Traduzido por Julio Batista
Original de Rui Diogo para o The Conversation
O racismo sistêmico e o sexismo permeiam a civilização desde o surgimento da agricultura, quando as pessoas começaram a viver em um lugar por muito tempo. Os primeiros cientistas ocidentais, como Aristóteles na Grécia antiga, foram doutrinados com as narrativas etnocêntricas e misóginas que permeavam sua sociedade. Mais de 2.000 anos depois dos escritos de Aristóteles, o naturalista inglês Charles Darwin também extrapolou as narrativas sexistas e racistas que ouviu e leu em sua juventude naturalista.
Darwin apresentou suas visões tendenciosas como fatos científicos, como em seu livro de 1871 “A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo”, onde ele descreveu sua crença de que os homens são evolutivamente superiores às mulheres, os europeus superiores aos não europeus e as civilizações hierárquicas superiores às pequenas sociedades igualitárias. Nesse livro, que continua a ser estudado em escolas e museus de história natural, ele considerava “os ornamentos hediondos e a música igualmente hedionda admirada pela maioria dos selvagens […] não tão altamente desenvolvidos quanto em certos animais, por exemplo, em pássaros”, e comparou a aparência dos africanos ao macaco do Novo Mundo Pithecia satanas.
A ciência não está imune ao sexismo e ao racismo.
“A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo” foi publicado durante um momento de conflitos sociais na Europa continental. Na França, a Comuna de Paris da classe trabalhadora saiu às ruas pedindo uma mudança social radical, incluindo a derrubada das hierarquias sociais. As alegações de Darwin de que a subjugação dos pobres, não-europeus e mulheres era o resultado natural do progresso evolucionário eram música para os ouvidos das elites e daqueles que estavam no poder dentro da academia. A historiadora da ciência Janet Browne escreveu que a ascensão meteórica de Darwin na sociedade vitoriana não ocorreu apesar de seus escritos racistas e sexistas, mas em grande parte por causa deles.
Não é por acaso que Darwin teve um funeral de estado na Abadia de Westminster, uma honra emblemática do poder inglês, e foi comemorado publicamente como um símbolo do “sucesso inglês em conquistar a natureza e civilizar o globo durante o longo reinado da Rainha Vitória”.
Apesar das mudanças sociais significativas que ocorreram nos últimos 150 anos, narrativas sexistas e racistas ainda são comuns na ciência, na medicina e na educação. Como professor e pesquisador da Universidade Howard, estou interessado em combinar meus principais campos de estudo, biologia e antropologia, para discutir questões sociais mais amplas. Em uma pesquisa que publiquei recentemente com minha colega Fatimah Jackson e três estudantes de medicina da Universidade Howard, mostramos como as narrativas racistas e sexistas não são coisa do passado: elas ainda estão presentes em papers científicos, livros didáticos, museus e materiais educacionais.
De museus a papers científicos
Um exemplo de como as narrativas tendenciosas ainda estão presentes na ciência hoje são as inúmeras representações da evolução humana como uma tendência linear de seres humanos de pele mais escura e “primitivos” para seres humanos mais “evoluídos” com um tom de pele mais claro. Museus de história natural, sites e patrimônios da UNESCO mostraram essa tendência.
O fato de tais representações não serem cientificamente precisas não desencoraja sua circulação contínua. Aproximadamente 11% das pessoas que vivem hoje são “brancas” ou descendentes de europeus. As imagens que mostram uma progressão linear para a brancura não representam com precisão a evolução humana ou a aparência dos humanos vivos hoje, como um todo. Além disso, não há evidências científicas que sustentem um clareamento progressivo da pele. A pigmentação mais clara da pele evoluiu principalmente em apenas alguns grupos que migraram para regiões não africanas com latitudes altas ou baixas, como as regiões do norte da América, Europa e Ásia.
As ilustrações da evolução humana tendem a retratar o clareamento progressivo da pele.
