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Science Wars: Uma Guerrilha Contra a Ciência Moderna

Por Gustavo Arja Castañon
Publicado no Boletim de Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Introdução

No espírito do tema deste boletim, este artigo levanta questões sobre aquele que é considerado hoje o grande “desencontro” entre as ciências naturais e as sociais: as assim chamadas science wars. Essencialmente, essas são uma série de publicações de artigos, réplicas e tréplicas, assim como poucas edições coletivas de livros e revistas, que marcam um conjunto de disputas acadêmicas em torno da natureza da ciência que se acirraram no início dos anos noventa.

Uma guerra tem que ter, no mínimo, dois lados. Mas as descrições sobre quem seriam os protagonistas da science wars variam de acordo com quem as faz. Quando a descrição é feita por um espectador relativamente alheio ao debate, geralmente se segue o apelido e se atribui a guerra a uma disputa entre as ciências sociais e as ciências naturais. Quando a descrição é feita por um cientista natural, geralmente aparece como uma disputa entre pós-modernistas e cientistas. Quando é a de um cientista social, geralmente aponta para uma guerra entre o reacionarismo autoritário de uma visão anacrônica de ciência e o progressismo de uma nova epistemologia social.

Não se pretende aqui apontar a interpretação correta para a batalha em torno das science wars, mas sim oferecer uma nova interpretação para essas últimas. E esta é a de que não existe guerra alguma. O que existe é uma luta de um lado só, uma guerrilha sem esperança conduzida por acadêmicos relativistas radicais contra a mais bem sucedida atividade humana dos últimos trezentos anos, a ciência moderna.

O que temos assistido claramente desde os anos noventa (e que tem se gestado desde os setenta) é uma confederação de acadêmicos, fora do foco do interesse público e financiamento estatal ou privado, investindo suas carreiras num ataque sistemático contra a concepção moderna de ciência. Particularmente, investem contra a ideia de objetividade científica, ou seja, a crença de que atividade científica possui uma forma de inquérito que oferece uma forma privilegiada de acesso a aspectos da realidade. Desta confederação fazem parte setores da antropologia, crítica literária, estudos culturais e sociologia da ciência, além da filosofia feminista e psicologia social pós-moderna.

Construindo socialmente uma “ciência”

Embora as science wars tenham se espalhado por vários campos dos assim chamados social studies, os argumentos que as alimentaram têm fontes claras em Thomas Kuhn (1991) e sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962. Somaram-se depois a esta algumas ideias radicais e heterodoxas de Paul Feyerabend (1989). Mas a crítica filosófica à concepção tradicional de ciência só começou a ganhar ares de guerra entre ciências quando uma disciplina da sociologia percebeu a oportunidade que se abria com ela. Foi a sociologia do conhecimento, que com a alegação de que aplicava o método científico ao estudo da ciência (natural), criou o mito de que um conjunto de debates e críticas oriundos da filosofia da ciência era na verdade o foco de uma guerra entre campos da ciência sobre concepções de ciência.

As teses que deram às science wars a forma que tem hoje vieram do strong programme da sociologia da ciência. Conhecemos hoje estas teses mais sob a denominação de ‘construtivismo social’. O construtivismo social é uma abordagem filosófica que consiste fundamentalmente em um conjunto de pressupostos filosóficos e diretrizes políticas a serem aplicadas à disciplina da sociologia do conhecimento. Seu ancestral sociológico é Karl Manheim, pioneiro da disciplina que defendia a tese de que a distinção entre conhecimento e crença pessoal é meramente o endosso coletivo dado às crenças do primeiro tipo. No entanto, Manheim não cedeu à tentação do sociologismo, uma vez que acreditava que forças sociais determinavam toda ideação humana, exceto os conceitos físico-matemáticos (MANHEIM, 1971). Esta restrição rendeu duras críticas por parte de David Bloor, principal autor do strong programme, que acusou Manheim abertamente de falta de “nervos” (1991, p.11) para assumir o que Bloor acha inevitável, ou seja, que toda ideação humana é causada socialmente, portanto, deve ser objeto da sociologia.

Esta “tese forte” da sociologia da ciência surge de um grupo de sociólogos da Universidade de Edimburgo, em meados dos anos setenta, que liderados por Barry Barnes e David Bloor lançam o programa forte. São marcos fundadores deste programa as obras Scientific Knowledge and Sociological Theory, de 1974, e Knowledge and Social Imagery, de 1976 (BLOOR, 1991).

