Por Mario Bunge
Publicado no El Basilisco
A edição nº 14 do EL BASILISCO traz uma crônica do Sr. José María Laso Prieto que contém uma quantidade de estranhas afirmações acerca de minha filosofia. Permita-me analisá-las.
1. O meu enfoque “constitui um ‘renascimento’ dos postulados neopositivistas, ainda que se assuma a necessidade de superar os seus caminhos estreitos, segue mantendo uma consideração da ciência como realidade de indesculpável base proposicional” (p. 57). Deixando de lado os anglicismos “assume” (por “supõe”) e “mantém” (por “asseguro”), o que significa a expressão “realidade de indesculpável base proposicional”? Que a ciência não é nada mais do que um conjunto de proposições? Por certo que não defendo tal opinião. Creio que a palavra “ciência” é ambígua: em um contexto, denota um conjunto de conhecimentos expressáveis em proposições e normas; em outro contexto, denota um tipo de atividade cognitiva; em um terceiro, o sistema social composto por pesquisadores científicos. Os positivistas têm respeitado apenas o primeiro significado, os pragmatistas o segundo, e os sociologistas o terceiro. Em minhas próximas obras, Exploring the World y Understanding the World (Reidel, 1983), concebo a ciência tanto como um sistema social quanto uma atividade e os resultados conceituais desta.
2. O meu crítico assegura (“mantém”?) que em minha ontologia “coexistem posições próximas a um materialismo mecanicista com uma concepção epistemológica geral caracterizada por uma dialética peculiar” (p. 58). Em particular, eu seria um dialético “vergonhoso” por utilizar os conceitos de emergência, nível, processo evolutivo, sistematicidade e dinamicismo. Respondo: esses conceitos não são peculiares da dialética e, salvo o terceiro, não figuram nas obras dos clássicos do materialismo dialético. O conceito de emergência foi introduzido por G. H. Lewes em 1879 e foi central na obra de S. Alexander de 1920, assim como o de C. Lloyd Morgan (o etólogo) de 1933. O conceito de nível (integrativo ou de organização), tal como o uso, parece ter sido introduzido por biólogos e psicólogos animais na década de 1940; entre outros que usaram com insistência J. Needham (1943), A. B. Novikoff (1945) e T. C. Schneirla (1949), três cientistas anglo-saxões. O conceito de processo evolutivo é, obviamente, muito mais velho: foi utilizado por Buffon, Lamarck, e os dois Darwin antes que Marx e Engels. O de sistema deve ser antigo, mas não aparece explicitamente, apenas com Copérnico, o primeiro cientista moderno que concebeu o sistema solar como sistema e não mero agregado. Finalmente, o conceito de dinamicismo deve ter sido utilizado por qualquer um que tenha pensado em termos dinâmicos (não meramente cinemáticos). Por exemplo, as ontologias de Descartes, Leibniz, Spinoza e Newton foram netamente dinamicistas. O que o Sr. Laso Prieto crê é que todos esses termos são típicos da filosofia dialética, o que me faz suspeitar que as suas leituras têm sido muito ortodoxas.
3. A minha oposição à dialética não seria sincera, mas que “está condicionada pelos múltiplos riscos que, no ambiente anglo-saxônico, onde Bunge trabalha, supõe definir-se duplamente como dialético e materialista”. Isso é um argumentum ad hominem indigno de uma publicação séria. Responderei brevemente. Primeiro, creio ter mostrado, em meu Materialismo y Ciencia (Ariel, 1981), inúmeros novos argumentos contra a dialética; entre eles, o que faz dela impossível de entender a emergência de sistemas pela cooperação de seus componentes. Em segundo lugar, ainda que o materialismo dialético não seja popular nas universidades norte-americanas, se o ensina em muitas delas. (Por exemplo, na Université du Québec à Montréal, o curso de materialismo histórico é realizado todos os anos e é obrigatório para todos os alunos de sociologia.) O marxismo, que é academicamente respeitável, e, por conseguinte, a teoria econômica marxista é ensinada em todos os cursos de história de doutrinas econômicas. Há várias revistas marxistas norte-americanas onde colaboram regularmente professores universitários. A Society for the Study of Dialectical Materialism vem reunindo-se juntamente com a American Philosophical Association há quase duas décadas. É verdade que, na questão de diferença dos países socialistas, nos capitalistas ninguém é premiado por ser marxista. Mas também é verdade que é menos arriscado ser marxista em um país capitalista do que ser antimarxista em um país socialista. E, em todo caso, o marxismo puramente acadêmico, que floresceu nas universidades espanholas na última década do franquismo, não assusta em nada. O materialismo consequente assusta e repele.