Narrativas sexistas também ainda permeiam a academia. Por exemplo, em um paper de 2021 sobre um famoso fóssil humano antigo encontrado no sítio arqueológico de Sierra de Atapuerca, na Espanha, os pesquisadores examinaram os dentes caninos dos restos mortais e descobriram que era na verdade o de uma menina entre 9 e 11 anos. Anteriormente, acreditava-se que o fóssil era um menino devido a um popular livro de 2002 de um dos autores desse paper, o paleoantropólogo José María Bermúdez de Castro. O que é particularmente revelador é que os autores do estudo reconheceram que não havia nenhuma razão científica para os restos fósseis terem sido designados como masculinos em primeiro lugar. A decisão, eles escreveram, “surgiu aleatoriamente”.
Mas essas escolhas não são verdadeiramente “aleatórias”. Representações da evolução humana frequentemente mostram apenas homens. Nos poucos casos em que as mulheres são retratadas, elas tendem a ser mostradas como mães passivas, não como inventoras ativas, pintoras de cavernas ou coletoras de alimentos, apesar dos dados antropológicos disponíveis mostrarem que as mulheres pré-históricas eram todas essas coisas.
Outro exemplo de narrativas sexistas na ciência é como os pesquisadores continuam a discutir a evolução “intrigante” do orgasmo feminino. Darwin construiu narrativas sobre como as mulheres eram evolutivamente “tímidas” e sexualmente passivas, embora ele reconhecesse que as fêmeas selecionam ativamente seus parceiros sexuais na maioria das espécies de mamíferos. Como vitoriano, era difícil para ele aceitar que as mulheres pudessem desempenhar um papel ativo na escolha de um parceiro, então ele argumentou que tais papéis só se aplicavam às mulheres no início da evolução humana. De acordo com Darwin, os homens mais tarde começaram a selecionar sexualmente as mulheres.
As narrativas sexistas sobre as mulheres serem mais “tímidas” e “menos sexuais”, incluindo a ideia do orgasmo feminino como um quebra-cabeça evolutivo, são contrariadas por uma ampla gama de evidências. Por exemplo, as mulheres são as que mais frequentemente experimentam orgasmos múltiplos, bem como orgasmos mais complexos, elaborados e intensos em média, em comparação com os homens. As mulheres não são biologicamente menos sexuais, mas os estereótipos sexistas foram aceitos como fato científico.
O ciclo vicioso do racismo e sexismo sistêmico
Materiais educacionais, incluindo livros didáticos e atlas anatômicos usados por estudantes de ciências e medicina, desempenham um papel crucial na perpetuação de narrativas tendenciosas. Por exemplo, a edição de 2017 do “Netter Atlas of Human Anatomy”, comumente usado por estudantes de medicina e profissionais clínicos, inclui cerca de 180 figuras que mostram a cor da pele. Destes, a grande maioria apresenta indivíduos do sexo masculino com pele branca, e apenas dois apresentam indivíduos com pele “mais escura”. Isso perpetua a representação do homem branco como o protótipo anatômico da espécie humana e falha em exibir toda a diversidade anatômica das pessoas.
Livros didáticos e materiais educacionais podem perpetuar os preconceitos de seus criadores na ciência e na sociedade.
Autores de materiais didáticos para crianças também replicam os vieses em publicações científicas, museus e livros didáticos. Por exemplo, a capa de um livro de colorir de 2016 intitulado “The Evolution of Living Things” mostra a evolução humana como uma tendência linear de criaturas “primitivas” de peles mais escuras a um homem ocidental “civilizado”. A doutrinação entra em um ciclo vicioso quando as crianças que usam esses livros se tornam cientistas, jornalistas, curadores de museus, políticos, autores ou ilustradores.
Uma das principais características do racismo e sexismo sistêmico é que ele é inconscientemente perpetuado por pessoas que muitas vezes não percebem que as narrativas e escolhas que fazem são tendenciosas. Os acadêmicos podem lidar com vieses de longa da data racistas, sexistas e centrados no Ocidente, sendo mais alertas e proativos na detecção e correção dessas influências em seu trabalho. Permitir que narrativas imprecisas continuem circulando na ciência, na medicina, na educação e na mídia perpetua não apenas essas narrativas nas gerações futuras, mas também a discriminação, a opressão e as atrocidades que foram justificadas por elas no passado.