Entre as principais diferenças do strong programme em relação ao trabalho que era efetuado em sociologia do conhecimento antes de seu surgimento está a convicção de que pertencem ao âmbito da própria sociologia as questões epistemológicas relativas à sua validade como ciência, além da concentração do foco de estudo no conhecimento científico, em detrimento de todas as outras alegações de conhecimento.

Como afirma Oliva (2003), enquanto as filosofias da ciência tradicionais se comprometiam com a universalização dos métodos das ciências naturais, as epistemologias “heterodoxas” passaram a acalentar a pretensão de explicar a racionalidade das ciências, incluindo as naturais, recorrendo às ciências sociais, em especial à sociologia. Isso constitui uma grande inversão: uma disciplina altamente questionada em sua cientificidade passa a querer explicar a condição de cientificidade de disciplinas como a Física. Oliva (2005) defende que essa mudança radical nas pretensões da sociologia não decorre de nenhuma mudança causada pelo desenvolvimento interno da disciplina, e sim das novas concepções epistemológicas surgidas da “Nova Filosofia da Ciência”, particularmente, das ideias de Kuhn e Feyerabend.

Para Bloor (1991), o programa forte é essencialmente um conjunto de quatro requerimentos metodológicos desenvolvidos para os sociólogos do conhecimento científico: causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade. Talvez a tese mais característica do construtivismo social seja a da simetria. Esta consiste na crença, expressa originalmente na obra referência de Barry Barnes (1974), de que os sociólogos devem tratar e investigar todas as crenças sobre a natureza e a sociedade da mesma forma, considerando que tanto as crenças alegadamente “corretas” ou “científicas” quanto as “incorretas” ou “não-científicas” são derivadas das mesmas fontes, estão sujeitas às mesmas causas, e, portanto, submetidas às mesmas formas de explicação sociológica. Como crenças verdadeiras não teriam uma credibilidade intrínseca maior que crenças falsas, sua aceitação depende das mesmas espécies de forças sociais que produzem a eventual aceitação de crenças falsas. Isto leva ao princípio complementar de imparcialidade, que prega a necessidade de o investigador colocar em suspenso suas crenças pessoais quanto à falsidade ou veracidade última das crenças que ele está investigando.

A terceira diretriz que caracteriza o construtivismo social é sua demanda por explicações sociológicas causais, não meramente descritivas, a qual Bloor (1991) denomina ‘causalidade’. Assim o “strong programme” não aceita uma produção descritiva ou interpretativa, sua meta é produzir explicações sociológicas de caráter causal sobre o que provoca e sustenta uma disciplina científica e seu alegado corpo de conhecimento. Isso não significa para Bloor (1991) que somente causas de natureza social determinam a construção do conhecimento.

Este é um ponto de divisão no construtivismo social, que se expandiu para além do programa forte da escola de Edimburgo. Ele varia desde a posição supostamente moderada, mas imprecisa, do strong programme de Bloor ou Barnes sobre o papel do sujeito e do mundo natural no processo de construção do conhecimento até as posições mais extremas de Steve Woolgar (1988), Harry Collins (1981), Lynn Nelson (1993) ou do primeiro Bruno Latour (LATOUR & WOOLGAR, 1986), que defendem abertamente que o conhecimento é totalmente construído socialmente e que aquilo que chamamos de fatos naturais são na verdade produtos da atividade social científica.

As declarações de Barnes e Bloor em defesa do realismo de sua posição, que geralmente surgem como respostas a críticos do strong programme, são na verdade postas em dúvida por outras ao longo de sua obra (CASTAÑON, 2009). Mesmo depois de mais de trinta anos da publicação de suas obras fundamentais, literalmente dezenas de críticos de peso como o próprio Kuhn (2003), Larry Laudan (1981), Mário Bunge (1991, 1992), Ilkka Niiniluoto (1999), Alan Sokal (2001), André Kukla (2000) entre outros continuam, apesar das respostas e replicações de ambos, ininterruptamente a acusar sua posição de idealismo, ainda que geralmente de um “idealismo epistemológico” (ceticismo). No mínimo, tal nível de possível incompreensão, que se estenderia até a colegas da Universidade de Edimburgo simpáticos ao projeto geral do strong programme como o sociólogo Stephen Kemp (2005), indica um alto grau de imprecisão ontológica de sua posição, mesmo mais de trinta anos depois de sua primeira formulação.