4. O meu crítico me repreende por ignorar que os experimentos “testemunham que as propriedades corpusculares e ondulatórias são próprias, simultaneamente, dos micro-objetos”, o qual exemplificaria a “lei” da luta e a unidade dos contrários. Os físicos, que conhecem essas coisas de primeira mão e não por artigos de divulgação, sabem que isso não é verdade. Os experimentos que exibem propriedades quasicorpusculares (p. ex. o efeito Compton) não são os mesmos que exibem propriedades quasiondulatórias (p. ej. a difração de elétrons). Ainda, não podem efetuar-se ao mesmo tempo; ou seja, que os experimentos não testemunham a tese dialética de que os micro-objetos são e não são corpusculares, são ou não são ondulatórios. Advirto-lhe que escrevi quasicorpuscular e quasiondulatório, porque elétrons, átomos e demais objetos quânticos não são corpúsculos nem campos, mas objetos sui géneris. Tanto é assim que são representados por teorias quânticas, não clássicas. Me refiro a W. Heisenberg, The Physical Principles of the Quantum Theory (University of Chicago Press, 1930) e ao meu próprio livro Foundations of Physics (Springer-Verlag, 1967), com a advertência de que eles não são manuais de divulgação.
5. A meu crítico lhe assombra que eu critiquei os marxistas por serem dualistas no problema mente-corpo, mas ao mesmo tempo rechaça o meu reducionismo nessa questão. Deixemos de lado a contradição, porque se passa por virtude entre alguns dialéticos. O que tem algum interesse é a conjetura , formulada pelo psicólogo social Claude Braun, da Université du Québec, de que o dualismo mente-corpo de quase todos os marxistas se origina em Lenin. De fato, em seu Materialismo y Empiriocriticismo Lenin atacou o materialista alemão Joseph Dietzgen por identificar o mental com o material. Lenin o atacou argumentando que essa identificação anularia a “oposição entre mente e materia” (sic) e, portanto, a oposição entre idealismo e materialismo. Ou seja, enfrentado antes a opção entre materialismo e dialética, Lenin (sob o feitiço de Hegel) optou por essa última. Talvez esse seja o motivo pelo qual os marxistas dizem que o cérebro é “a base material” da mente (o que implica que esta não é material). Talvez por esse motivo os marxistas careçam de uma teoria própria do mental. Talvez por esse motivo muitos marxistas têm aceitado com entusiasmo a ideia de que o mental é informação, não processo material. E suponho que esse dualismo psiconeural motivou os ataques de que foi objeto a minha teoria monista (materialista, reducionista, biológica) da mente por parte do destacado filósofo soviético D. I. Dubrovskii (Filosofskie Naukie, No. 2, pp. 77-78, 1979) e do eminente neurofisiológico húngaro J. Szentagothai (Magyar Filozofiai Szemle, 1982, pp. 540-553). Seja como for, os marxistas não são materialistas a respeito da mente. Tampouco o são no que respeita a cultura, a que tratam como um epifenômeno imaterial gerado pela “base material” da sociedade, ou seja, a economia, o que lhes permite falar acerca das “contradições” entre o econômico e o cultural. De minha parte, tenho me esforçado para construir uma ontologia materialista, dinamicista e emergentista consequente. Tenho exposto em meus livros The Furniture of the World (Reidel, 1977), A World of Systems (Reidel, 1979), The Mind-Body Problem (Pergamon, 1980), e Materialismo y Ciencia (Ariel, 1981).
6. O Sr. Laso Prieto me atribui uma “tendência a comprimir em formulações simples todos os campos de conhecimento”. Compreendo bem essa queixa, porque também eu, quando era jovem e estava sob a nefasta influência de Hegel, confundia claridade com simplicidade, e obscuridade com profundidade. Não há como uma dose de matemática, de ciência fática, ou de lógica-matemática, para desenganar-se e ir adquirindo gradualmente a claridade necessária para fazer filosofia autêntica e fazer-se entender pelos seus contemporâneos.
Em conclusão, me permita recordar duas regras clássicas para fazer crítica filosófica responsável: (1) entender antes de criticar; (2) abster-se de empregar argumentos ad hominem.