Por Manuel Ansede
Publicado no El País
Quando a primeira onda da pandemia atingiu os hospitais espanhóis na primavera do hemisfério em norte em 2020, muitas salas de cirurgia tiveram que ser fechadas para dar lugar a pacientes com COVID em estado crítico. Com o cancelamento de suas operações cirúrgicas de tumor de pele no hospital La Paz, em Madri, a dermatologista Almudena Nuño González se ofereceu para trabalhar no hospital de campanha montado às pressas no Ifema (Instituição de Feiras de Madri), que no final de março passou a receber centenas de pacientes com o COVID. A médica não pôde evitar olhar os pacientes com seus olhos de dermatologista e passou a apontar sintomas marcantes, como “a língua da COVID”.
“Encontramos algumas alterações na língua que até então não tinham relação com a COVID: é uma língua alargada, como se estivesse inchada, na qual dá para ver as marcas dos dentes, e também pode estar despapilada, com áreas do dorso com pequenos orifícios onde as papilas são achatadas. Parece uma língua com manchas rosadas”, explica Nuño González, cuja equipe anunciou suas descobertas em um comunicado na terça-feira.
A dermatologista e seus colegas estudaram 666 pacientes internados entre 10 e 25 de abril de 2020 no hospital de campanha do Ifema. A idade média dos pacientes era em torno de 56 anos e quase a metade era de origem latino-americana. Todos tinham pneumonia leve ou moderada. A análise dos médicos mostra que mais de 25% dos pacientes também apresentavam alterações na mucosa oral, como papilite lingual transitória (11%) — uma espécie de espinha na língua —, úlceras bucais (7%), língua dilatada com marcas de dente nas laterais (7%), sensação de queimação (5%) e inflamação da língua com a referida depapilação em manchas (4%), de acordo com os resultados da pesquisa, publicada em setembro no British Journal of Demartology.
Nuño González destaca que outros fatores podem explicar alguns desses sintomas, como alguns medicamentos ou a ventilação com oxigênio, que ressecam a boca e podem irritar a língua. “A língua depapilada é 100% devida a COVID, porque isso não ocorre em nenhuma circunstância ou tratamento”, disse ela. “É um achado que pode auxiliar no diagnóstico, como a perda do olfato ou do paladar. São sintomas muito característicos”, acrescenta.
Os dermatologistas também detectaram alterações na pele das palmas das mãos e nas solas dos pés em quase 40% dos pacientes, com destaque para descamação (25%), manchas avermelhadas ou marrons (15%) e sensação de queimação conhecida como eritrodisestesia (7%). No total, quase metade dos pacientes analisados no Ifema apresentava sintomas na pele ou na mucosa da boca.
Muitos especialistas alertam desde a primeira metade de 2020 para a existência desses possíveis sintomas. Em maio, por exemplo, a dentista Carmen Martín Carreras-Presas, da Universidade Europeia de Madri, publicou três casos de úlceras ou bolhas na boca presumivelmente associadas à COVID. Em julho, o dentista Milagros Díaz Rodríguez, da mesma universidade, descreveu outros três casos de sintomas na cavidade oral ligados ao coronavírus, como sensação de queimação e depapilação da língua.f A dermatologista Almudena Nuño González explica que essas primeiras notificações foram recebidas com ceticismo, já que eram poucos casos. “Ao estudar um número tão elevado de pacientes, pudemos demonstrar que esses sintomas estão relacionados à COVID”, disse Nuño González, nascida em Madri em 1983.
O epidemiologista britânico Tim Spector, do King’s College London, também relatou nos últimos dias que está recebendo dezenas de relatórios de lesões na língua, por meio de um aplicativo no qual os pacientes de COVID descrevem seus sintomas. “Spector tem corroborado na população em geral com COVID leve, que estão quarentenando em casa, o que vimos em pacientes internados com pneumonia”, disse Nuño González.
Os sintomas cutâneos eram mais conhecidos. Em abril, uma equipe da Academia Espanhola de Dermatologia e Venereologia publicou as manifestações mais típicas da COVID na pele, como erupções semelhantes a frieiras, erupções vesiculares e lesões urticariformes. Nuño González acredita que os sintomas na boca passaram mais despercebidos no início da pandemia devido ao caos dos primeiros momentos. “No final de março e início de abril, havia muito medo da doença, eles tentavam fazer os pacientes usarem a máscara o máximo possível e em muitas ocasiões suas mucosas não eram exploradas”, lembra.