Não é novidade para ninguém que, para muitas doutrinas religiosas, a homossexualidade é um tipo de expressão romântico-sexual a ser evitado – podendo até mesmo ser o motivo de severos castigos. A Bíblia, por exemplo, cujos textos iniciais fundamentam tanto o judaísmo como o cristianismo, contém versículos que condenam explicitamente as relações homoafetivas. Os homossexuais não apenas seriam detestados pelo deus judaico-cristão (Dt 23.17-18), mas também poderiam acabar sendo executados (Lv 20.13). Apesar de não haver registros quanto à visão de Jesus de Nazaré sobre isso, as coisas não melhoraram muito no Novo Testamento (Rm 1.24-32; 1Co 6.10). Longe de sugerir que esse grande profeta do apocalipse endossava a homofobia, é possível que muitos de seus seguidores se achassem – e ainda se achem – biblicamente justificados a se opor à homossexualidade.
Em 2014, os pesquisadores Curtis Ogland e Ana Paula Verona publicaram o artigo cujo título resumido (e traduzido) é “Religião e a luta do arco-íris”. Basicamente, eles queriam sondar se a religião pode desempenhar algum papel sobre a opinião dos brasileiros a respeito da homossexualidade. Em vista do que já indicaram alguns estudos prévios, eles também estavam interessados em testar se os cristãos, em comparação com membros de outras religiões, seriam mais avessos ao relacionamento homoafetivo.
Para te contextualizar um pouco, eles mencionaram que, ao longo das últimas décadas, tem havido, em diversos países, uma crescente aceitação social a respeito do relacionamento romântico entre pessoas do mesmo sexo. Isso também tem sido observado em termos jurídicos, já que a legalização da união civil entre homossexuais é uma realidade cada vez mais presente neste planeta.[1]
Apesar disso, o Curtis e a Ana Paula citaram duas pesquisas nacionais cujos resultados não foram lá muito animadores. Enquanto uma delas verificou que 80% das pessoas são contra a homossexualidade (Paiva, Aranha, & Bastos, 2008), a outra constatou que 63% delas reprovavam a união civil de casais homossexuais (Pichonelli, 2010). Segundo eles, é possível que isso tenha alguma relação com a religiosidade dos brasileiros, uma vez que várias pesquisas internacionais já identificaram que o envolvimento religioso está relacionado com a presença de atitudes contrárias ao relacionamento homoafetivo.
A fim de testar isso, esses pesquisadores entrevistaram mais de 2 mil pessoas de quatro grandes segmentos religiosos: o catolicismo, o protestantismo, o espiritismo e o pessoal que não seguia nenhuma religião. Para detalhar um pouco, entre os protestantes, foram ouvidas pessoas tanto de denominações pentecostais como de denominações que eles chamaram de “históricas”, tais como os batistas e os metodistas. Sob o rótulo de “espíritas”, foram agrupados os participantes que seguiam o espiritismo kardecista e aqueles que participavam das religiões umbanda e candomblé. Finalmente, entre os não-religiosos, é possível que houvesse gente de diferentes perspectivas existenciais, tais como ateus, agnósticos e espiritualistas.[2] Eu digo “é possível” porque, infelizmente, o Curtis e a Ana Paula não detalharam isso para nós.
Todos os participantes foram solicitados a responder se eles concordavam ou discordavam da homossexualidade masculina, da homossexualidade feminina e da legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo.[3] E o que é que eles descobriram, então?
Em primeiro lugar, eles verificaram que, enquanto 81% de todos os entrevistados eram contra a homossexualidade masculina, 78% deles reprovavam a homossexualidade feminina. Além disso, 63% disseram ser contra a união civil entre pessoas homossexuais. Esses dados se alinham com outros levantamentos já realizados sobre o tema aqui no Brasil (Paiva et al., 2008; Pichonelli, 2010) – e, mais uma vez, eles não são nada animadores.