Por fim, temos a proclamação do princípio de reflexividade, que segundo Bloor (1991) indica a necessidade de sociólogos do conhecimento não reivindicarem uma posição de segunda ordem em relação ao conhecimento científico, ou dito com suas palavras, um ponto de vista transcendente para justificar suas alegações. Bloor (1991) afirma que nenhuma teoria sociológica do conhecimento é aceitável a menos que seja aplicável a si mesma, assim, as crenças do construtivismo social são também elas causadas socialmente. Acreditam os construtivistas sociais que a mera proclamação deste princípio pode livrá-los do problema da auto-refutação.

O construtivismo social afirma que a ciência moderna não é um modo de produção de conhecimento superior aos outros, e que a distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta é artificial. A posição epistemológica tradicional afirma que a produção da pesquisa (contexto de descoberta) pode ser explicada em termos do ambiente sócio-cultural em que a pesquisa se dá, mas a sua validação, a aferição do valor epistêmico dela (contexto de justificação), é determinada por critérios lógicos e empíricos que em nada dependem do contexto social. Esses critérios é que são questionados por sua suposta a-historicidade e universalidade por Kuhn e Feyerabend, cujos argumentos são endossados e reescritos pelo construtivismo social. Este último julga tais critérios tão condicionados pelo ambiente sócio-cultural como as teorias científicas, já que no fim das contas, estes critérios também seriam teorias.

Construindo socialmente uma “guerra”

As teses do construtivismo social serviram de munição para todo o campo dos social studies, que repentinamente se viu na posse de armas retóricas capazes de o apresentar em igualdade de condições epistêmicas com a Física ou a Biologia. Foi no início dos anos noventa que a avalanche de trabalhos disciplinares contra o privilégio epistemológico das ciências naturais chegou ao seu auge. Na época, o termo ‘science wars’ já tinha sido cunhado, mas pouca munição por parte dos cientistas naturais tinha sido disparada. Uma das exceções foi a obra Higher Superstition: The Academic Left and Its Quarrels With Science, de Paul Gross e Norman Levitt.

Os inimigos da ciência moderna continuavam falando praticamente sozinhos, mas ganhando inegável espaço acadêmico no campo dos estudos culturais, quando a revista Social Text, bíblia dos social studies, resolveu lançar em 1996 uma edição especial dedicada às science wars. Foi então que um físico da New York University resolveu fazer aquilo que ele chamou de “um experimento”. Se apresentando entre outras coisas como ex-professor convidado da Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua durante o governo sandinista, Alan Sokal (1996) submeteu à Social Text uma paródia de artigo, intitulado Transgressing the boundaries: Toward a transformative hermeneutics of quantum gravity. Se o título é ridículo, o artigo é um aglomerado de frases sem sentido, argumentos non sequitur e citações de “autoridades” pós-modernas. A parte dedicada às referências bibliográficas e notas de rodapé ocupa mais de dois terços do “artigo”. Seu corpo de texto é em essência uma peça humorística cínica e refinada, misturando física contemporânea e matemática com as afirmações absurdas que muitos construtivistas sociais e filósofos, geralmente franceses, fazem utilizando os termos destas ciências.

Mas como esperado, o artigo não só foi aceito como publicado acompanhado de loas dos editores à entrada da Física na era pós-moderna. Então, Sokal revelou a piada, e o episódio ficou conhecido como The Sokal Hoax, marcando o acirramento das chamadas science wars. De fato, tratou-se de uma chocante e barulhenta humilhação para a confederação de “críticos sociais da ciência”.

Este evento não marcou a refutação do construtivismo social ou o descarte da filosofia francesa contemporânea. Ele só mostrou a todos o nível de impostura linguística, filosófica e científica ao qual chegamos. Ele mostrou que o rei estava nu, há muito tempo. Deixou claro que a maioria das críticas sociológicas feitas às ciências naturais não tem na verdade a menor ideia sobre a natureza das teorias científicas que critica. Se seguiram à paródia de Sokal as reações antirrelativistas The Flight from Science and Reason, volume coletivo baseado numa conferência de mesmo nome (GROSS, LEVITT & LEWIS, 1997), e Fashionable Nonsense, do mesmo Sokal em conjunto com Jean Bricmont (2001). Finalmente então, os sociólogos da ciência e seus seguidores tinham como alegar estar numa guerra: o inimigo estava contra-atacando.

