as almas das pessoas habitam os corpos dos animais, como os das vacas. Assim, uma vaca pode ser, na verdade, a reencarnação da avó de alguém. Observando por esse lado, eles teriam valores morais tão diferentes dos nossos? Não, pois a grande diferença são as crenças religiosas. A maior parte da diferença entre as diversas culturas se resumem aos sistemas de crenças que cada uma adota, não nos valores morais. Tanto nós como os indianos aceitamos que não devemos comer a carne dos nossos avós, principalmente se eles estiverem vivos. A diferença é que nosso sistema de crença entende que nossos avós não sobrevivem à morte de nossos corpos e reencarnam, enquanto que eles acreditam que não só sobrevivem, como também habitam em animais.

Em conclusão, como espero ter mostrado, o relativismo cultural é uma tese que enfrenta diversos desafios. Ainda que ela seja comumente defendida na acadêmica, principalmente nos departamentos de humanas, poucos pensam sobre a veracidade dessa tese. Menor ainda é o número de pessoas que se atentam para esses desafios. Conseguir oferecer respostas bem sucedidas contra esses desafios é essencial para aqueles que defendem o relativismo cultural. Assim, espero que com esse texto aqueles que rejeitem o relativismo cultural tenham munições para atacar tal tese, e para aqueles que o defendem possam fazer o importante serviço de se questionar e oferecer respostas a esses desafios.

Kherian Gracher

Kherian Gracher

Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) - e adora saber que a sigla da tua universidade é a mesma sigla da United Federation of Planets do Star Trek. Faz pós-graduação em Lógica e Epistemologia no programa de mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); é escritor da Editora Poliedro, editora de material didático; criador de conteúdo do portal Universo Racionalista e fuma cachimbo. (O que o cachimbo tem a ver com isso, até agora não sei, mas ao menos parece um bom final de frase). Adora Star Trek, como já deu para perceber, e também divulgação científica. Enfim, vive a trancos e barrancos (como diria sua avó), mas feliz. À todos, uma vida longa e próspera!