Publicado no Jornal da USP
O uso do anticoagulante heparina melhorou o funcionamento dos pulmões e a oxigenação do sangue em pacientes com casos graves de COVID-19 em tratamento realizado no Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, com participação de médicos da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). A heparina reverteu obstruções nos vasos sanguíneos do órgão, melhorando a respiração e fazendo o oxigênio chegar ao sangue. Com a melhora, os pacientes puderam deixar de usar ventilação mecânica e sair da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do hospital.
Os resultados são descritos em artigo publicado no site MedRxiv em 22 de abril. A ideia do tratamento surgiu em março, a partir do acompanhamento da primeira paciente com COVID-19 internada na UTI do Sírio-Libanês, que apresentava cianose de extremidades (pontas dos dedos azuladas) e uma queda abrupta da oxigenação do sangue. “Embora o pulmão estivesse insuflando o ar normalmente, o oxigênio não estava entrando na corrente sanguínea”, relata a médica pneumologista Elnara Negri, professora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), que coordena o estudo.
Melhora progressiva
A partir da análise deste e de outros casos, foi levantada a hipótese de que havia um quadro de coagulação intravascular nos pulmões, em reação à tempestade inflamatória causada pelo vírus, impedindo que o oxigênio chegasse ao sangue.
“Como a paciente já apresentava sinais de trombose na pele, foi indicado um anticoagulante e em oito horas acontece uma melhora da oxigenação, fazendo com que os dedos voltassem a ter sua coloração normal. Essa paciente teve alta e já retornou para casa”, ressalta Elnara.
A médica decidiu entrar em contato com médicos do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP que fizeram autópsia em pessoas que morreram de COVID-19, verificando que elas apresentavam um grande número de trombos na microcirculação pulmonar, confirmando a hipótese inicial. “A heparina é largamente utilizada no tratamento de fenômenos trombóticos na pratica clínica”, conta. “Os pacientes foram tratados após o aparecimento da insuficiência respiratória e melhoraram progressivamente, saindo ou não necessitando mais da ventilação mecânica”.
A heparina é aplicada em casos graves que evoluem para queda da oxigenação do sangue. “Este estudo inicial inclui 27 pacientes com COVID-19 com escore WHO 3 a 7, um indicador de gravidade da doença estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), média de idade de 56 anos, comorbidades como diabetes, obesidade e cardiopatias, entre outras”, relata Elnara. “Os pacientes apresentaram uma média de tempo de internação em torno de 10 a 15 dias e todos estão vivos. A maioria já teve alta e apenas três se encontram na UTI ainda”.
De acordo com a médica, o tratamento com heparina tem custo acessível e já é utilizado no Sistema Único de Saúde (SUS), o que poderá torná-lo disponível para um grande número de pessoas. “Ele é contraindicado para pacientes com grande risco de sangramento, como os que apresentam algumas lesões tumorais, que tiveram acidente vascular cerebral (AVC) recentemente ou foram operados há pouco tempo”, observa.
Os pesquisadores pretendem consolidar os resultados obtidos nos tratamentos utilizando doses diferentes de heparina em um número maior de pacientes. “Numa etapa posterior, será feito um estudo em pacientes que se encontrem no estágio anterior à internação na UTI, que vão receber anticoagulante precocemente para evitar a entubação e o uso de ventilador mecânico”, planeja Elnara.
A pesquisa será iniciada após a aprovação pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). “O tratamento é para as complicações que o vírus traz para o organismo, destinado aos pacientes em estado mais grave”, aponta a médica. “A prevenção e a cura da doença virão somente com o desenvolvimento de vacinas e medicamentos antivirais”.
Os resultados preliminares do tratamento foram divulgados na forma de preprint, para informar e orientar outros médicos e estudiosos no Brasil e no exterior. O trabalho conta com a colaboração dos médicos das áreas de pneumologia, hematologia e terapia intensiva do Sírio-Libanês, pesquisadores do Laboratório de Biologia Celular (LIM-59) e do departamento de Hematologia e Hemoterapia da FMUSP, do Instituto do Coração do HC e do AC Camargo Cancer Center.
A médica comenta que é possível que o quadro de trombose verificado na microcirculação pulmonar possa ter relação com casos de AVC em pacientes jovens com a COVID-19, conforme vem sendo relatado nos Estados Unidos. “O estado de hipercoagulabilidade destes pacientes tem sido cada vez mais verificado em várias situações”, afirma.