Em segundo lugar, os pesquisadores dividiram os católicos e os protestantes entre os mais devotos, ou praticantes, e aqueles que raramente participavam de cultos ou missas. Feito isso, eles constataram que, de forma geral, em comparação com os cristãos não-praticantes, os mais devotos eram mais propensos a ser contra a união civil homoafetiva e a homossexualidade de homens e de mulheres.[4] Segundo os autores, é possível que essas opiniões morais sejam influenciadas por um controle social exercido pelos membros das igrejas e, é claro, por doutrinas religiosas mais proibitivas.
Em terceiro lugar, eles encontraram que, em comparação com esses cristãos mais devotos, os espíritas tendiam a aceitar mais a homossexualidade e a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Quando comparados com os católicos não-praticantes, os espíritas eram também mais tolerantes a respeito da legalização do casamento entre homossexuais. Sobre isso, o Curtis e a Ana Paula sugeriram que o kardecismo e as religiões de matriz africana possuiriam um discurso religioso mais inclusivo, podendo até mesmo oferecer uma espécie de proteção social a essa população.
Por fim, os autores verificaram que, em comparação com os cristãos mais devotos, as pessoas que não seguiam uma religião eram mais favoráveis à homossexualidade e à união civil entre pessoas do mesmo sexo. Para eles, isso sugere que as pessoas não religiosas são mais tolerantes porque elas seriam menos expostas a alguns ensinamentos religiosos sobre a homossexualidade, e acabariam desenvolvendo suas posições morais a partir de outros tipos de fonte.
Em resumo, a maior parte desses dados indica que a reprovação do relacionamento homossexual é, em alguma medida, um reflexo do envolvimento dos brasileiros com o cristianismo – principalmente quando consideramos aqueles que participam mais regularmente de cultos ou missas. Embora isso não signifique que todos cristãos devotos sejam homofóbicos, essa pesquisa forneceu mais evidências de que as igrejas são uma das fontes que alimentam a homofobia.
Mas, afinal, que tipo de deus detestaria a homossexualidade e condenaria os homossexuais? Se quiser conferir minha pequena “reflexão teológica” sobre isso, não deixe de assistir ao vídeo abaixo. E, caso queira acompanhar mais conteúdos científicos sobre religião (e ateísmo), inscreva-se no meu canal do YouTube.
Notas
[1] Dei preferência aos termos e expressões técnicos utilizados pelos autores do estudo, tais como “sexo” (em vez de “gênero”) e “união estável” (em vez de “casamento”).
[2] “Espiritualistas” são as pessoas que, embora não seguem uma religião, apresentam práticas e experiências que têm como epicentro a crença em seres espirituais. Para compreender melhor as semelhanças e as diferenças entre espiritualidade e religiosidade, assista ao meu vídeo sobre isso no YouTube.
[3] Embora esse artigo tenha sido publicado em 2014, seus dados foram coletados em 2002 – quase dez anos antes de a união civil entre pessoas do mesmo sexo ter sido legalizada no Brasil.
[4] Como exceção, os autores verificaram que os protestantes históricos não-praticantes e os devotos não se diferenciaram quanto à sua reprovação da homossexualidade e da união civil entre pessoas do mesmo sexo.
Referências
- Ogland, C. P., Verona, A. P. (2014). Religion and the rainbow struggle: Does religion factor into attitudes toward homosexuality and same-sex civil unions in Brazil? Journal of Homosexuality, 61(9), 1334–1349.
- Paiva, V., Aranha, F., & Bastos, F. I. (2008). Opinions and attitudes regarding sexuality: Brazilian national research, 2005. Revista de Saude Publica, 42, 54–64.
- Pichonelli, M. (2010). População rejeita mudanças na lei sobre aborto, gays e drogas [Population rejects changes to the law on abortion, gays, and drugs]. iG São Paulo. Retrieved from http://ultimosegundo.ig.com.br/