Mas os problemas em afirmarmos que estamos numa guerra entre as ciências não são afetados por estes eventos, e eles são dois. O primeiro, que não será discutido aqui, é o fato de que nenhuma das disciplinas citadas como parte da confederação de guerra tem ainda seu status de ciência estabelecido ou reconhecido. O que temos, portanto, são disciplinas que aspiram ao status social de ciência atirando desesperadamente contra disciplinas que gozam de alto prestígio e credibilidade social, possuindo longo portfólio de leis preditivas altamente eficientes.

Entretanto, o que fundamentalmente se questiona aqui quanto à existência de uma guerra entre as ciências é o fato de que não há por parte da física, química, biologia, astronomia ou neurociência qualquer preocupação em relação à prática da sociologia da ciência, crítica literária, filosofia feminista ou estudos culturais. Essa prática não é objeto de crítica ou investigação por parte das ciências naturais. O que temos são filósofos ou cientistas naturais que, eventualmente, colocam de lado seus afazeres para criticar as ideias que estão sendo difundidas contra a ciência moderna por setores dos social studies.

Já o contrário não se aplica. Filósofas feministas, antropólogos da ciência e sociólogos da ciência geralmente dedicam todo o seu tempo de trabalho, estudos e carreira às interpretações de dados empíricos (quando muito) que sempre apontam para a conclusão de que a ciência natural é uma atividade de status epistemológico idêntico a mitos, ritos religiosos, folclore ou negociações políticas, e que suas realizações não passam de construções sociais politicamente validadas.

O que concluo disso é que não há guerra entre ciências. No máximo, existe uma guerrilha da sociologia da ciência e associados contra o prestígio social da ciência moderna que eventualmente encontra reação de alguns cientistas e filósofos. Apesar desta, o impacto do construtivismo social e congêneres no prestígio social e nas práticas metodológicas reais da física, química e biologia é equivalente ao impacto de uma mosca contra uma parede de concreto. A caravana da ciência moderna continua e vai continuar a passar porque, a despeito do avanço do relativismo e do irracionalismo em alguns setores da academia, ela é a cada dia praticada com um otimismo epistemológico maior, ancorada em resultados espetaculares acumulados nos últimos trezentos anos. A enorme diferença entre o otimismo e a reputação epistêmica da ciência entre a população e os próprios cientistas, e o pessimismo epistemológico dos sociólogos e de certos filósofos, só serve para ilustrar mais uma vez a alienação destes últimos. No negócio científico das explicações causais, seu fracasso é completo.

Por que o barulho então?

O sucesso dessa nova sociologia da ciência é político-acadêmico, não científico. Isto se dá, como apontou Searle (2000), porque a ideia de que tudo é uma construção social, de que não existe mundo real, é libertadora para muitos, fornecendo um discurso para a racionalização do ódio e rancor em relação às ciências naturais. Entre esses se encontram todo um conjunto de praticantes de disciplinas imaturas cientificamente e que permanecem ainda num segundo plano acadêmico e social. Cavalgando os instrumentos retóricos do construtivismo social, se lançam numa cruzada para minar o poder social dos cientistas naturais e fortalecer o próprio.

Mas não só setores da academia bebem desta fonte. Boghossian (2006) lembra que o medo do conhecimento é natural em culturas minoritárias que defendem teses ou crenças míticas que a ciência revela falsas. Movimentos políticos pós-colonialistas, nacionalistas e fundamentalistas, assim como o multiculturalismo, encontram no construtivismo social e na sua retórica das science wars recursos para proteger culturas “oprimidas” pela razão e a ciência. Como afirmou Hacking (1999, p.67), “O que é verdade é que muitos inimigos da ciência e ‘sabe-nadas’ se fecham no construtivismo para justificar sua hostilidade impotente em relação às ciências. O construtivismo fornece uma voz para aquela ira contra a razão”.

O relativismo radical, do qual o construtivismo social é só outra versão, é um dogmatismo de um dogma só. Mais ainda, ele é o mais primário e estreito dos dogmatismos, pois elimina até a possibilidade de se aderir a novos dogmas. Como disse Alain, nada é mais perigoso que uma ideia, quando só se tem uma ideia. Quando esta única ideia é a de que todas as alegações de conhecimento se equivalem, o resultado pode ser o fortalecimento de movimentos obscurantistas e fundamentalistas em nossa sociedade. Aparentemente, esse é o mesmo o objetivo oculto dessa guerra de papel.

Referências

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Gustavo Castañon

Gustavo Castañon

Graduado em Psicologia e Filosofia, professor do departamento de Filosofia e do programa de pós-graduação em Psicologia da UFJF.